25.5.13

IOSIF BRODSKII


Os palhaços estão a demolir o circo. Os elefantes fugiram para a Índia;
os tigres vendem na rua as riscas e as argolas;
no interior da tenda rota, do trapézio pende,
balançando-se como num guarda-roupa, o fraque
dum desiludido ilusionista,
e os poneys, lançando fora as coberturas bordadas, posam para um retrato
do motor. Na pista,
enterrados em serrim, os palhaços brandem no ar
os martelos com toda a gana e demolem o circo.
Público, ou não há ou não aplaude.
Apenas um cãozinho amestrado
late sem parar, sentindo que está cada vez mais próximo
do torrão de açúcar, ou seja, que está quase a ser
mil novecentos e noventa e cinco.

1995


(tradução de Carlos Leite, in Paisagem com Inundação, Livros Cotovia, 2001)

22.5.13

EUGENIO MONTALE


A ENGUIA

A enguia, a sereia
dos mares frios que deixa o Báltico
para chegar aos nossos mares,
aos nossos estuários, aos rios
que sobe em profundidade, sob a corrente adversa,
de ramo em ramo e depois
de cabelo em cabelo, adelgaçando-se,
cada vez mais dentro, cada vez mais no coração
da rocha, insinuando-se
nos sulcos do lodo até que um dia
a luz solta dos castanheiros
acende o seu vibrar deslizante em poças de água estagnada,
nas fossas que descem
das faldas dos Apeninos à Romagna;
a enguia, tocha, chicote,
flecha de Amor em terra
que só as nossas ravinas ou os secos
arroios pirenaicos reconduzem
a paraísos de fecundação;
a alma verde que procura
vida nesse lugar onde apenas
morde a canícula e a desolação,
a centelha que diz
tudo começa quando tudo parece
fossilizar-se, tronco sepultado;
a íris breve, gémea
daquela que engastam os teus cílios
e fazes brilhar intacta entre os filhos
dos homens, imersos no teu lodo, serás tu capaz
de não a achar tua irmã?





(tradução de José Manuel de Vasconcelos, in Poesia, Assírio & Alvim, 2004 / original de La bufera ed altro, 1956)



JOSEPH BRODSKY 




Era uma noite ventosa, e ainda a minha retina não registara o que quer que fosse quando me acometeu uma sensação de absoluta felicidade: atingiu-me as narinas aquilo que sempre foi para mim o seu sinónimo, o cheiro a algas geladas. Para algumas pessoas, é a erva ou o feno acabado de ceifar; para outras, os perfumes natalícios das agulhas de conífera e das tangerinas. Para mim são as algas geladas — em parte devido às ressonâncias onomatopaicas da própria conjunção (em russo, as algas são um magnífico vodorosli), em parte por causa da ligeira incongruência e do oculto drama subaquático que essa ideia alberga. Há elementos em que nos reconhecemos; quando inalei aquele cheiro nos degraus da stazione, os dramas ocultos e as incongruências já eram havia muito o meu forte.
A atracção por esse cheiro deveria sem dúvida atribuir-se a uma infância passada nas margens do Báltico, pátria da sereia errante do poema de Montale. E, todavia, eu tinha as minhas dúvidas quanto a essa atribuição. Para começar, a infância não foi tão feliz como isso (as infâncias raramente o são, sendo antes uma escola de insegurança e desamor-próprio); e quanto ao Báltico, para escapar à parte que dele me cabe, só mesmo sendo uma enguia. De qualquer maneira, essa infância pouco tinha que a habilitasse a objecto de nostalgia. Sempre senti que a origem da atracção estava alhures, para lá das fronteiras da biografia, para lá da conformação genética de cada um — algures no nosso hipotálamo, que conserva as impressões dos nossos antepassados cordados sobre o seu domínio nativo — a recordação, por exemplo, do próprio ichthus que originou esta civilização. Se ele foi ou não um ichthus feliz, já é outra história.



( in Marca de Água, trad. Ana Luísa Faria, Publicações Dom Quixote, 1993)