13.12.08

CHARLES SIMIC

O tempo dos poetas menores está a chegar. Adeus Whitman, Dickinson, Frost. Bem-vindos vós cuja fama nunca passará da família mais chegada, e talvez um ou dois amigos íntimos reunidos depois do jantar à volta de um jarrão de rude vinho tinto... enquanto as crianças adormecem e se queixam do barulho que fazes ao vasculhar os armários à procura dos teu poemas antigos, com medo que a tua mulher os tenha deitado fora na limpeza da última primavera.
Neva, diz alguém que espreitou a noite escura e que, depois, também se volta para ti quando te preparas para ler, de uma forma algo teatral e uma face que cora, o longo e tortuoso poema de amor cuja estrofe final (que não sabes) falta sem remissão.

- segundo Aleksandar Ristóvič

(in Previsão de tempo para utopia e arredores, tradução de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, 2002 – documenta poetica)

12.12.08

CASIMIRO DE BRITO

481

Branco no branco, cantou
Bashô. Despes o vestido,
dispo o teu corpo.
A tua sombra na parede
branca. Sorris.
Apagas a luz.
Sabes que a tela da tua pele
me vai iluminar.
Debruças-te no meu peito:
sabes que o teu hálito me vai
acender. Branco
no branco.
Derramados
um no outro. Quem é luz?
Quem é sombra?
A cotovia
começa a cantar.

(de 69 Poemas de Amor, 4 Águas editora, 2008)

Hoje, pelas 18:00,
na Livraria Bulhosa de Entrecampos (Campo Grande, 10-B), em Lisboa,
será apresentada a antologia 69 POEMAS DE AMOR de Casimiro de Brito,
editada pela 4 Águas Editora.

A antologia será apresentada por Maria João Cantinho
e serão lidos poemas por várias personalidades,
seguindo-se um beberete.



«Sou essencialmente um poeta do amor. Talvez porque pense que o amor é inesgotável — embora possa naturalmente ter outros nomes. A própria morte, na minha poesia, significa “amor” — porque, na minha poesia, à morte, que é tão recorrente, não é mais nem menos do que mudança, transformação. Disse-o Camões.»

(Excerto da entrevista concedida por Casimiro de Brito ao suplemento Caderno de Artes, do semanário Postal do Algarve, 27 de Novembro de 2008)

11.12.08

JOSÉ MIGUEL SILVA

NON, OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR
- MANOEL DE OLIVEIRA (1990)


Diz o povo e com razão que no perder
é que está o ganho. Para alguma coisa
somos portugueses, «os de cabelo castanho»,
e que seria de nós se as lágrimas, os lenços

nos faltassem? Povos mais felizes alimentam-se
de lucros, de famas, de vitórias. Nós não,
preferimos o lamento, a beleza moral
do quase ter, do quase lá, do quase nunca.

A bola no poste é o nosso emblema, e o nosso
patriotismo exprime-se na derrota. Pois
no coração de cada português lateja a evidência
de que só no fracasso se alcança o verdadeiro

sabor de ser homem. A vitória é uma patranha
em que só caem os parvos, os que não sabem,
como nós sabemos, que não há nada a ganhar,
que todos os triunfos são triunfos da morte.

Devemos então assumir como desígnio nacional
a ambição de perder cada vez mais, cada vez melhor,
e fazer o possível por tirar proveito dessa situação,
tão favorável, que o fracasso nos confere.

Porque só quem aprendeu a amar a derrota,
a fazê-la sua, a lutar por ela, poderá desatrelar-se
do tandem de agonias que os antigos figuravam
sob o nome de temor e esperança.

(de Movimentos no Escuro, Relógio d’Água editores, 2005)

10.12.08

SEAMUS HEANEY

Da república da consciência


I

Ao aterrar na república da consciência
o silêncio era tal quando os motores pararam
que ouvi um maçarico, bem alto sobre a pista.
No balcão da imigração, o funcionário
era um velho que puxou de uma carteira
do seu saco artesanal, e me mostrou
uma fotografia do meu avô.
A mulher na alfândega quis que eu declarasse
as palavras ancestrais das nossas curas
e feitiços contra a mudez e o mau-olhado.
Nem um carregador, intérprete ou táxi.
Cada um transportava o seu fardo, e os sintomas
de insinuante privilégio em breve desapareciam.


II

Por lá, o nevoeiro é um augúrio temido,
mas o relâmpago promete o bem
universal, e os pais penduram bebés
nas árvores durante as trovoadas.
O sal é um mineral precioso.
E as conchas levam-se ao ouvido quando nasce
ou morre alguém. A base de toda e qualquer
tinta e pigmento é a água do mar.
o seu símbolo sagrado é um barco
estilizado. A vela é uma orelha, o mastro
uma caneta inclinada, o casco a forma
de uma boca, a quilha um olho aberto.
Ao tomarem posse, os dirigentes públicos
juram respeitar as leis não escritas, e choram
para expiar a presunção de ter um cargo –
e para afirmar a sua confiança
em que toda a vida nasceu das lágrimas
choradas pelo deus dos céus após sonhar
que a sua solidão não tinha fim.


III

Regressei dessa frugal república
de mãos a abanar, pois a mulher da alfândega
insistiu que a única mercadoria
que eu podia trazer era eu próprio.
O velho ergueu-se e olhou-me o rosto fixamente
e disse ser assim o reconhecimento
oficial da minha nacionalidade
dupla. Desejou pois ao regressar a casa
eu me considerasse representante
daquele país, e em seu nome falasse
na minha própria língua. As suas embaixadas
encontravam-se, disse, por todo o lado,
mas actuavam de forma independente,
e nenhum embaixador jamais seria
dispensado das suas funções.

(in Da Terra à Luz – Poemas 1966-1987, tradução de Rui Carvalho Homem, Relógio d’Água editores, 1997 – original de The Haw Lantern, 1987)

9.12.08

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA

LEITOR II


Deixa que se fechem as pálpebras que já não
dominas,
enquanto o lobo uiva atrás das minhas costas.

Sentes a aragem que traz do sul um aroma de
acácias?
Vês a igreja, o adro, e na falésia distante,
entre as brumas,
os senhores das inaudíveis flautas que anunciam
a alba?

Aproxima-te então,
e toca-me ternamente no ombro,
para que se abram enfim os gladíolos da minha
pele à deriva,
no meio da terra.

(de Filho Pródigo, Assírio & Alvim, 2008)

8.12.08

ADÉLIA PRADO

Salve Rainha


A melancolia ameaça.
Queria ficar alegre
sem precisar escrever
sem pensar
que labor de abelhas
e vôo de borboletas
precisam desse registro.
Chorando seus casamentos
vejo mulheres que conheci na infância
como crianças felizes.
A vida é assim, Senhor?
Desabam mesmo
pele do rosto e sonhos?
Não é o que anuncio
- já vejo o fim destas linhas,
isto é um poema – tem ritmo,
obedece à ordem mais alta
e parece me ignorar.
Me acontecem maus sonhos:
a casa só tem uma porta,
casa-prisão,
paredes altas, cómodos estreitos.
Chamo pelo homem, ele já se foi,
quem se volta é um negro,
indiferente.
A criança que se perdera,
ou deixei perder-se de mim,
é um menino-lobo,
eu a encontro grunhindo,
com um casal velho de negros.
Por que os negros de novo?
Por que este sonho?
Gasto minhas horas em pedir socorro,
esgotando-me, monja extramuros,
em produzir espaços de silêncio
para encontrar Tua voz.
É medo meu apregoado amor,
uma fita gravada, meu contentamento.
O primeiro santo do Brasil
invocou para um pobre:
“Post-partum, Virgo Inviolata parmansisti.
Dei Genitrix, intercede pro nobis”.
Ó Virgem,
volte à minha alma a alegria,
também eu
estendo a mão a esta esmola.

(de Oráculos de Maio, 1999)

7.12.08

ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA

(…)
Naquilo que me toca, confesso que não me dá muito jeito sentir-me mortal. É verdade que as pessoas lá vão morrendo – quer se ajeitem quer não – e admito que a preocupação da morte criasse inquietações colectivas que, colectivamente, se procurassem resolver. Eu, que tenho pelo «comunitário» algum respeito, mantenho o «colectivo» à distância porque não tenho para ele nem paciência intelectual nem paciência tout court. Mais: acho que a passagem subtil e sinuosa que a «intelligentzia» do nosso tempo foi fazendo do comunitário para o colectivo constituiu uma das maiores fraudes intelectuais e éticas de que a minha geração foi vítima. Também posso acrescentar que se isso fosse uma forma de snobismo ela não me repugnaria – assumo o meu snobismo em áreas igualmente delicadas – mas não é: trata-se duma certa preocupação de não ser cúmplice naquela burla e de – à minha pequena medida – não querer que os meus netos me acusem de ter sido também o fautor dum processo mental e social que lhes entregou uma vida inteiramente degradada e lhes retirou a palavra felicidade de qualquer projecto individual ou social. Porque foi isso que fizeram os que, colectivamente, quiseram salvar o mundo.
É neste contexto – e no próprio interesse do mundo – que não estou interessado em salvá-lo, mas numa coisa bem mais simples: tenho uma vida que tem ficado aquém das possibilidades que me proporciona a minha imaginação, tenho uma morte à vista e vivo rodeado de seres humanos que não quero enganar, sobretudo enganando-me a mim próprio.
É este problema prático e rigorosamente pessoal que, no meu caso, me leva a bater, discretamente, à porta do misterioso.
(…)

(excerto de Peregrinação Interior ou Quadros da vida quotidiana numa sociedade em vias de desenvolvimento / VOL. II O anjo da Esperança ou Reflexões sobre algumas evidências do mundo e alguns esconderijos da alma, edições Uranus, 1982)