MANUEL GUSMÃO
«A PERFEIÇÃO DAS COISAS» –O vento – finalmente no fogo do dia – o vento do mundo
neste lugar aberto
escreve a inclinação dos jovens álamos na última colina
contra o céu para sempre novo e antigo.
As mãos do vento escrevem em verso ramos e folhas, pontos e traços
a sombra da luz; encurvam para a esquerda e em cima
as hastes longas e breves: as vogais aéreas
da paisagem terrestre que teríamos esquecido.
É subitamente que o vês claramente visto
repetindo a origem do tempo:
é uma caligrafia de acaso.
Mas é uma caligrafia minuciosa nítida;
inquieta e exacta;
ofuscante como a incriada
perfeição das coisas.
Numa outra folha ou margem ou luz ou lugar do mundo
és tu agora. Levantas o vestido leve; os teus dedos
enrodilham-no, subindo-o numa onda irrepetível e
contudo, repetida vezes sem conto.
As tuas mãos enquanto quase quase danças – embora
apenas andes sobre o imortal chão da casa –
sobem o pano
de algodão, apanham a bainha, colhem as asas do escasso
mar
que te cobria e
levam-nas até à linha irrevogável das ancas
como se fossem prender o vestido à levíssima ondulação
do mundo andante.
É como se uma onda no corpo abrisse lenta e fulminante
a incalculável praia ao esplendor em que cada coisa se diz
como se cantasse o nome do sem nome.
A curvatura daquelas hastes e a onda vertical que o teu gesto inventa
escrevem então a infindável passagem entre os separados mundos
e a isso só podemos chamar
a alegria.
(de
Teatros do Tempo (1994-2000), editorial Caminho, 2001)