21.8.09

(Oceano Atlântico, ao largo da Ilha Terceira - Agosto de 2009)


JUAN RAMÓN JIMENEZ

DIA ENTRE OS AÇORES

9 da manhã.

O Sol, que se acende, lento, em branca luz, ao apurarem-se as nuvens de água, ilumina de prata verde o azul do mar de chumbo carminoso. Gotas doces de chuvisco varrido e gotas amargas de onda assaltadora chegam-nos confundidas aos lábios e aos olhos. Vamos para o Verão, afundados até às orelhas nas peles de Dezembro.

1 da tarde.

MAR SÓLIDO

Está o mar de pedra, e as ondas baralham-se como cartas ou lascas de ardósia. Aqui e acolá, indefinidas malaquites de imponderáveis verdes, profundos e finos mármores negros que desceram, em escadarias magnetizadas, ao mistério. Em súbitas aparências volúveis, sobre a crista das mudáveis e minúsculas cordilheiras de ondas, remoinhos de gesso. Parece que é pó a brisa. A boca e a alma têm sedes.

2 da tarde.

Ao subirmos da sala de jantar, não há mar. Todos, sem o ver, continuam crendo-o ali. Mas não está. Não, não há mar. O sol contagia toda a atmosfera chuviscosa, e tudo é só luz branca, suave, velada. Na unânime claridade, breves sangues derramados por feridas de alvor, leves grinaldas vivas — de quê? — não sei se pela água se pelo céu.

5 da tarde.

ADEUS!

Que distante já a triste cova chorosa, de que acabámos de sair agora mesmo, dos «Açores da chuva permanente»! Saudação alegre da aberta tarde de sol! O mar, prússia outra vez, está como talhado em infinitos planos de escuras cores luminosas, que se complicam em cambiantes inumeráveis, como se cada onda tivera um parto perpétuo de ondinhas. Claridades de nuvens afogueadas deslumbram-no sem repouso, e nas espumas de cada onda desfeita um arco-íris eleva a sua lira de cores. — Assim as Musas celebrando o Génio «mensageiro de luz» de Puvis de Chavannes, femininas ondas brancas de um mar ideal. — O céu é hoje maior que o mundo, e parece que a sua glória desceu ao ocaso, que está aí perto, entre os seus jardins aquáticos. A última ilha, quase de música, suma da ilusão, sai, como uma proa de luz cristalizada, de entre as nuvens baixas, que a abraçam, que a colgam, que a coroam imensamente, na desproporção mágica — pobres de nós! — da sua magnificência apoteótica!

6 da tarde.

A ILHA TRANSFIGURADA

Malva, de ouro e vaga — tal qual um grande barco revirado no mar concentrado e azul-ultramarino —, num ocaso amarelo que ornam mágicas nuvens incolores, gritos complicados de luz, a «Ilha dos Mortos», de Bocklin. Mas os ciprestes estão ardendo esta tarde e os mortos estão ressuscitando. Ouro, fogo, purificação. O mar soa a César Franck.

7 ½ da da tarde.

Transfigurada já e ardida, entre o Sol do ocaso e o seu longo derramamento no mar azul, como uma brasa viva que se apaga rubra, malva e cor-de-cinza — negra em sítios, carvão que permanece — a «Ilha — Adeus, adeus, adeus! — do Juízo Final».

(tradução de Pedro da Silveira, in Mesa de Amigos – versões de poesia, Direcção Regional dos Assuntos Culturais / Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1986 – Colecção Gaivota)

20.8.09

J. H. BORGES MARTINS

escrito no jardim da cidade


senhor que escreveste
em sânscrito no jardim das amendoeiras

que puseste os cegos a ver as maravilhas
da tua criação

e fizeste os coxos andar
pelas ruas desertas de jerusalém

vem visitar os cabarés do ocidente
e ver o pesadelo dos mortos nos rituais
do sétimo dia.

ensina os animais a falar e a sorrir
distante da solidão dos espelhos.

vem apreciar os jogadores triviais
das bolsas de nova iorque e de tóquio

todos querem ver a tua arte de falar
e curar os sifilíticos e impuros

não deixes___senhor___o perfil caótico
das imagens escapar à denúncia
consciente dos olhos.

(de nas barbas de deus, edições Salamandra, 1999 – Colecção Garajau)

19.8.09

(Furna do Enxofre, Ilha Terceira - Agosto de 2009)


JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

A FURNA DO ENXOFRE


A primeira coisa que se conhece é uma longa
escadaria que leva à espessura, a um velório
de vegetação sombria. Ergue-se por entre a
rocha que ladeia os degraus, até ao momento
em que mergulha na golpeada ressonância da
caverna. Não há corpos projectados pelo
fogo, apenas o enxofre se consome e a furna
se transforma num pequeno altar de lama que
sustenta extrema temperatura. Ninguém nomeia
a asa de um morcego e o rasgão de luz
desce a altíssima gruta para que possamos
atribuir uma forma aos objectos reais: a
laguna onde o pequeno barco aguarda a voz da
sombra que se desdobra em múltiplos ecos:
fantasmas, coisas vãs que ficaram fora do
coração da ilha: no líquido exílio, sob a
ilha, está um campo subterrado, bolsa imensa
que sustém a própria ilha: e os olhos vindos
das trevas regressam à plácida luz, como
quem ressuscita, numa súplica, a tristeza das
_______________________coisas.

(de Bellis Azorica, Relógio d’Água editores, 1999)

18.8.09

CARLOS BESSA

o desemprego à janela numa ilha


Um silêncio d'alma nós à janela
Uma janela sobre Angra
Com o seu casario maioritariamente branco.
À janela o território, pão e vigilância
Advém moldura onde se fecha a memória
Com a luz coada de uma folhagem que
Até ao mar cai em íngremes socalcos.
Uma espuma negra e industrial
De restos e contentores
Cheios de gatos vagarosos e cães que rangem
Ao sol, ao tanto sol do pátio da alfândega
Onde, com o salário por um fio
Andam homens e mulheres à deriva
Enquanto nós, sopa pão sumo de laranja
Sorrimos, sorrimos.

(de Em Trânsito, &etc, 2003)
ANA PAULA INÁCIO

transporto material muito fino
vidro assoprado
por ares assassinos
vitrais doloridos
no ventre macerado
de Santa Bárbara
como um trovão

o amor alongado
por malhas largas
onde erramos a pescaria
e encontramos os corpos
dos nossos próprios pés
atados por limos


(da As vinhas de meu pai, Quasi edições, 2000 - biblioteca "uma existência de papel")



(imagem obtida através do Google Earth)



17.8.09

JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES

[excerto inicial de] «DAS VIDAS, MORTES DURAS»

O vapor em que Camilo Pessanha seguia para Macau — e por razões que para ele próprio ficaram completamente secretas — teve de parar durante alguns dias no porto de Angra. Falou-se de uma improvável avaria demorada, depois de alguns dias de tempestade, o que não parecia fazer sentido algum. Havia, contudo, maus ventos e o próprio ancoradouro agitava excessivamente o navio. Pessanha resolveu procurar alojamento na ilha, de tal modo lhe era insuportável o quotidiano a bordo, mas foi impossível encontrar sequer um quarto na cidade. Apenas na Praia da Vitória a viúva de um juiz lhe cedeu onde ficar, devido ao súbito acaso da descoberta de o professor de Macau ter sido colega de seu marido em Coimbra.
Camilo Pessanha levou consigo uma pequena mala de couro já muito gasto. O imediato, um holandês de Utrecht chamado Langendorff que também se interessava pela dinastia Ming, avisá-lo-ia de véspera, pois precisava de meio-dia para regressar, embora se sentisse no sorriso alheado do professor que lhe seria indiferente continuar a viagem ou perdê-la. A casa ficava numa zona abrigada da vila e, na noite em que chegou, ouviu ondas dobrarem para lá de um morro.
Na manhã seguinte, a viúva tinha já partido para a missa e a mesa, numa pequena sala perto da cozinha, tinha leite e pão. Uma criada baixinha perguntou-lhe se queria chá, por certo incomodada pelos escarros que juntava num largo lenço já bastante sujo. Uma bola, quase lhe parecera de trapo, bateu na vidraça. Um rapazote saltava do pátio de uma casa com muitas varandas de madeira. "É o menino Vitorino, anda sempre com livros e não tem modos de crescer As tias não têm mão nele, mas devem gostar assim. O senhor quer mais leite?"
A limpeza da casa e o vazio das paredes sem qualquer sentido de acumulação acentuavam-lhe o tédio. Os seus olhos mortos viam no lambril da sala o primeiro sol. Essa hora de luz acordava-lhe nos braços um torpor onde nenhum elixir triunfava da ausência do outro corpo caído, muito longe, sobre qualquer chão nu. Fechava os punhos indecisos entre o guardanapo e os talheres, o pescoço metido nos ombros, os pés como que suspensos do soalho, os olhos vesgos e de cor diferente, abraçado pela memória, pela despedida, pela desrazão.
Diante da janela uma liliácea, sorriu. Uma pseudo-árvore, o dragoeiro, inclinava os seus galhos inúmeros à pressão de antiquíssimos vento. Sangue de drago, ocorreu a Pessanha. A goma tinturial toldou-lhe uma gargalhada, mas enterneceu-o pensar que nos seus dias, o que fora um produto capaz de servir a imaginação da cor não passava de um decorativo elemento de jardim. Os fundos que foram líquidos ferventes, que depois formaram a manta de pedra viva dos polmes, dobravam-se agora na placidez que esquece os cataclismos, como dentro de si os olhos esqueciam enquanto olhava o canto vegetal. A frágil agitação das gingkobilobas, essas árvores ternas onde os raios de ventos e sol soçobram, ligava-o ao mundo dos seres extintos, mas ainda absurdamente sobrevivos.
[...]

(in Do Corvo a Santa Maria, com fotografias de José Sousa Gomes, Relógio D'Água editores, 1993)