13.8.14

JOSÉ CARLOS SOARES


Havia a tristeza
como método, havia
a sedução

como razão. Havia
o tempo, a língua
pegajosa do sentido
marcando em cada ruga

o desenlace. O sol
também havia
até que passe.


(de O Visitante Paralelo, Língua Morta, 2013)

12.8.14



DÓRIS GRAÇA DIAS


PREFÁCIO

Dos livros. Que poderia ela dizer acerca desses objectos inteiros? Gostava deles velhos, mexidos, a cheirar a pó. Com as páginas insuportavelmente lisas, sem marcas de manuseamento, apenas as das lombadas quebradas pelo uso; sem indícios de dedos suados, mas repletas de sublinhados, de sinais, de notas à margem. Reescritas, reinterpretações.
Um livro escolhe-se. (Não, não vamos por aí. Não é o conteúdo que nos interessa agora!) Escolhe-se. Queria-os com as páginas cosidas, agarradas à capa forte, cartonada, com folhas porosas por onde se infiltrasse um simples riscado de bic, ou uma superfície macia onde sobrevivesse um borrão de tinta permanente.
Os livros por dentro têm de nos ensinar o manuseamento deles, qualquer coisa mais do que a simples imagem deles. Colectiva imagem. Plural imagem.
Gostava de espreitar os livros dos outros, tentar perceber como eles os usavam. Um livro limpo desses borrões de leitura dizia-lhe pouco. Essa tentativa de imacular, ou pretender imacular, uma leitura parecia-lhe uma farsa. Um livro fez-se para sair das nossas mãos velho. O tempo da sua leitura é o todo da sua vida. E uma infinita partícula das nossas existências, proporcional ao volume das nossas leituras. Ler, ler, ler; é só isso que os livros nos exigem. E nós a obedecermos. Sempre.
Pois não, um livro não é um objecto intocável sobre o qual não possamos reescrever as nossas vontades, desejos, ensejos, ansiedades, louvores, discordâncias. A um livro retribuem-se os sentidos que nos suscita. O entrelinhamento, as margens, os inícios de capítulos, as folhas de rosto, todos esses lugares em branco que o já escrito nos oferece, são lugares de manobra aguardando que os preenchamos.
Livre-se, caro leitor, de lhe mostrar um livro ainda em branco depois de lido. Ela encher-se-á de pressupostos e insultá-lo-á até à exaustão. Abrir-lho-á numa página ao acaso, deter-se-á sobre uma frase e questioná-lo-á sobre a sua incapacidade de ter passado por ela sem que se sentisse forçado a retê-la por mais um bocado: na página, em si, na memória, no tempo.
Um livro existe também para se descompor (atenção: ela disse descompor e não decompor); em extremo, se não gostarmos de uma frase podemos riscá-la, se não gostarmos de uma página podemos arrancá-la, se não gostarmos do todo que o constitui podemos deitá-lo fora.
A reverência é um mau hábito e a literatura de que se fazem os livros não gosta de maus hábitos. Aquilo que nos suscita prazer, que identificamos como o gosto, porque se impõe como estímulo dos sentidos, só adquire existência quando sujeito a uma escolha pessoal, feita de sujeição e rejeição.
Censura? Sim, censura! Ela há-de querer ter eternamente essa liberdade de negar páginas inteiras, de as destruir, aniquilando-as em si. Fascista da sua própria biblioteca, lápis-azul, inquisitorial, rogar-se-á o direito de formular indexes, que guardará juntamente com as cinzas desses outros livros rasgados. Porque é esta a inteira liberdade que os livros nos oferecem. A de sermos muito maus para eles, malvados até à saturação.


(de Biblos (Os Livros), Teorema, 2000)