4.1.08

RUTH FAINLIGHT

A OUTRA


Seja o que for que encontre, se o procuro, está errado.
Preciso de esperar: a mais difícil prova é conter-me,
ficar passiva, receptiva, paciente e vazia
de qualquer exigência ou desejo, até que
a outra, essa que eu nunca teria descoberto
por mais que procurasse toda a vida, emergindo
das sombras, se aproxime como criança arisca e acanhada.

E esta será a mais longa das tarefas: aguardar,
abrir-me. Aquietar a minha energia
é mais difícil que aplicá-la a qualquer causa,
mas a outra só poderá mostrar-se
à revelia da minha ardente natureza
sempre ansiosa por escolher. Isto é doloroso
e violento como um parto sem tréguas.

Tenho que me afastar da tentação de agir
para deixar que ela venha, com um sorriso cauto
e um braço levantado – para me saudar ou para defender-se
(não consigo decifrar o gesto ambíguo).
Chego a ter que respirar mais lentamente
até ela ficar tão perto que eu consiga
captar-lhe o som da voz suave e débil.

E então, como em sonhos, quando se invoca
uma língua não falada desde antes da infância
(quando eu era tímida como ela, minha irmã esquecida
cuja vinda me completa e recompensa),
começo a entender aos poucos a mensagem
que tanto demorou a entregar-me. E amando-a aprenderei
nas palavras que canta o meu próprio segredo.


(de Visitação, tradução colectiva (Poetas em Mateus) revista e completada por Ana Hatherly, Quetzal, 1995)

3.1.08

[para uma antologia de bicicletas - 14]

SEAMUS HEANEY

GUIÃO PARA UM FILME


Eles pedalam afastando-se do que podia ter sido
em direcção ao que nunca será, num plano aguentado:
Professores em bicicletas, falantes da terra em saudação,
entrando nos anos vinte como se fosse no futuro.

Ainda a pedalar, já lá no fim das lentes,
não indo a parte nenhuma e não desaparecendo.
Mistura fúcsia que 'segue a linguagem'.
Longa sequência sem som. Panorâmica e desfoca.

Então vozes sobrepostas, em diferentes Irlandeses,
discutindo tarefas de tradução e taxas linha a linha;
como os marcos miliários de oitocentos em bermas de relva,
ocorrência de nomes como R. M. Ballantyne.

Grande plano do olho de gato de um botão
seguido de abertura para a capa de uma sotaina,
barrete de padre, colarinho de volta, maçã de Adão.
Parar no rosto inexpressivo. Pôr os créditos

e mesmo quando parece que é o fim -
focar o rasto da longa vaga que vai galgando a margem
e se desfaz no ponto em que uma vara escreve e escreve
palavras no velho guião na areia que se escapa.


(tradução de Vasco Graça Moura, in Antologia Poética, Campo das Letras, 1998 - original de The Haw Lantern, 1987)

2.1.08

NUNO TRAVANCA


à maria khépri


beleza enquanto processo respiratório


ela solve mecanicamente o sangue
quando inspira melancólico outro dia

uma pequena árvore mostra-me as asas
os vôos impróprios que lhe descobre
as luzes ofuscadas do seu límpido sono

e então expira, tal prazo que não li
processa-se ante um corpete apertado
uma respiração dúbia

obstinadamente reflectiram o silêncio
os passeios dos lagos espelhados
a raiva dos campos de batalha

e é esta causa justa que lhe vejo
entre a penumbra

músculos da boca tendem a sorrir
a não sorrir

é inconsolável esta cura que
com as rédeas bem presas
deixa de processar um esteta.

(daqui)

1.1.08

[no dia da Paz, eu que estou na minha casa sossegada]


ADOLFO CASAIS MONTEIRO


IV


Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais...
Não me venham dizer que estava matematicamente previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas das vítimas.
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou em profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!

Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa e ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...

Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...

Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?

Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?

Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia...
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...


(de Europa, 1946)

31.12.07

MANUEL DE FREITAS

HANTAÏ, 1992



Ou digamos cravo, cetim
- how beautiful -
destas horas vãs. Entre
o torpor e o excesso,
tão próximos (outra vez) da morte.

Num gesto de penumbra, avanças
- e o meu rosto passa
a ser outra coisa qualquer.
Fugaz sinónimo de beleza

em vez das punhetas do costume.


(de Büchlein für Johann Sebastian Bach, Assírio & Alvim, 2003)