5.8.11

[AUTOR DESCONHECIDO]

«Musas entregando o Poeta ao Tempo e à Fama»


LUÍS DE CAMÕES


Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses imortais,
Indígetes, Heróicos e de Magnos.
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertei já do sono do ócio ignavo,
Que a ânimo, de livre, faz escravo;

E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania, infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro
Verdadeiro valor não dão à gente;
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.


(do Os Lusíadas, Canto IX, 1572 - fixação do texto de Hernâni Cidade)

3.8.11

JORGE VELHOTE


Um mapa para regressar ao vento

A lucidez é a ferida mais próxima do sol
René Char

Quem partiu para escrever estas palavras? Há uma haste
de silêncio no olhar de quem observa a sombra que se despede
no caminho. A imobilidade das aves desce sobre a nossa
voz como numa prece o ouvido se exalta.
O que podemos esperar desse silêncio que pertence
aos mortos, repara: se toco com um dedo nos
meus lábios sinto que o sangue tudo inunda
é como se a luz descobrisse
a noite e a purificasse de segredos para alguém.

O caminho que se destrói, a respiração que se escuta
distante, o olhar que nos entreabre as janelas
e se fecha, não é um plano amoroso.
O meu nome já não é um sulco de lume nos teus
lábios nem uma sombra no leu peito.
Sou um arado esquecido na tonalidade dos dias.
As folhas caem, sento-me, é preciso muito tempo
para ler o silêncio de um rosto.
Um lençol basta para cobrir um corpo.

Se eu fosse cúmplice das águas que se guardam
nos rios, se o meu olhar abandonasse o reflexo
das fotografias, repara: como sou inconfidente,
receio o sono, o rugoso das víboras nas feridas,
o rumor da noite esquecidas as carícias.
Não desejes nada, apenas o vestígio da margem,
o odor do esquecimento que amadurece
a curva dos olhares, o sigiloso labirinto
que o tempo ergue nas dunas.

Um mapa para regressar ao vento, à cicatriz
da luz, ao desenho que decifra o vazio, ao segredo
das pedras e das mãos que se afastam.
Todos os dias o nevoeiro chega frio para dentro
de mim, o mar deixa na areia sulcos escondidos,
conchas cuidadosamente recortadas, a claridade
do azul, a nudez da morte ausente o corpo.
Alguém procura na escuridão o gume das lágrimas,
a melodia da neve, a aresta mais delicada do silêncio.

Amamos sempre quem nos ama, a ferida mais próxima do sol.


(in Palabras – Poemas para el Festival, XXI Festival Internacional de Música Ciudad de Ayamonte, 1999)