Um mapa para regressar ao vento
A lucidez é a ferida mais próxima do sol
René Char
de silêncio no olhar de quem observa a sombra que se despede
no caminho. A imobilidade das aves desce sobre a nossa
voz como numa prece o ouvido se exalta.
O que podemos esperar desse silêncio que pertence
aos mortos, repara: se toco com um dedo nos
meus lábios sinto que o sangue tudo inunda
é como se a luz descobrisse
a noite e a purificasse de segredos para alguém.
O caminho que se destrói, a respiração que se escuta
distante, o olhar que nos entreabre as janelas
e se fecha, não é um plano amoroso.
O meu nome já não é um sulco de lume nos teus
lábios nem uma sombra no leu peito.
Sou um arado esquecido na tonalidade dos dias.
As folhas caem, sento-me, é preciso muito tempo
para ler o silêncio de um rosto.
Um lençol basta para cobrir um corpo.
Se eu fosse cúmplice das águas que se guardam
nos rios, se o meu olhar abandonasse o reflexo
das fotografias, repara: como sou inconfidente,
receio o sono, o rugoso das víboras nas feridas,
o rumor da noite esquecidas as carícias.
Não desejes nada, apenas o vestígio da margem,
o odor do esquecimento que amadurece
a curva dos olhares, o sigiloso labirinto
que o tempo ergue nas dunas.
Um mapa para regressar ao vento, à cicatriz
da luz, ao desenho que decifra o vazio, ao segredo
das pedras e das mãos que se afastam.
Todos os dias o nevoeiro chega frio para dentro
de mim, o mar deixa na areia sulcos escondidos,
conchas cuidadosamente recortadas, a claridade
do azul, a nudez da morte ausente o corpo.
Alguém procura na escuridão o gume das lágrimas,
a melodia da neve, a aresta mais delicada do silêncio.
Amamos sempre quem nos ama, a ferida mais próxima do sol.
(in Palabras – Poemas para el Festival, XXI Festival Internacional de Música Ciudad de Ayamonte, 1999)
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