MÁRIO T. CABRAL
OS BURROS
Neste poema vou referir-me em forma de adivinha
A uma manada de burros em fila indiana num prado
A duas mulheres ainda novas colegas de trabalho
A um pai e a um filho em viagem para Lisboa
E a mim, que também vou fazer um exame raro à capital.
As mulheres vêm a andar lado a lado, novas, gráceis
Em sua farda elegante de funcionárias de aeroporto
«Não sei, aperta-me muito aqui em cima», dizia uma
Referindo-se ao soutien que apontava debaixo da blusa
«Talvez por ser de plástico, não estou habituada»
Conversa de fim de turno sem qualquer importância
Duas jovens mulheres modernas em marcha como duas
ninfas
Poderia muito bem ser um quadro renascentista
Qual delas teria dito: «Ladies and gentlemen o avião
está atrasado»?
Que importa? Seja como for o tempo parou, de facto.
Vê-se a eternidade como um fumo.
A grande sala de embarque está quase deserta
Somos poucos passageiros em trânsito, um aqui, outro
ali
Não há dúvidas que estamos na província.
Também se nota bem que ele é o filho de seu pai pelo
nariz
Pelos olhos do mais novo que o mais velho esmoreceu
Uma pessoa da terra percebe facilmente que um
acompanha o outro
Ao médico, assunto mais sério para um grande hospital.
Observo o pescoço tisnado do homem novo, é lavrador
Está na altura em que são os filhos que repreendem os
pais
O pai suavizou o nariz, ganhou tristeza, nobreza e
pele alva
Rostos de Nuno Gonçalves, viajam mais no tempo que no
espaço.
Vistoriaram a maleta do filho, à procura dum canivete
«Que canivete, senhor! Que canivete! Um canivete!»
Aquela mala estava muito bem feita, coisa de mulher
Reparo num silêncio repentino no qual passam a nadar
as ninfas.
Vê-se a eternidade como um fumo silenciador.
Calharam um banco à frente do meu, do lado da janela
Fantasias atrás de fantasias a partir dum Pet Scan
A minha casa, assim de longe, perde o sonho
Dir-se-ia que dormimos mas tudo indica que acordámos
«Ladies and gentlemen our flight está atrasado»
De repente a vida passou e nós não fizemos nada
«Ladies and gentlemen our flight está atrasado»
E do que pensáramos ter feito nada permanecerá
E quem se importa? Seja como for o tempo parou, de
facto.
O movimento está parado e o que estava parado
resplandece
Não estou no centro do mundo, não estou, sei que não
estou
Perdi o mundo que não tive, isto deveria ser uma
vitória
E em que etapa entre ambos estão os meus olhos?
Como é possível que eu já tenha a idade com que meu
Pai morreu
Bem me repetiram no velório que ele era um homem novo.
Vê-se a eternidade como um fumo silenciador e
refletivo.
Contemplei os burros dias antes através da janela do
hospital
O pasto muito verde, a manhã muito cinzenta
O mesmíssimo silêncio por onde nadam as ninfas
Poderia bem ser um quadro romântico.
Penso que foi a primeira vez que reparei na
aristocracia das orelhas
E fui levado a recordar, num ápice, a carta
genealógica das melhores
Tantas vezes chamados para o serviço do próprio Deus.
Avançavam em fila indiana para um suposto dono
Mas sem entusiasmo ou familiaridade, lordes, com
efeito
O pelo pareceu-me pelúcia, era a distância, era a
humidade
E foi, então, que chorei, sem qualquer movimento, sem
que me vissem
E que importa? Seja como for o tempo parou, de facto.
«Alguém que nos redima!», grito dentro do silêncio:
«Alguém que me eleja e me ame incondicionalmente»
Agora que sei que não sou digno de tanta beleza e
perfeição.
Vê-se a eternidade como um fumo silenciador, refletivo
e doce.
(inédito)