27.3.04

[AUTOR ÁRABE DESCONHECIDO]

Um galo que canta, um cavalo que relincha,
um gato que volteia: a aurora.
Um lírio que se inclina, um limão que cai,
uma árvore que estala: meio dia.
As areias que azulecem, os fumos que sobem,
os amantes que se encontram: a noite.

(da colectânea O Jardim das Carícias - traduzido por Joaquim Pessoa, in Os Herdeiros do Vento - Antologia Apócrifa, Litexa, 1984)

26.3.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA]

TOMÁS ANTÓNIO GONZAGA


Marília, chega, que Dirceu t'espera
Sobre as cândidas asas da alegria:
Chega, querido bem, trazes o dia,
Em que a inveja ferina s'exaspera.

Apenas no horizonte amanhecera,
E Febo os louros raios repartia;
Já dentro desta aldeia se sabia,
Que a causa deste bem Marília era.

Tu já vês como salta o cordeirinho
Alegre atrás da mão no vede prado:
Ouves cantar o alado passarinho:

Pisas a inveja rindo-te do fado:
É mais puro que o leite o teu carinho,
É mais doce que o mel teu terno agrado.


FILINTO ELÍSIO

Estende o manto, estende, ó noite escura,
Enluta de horror feio o alegre prado;
Molda-o bem c'o pesar dum desgraçado
A quem nem feições lembram da ventura.

Nubla as estrelas, céu, que esta amargura
em que se agora ceva o meu cuidado,
gostará de ver tudo assim trajado
da nega cor da minha desventura.

Ronquem roucos trovões, rasguem-se os ares,
rebente o mar em vão n'ocos rochedos,
solte-se o céu em grossas lanças de água.

Consolar-me só podem já pesares;
quero nutrir-me de arriscados medos,
quero sacia de mágoa a minha mágoa!


BOCAGE

Olha, Marília, as flautas dos pastores,
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! olha: não sentes
Os Zéfiros brincar por entre as flores?

Vê como ali, beijando-se, os Amores
Incitam nossos ósculos ardentes!
Ei-las de planta em planta as inocentes,
As vagas borboletas de mil cores!

Naquele arbusto o rouxinol suspira;
Ora nas folhas a abelhinha pára.
Ora nos ares, sussurrando gira.

Que alegre campo! Que manhã tão clara!
Mas ah!, tudo o que vês, se eu não te vira,
Mais tristeza que a noite me causara.


ALMEIDA GARRETT

PORFIA DE AMOR


Demtorno à arvorinha que murchara
Se afadiga o cultor esperançoso;
Envisca as varas caçador teimoso,
Armando ao passarinho que escapara;

Porfiado rompe com destra avara
As entranhas da terra o cobiçoso;
Sua co'a bomba o nauta pressuroso
Por estancar a nau que lhe arrombara.

Mas larga cada qual desesperado,
Quebra furioso o inútil instrumento
Se o contínuo trabalho vê baldado.

Só eu, com desenganos cento e cento,
Só eu, por Délia sempre desprezado,
Teimo cada vez mais no meu tormento

Angra - 1814
Como se Ângelo de Lima percebesse de html.

25.3.04

Ecce ancilla Domini

[hoje, nove meses antes do Natal, a Igreja celebra a solenidade da Anunciação]
CLARICE LISPECTOR

então do ventre mesmo, como um estremecimento longínquo de terra que mal se soubesse ser sinal do terremoto, do útero, do coração contraído veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo - e em subtis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um pet´roleo rasgando a terra - veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma, aquele que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e não previra - sacudida como a árvore forte que é mais profundamente abalada que a árvore frágil - afinal rebentados canos e veias, então

(excerto de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, Relógio d'Água, 1999 - Ficções)
...e dizemos amor sem saber o que seja

Espreito o DN do senhor que vai ao meu lado no Metro.
A falta de esperança e o pessimismo de Saramago provam que é um ateu honesto e consequente.

22.3.04

EUCANAÃ FERRAZ

O poeta insiste:
brune, lava, escoda.

Mas já não sonha
o perfeito.

Verruma
porque o canto é isso mesmo.

Isso:
toda palavra é defeito.

(de Desassombro, edições Quasi, 2001 - Arranjos para assobio)
JEJUM SECRETO

Não hei de mostrar a túnica branca
enquanto o inverno não se sujeitar
ao verde que renasce do cansaço
e da morte faz o vento que respira.
Não voltarei a sentir os abraços
até à vinda da alegria inteira
cheia do riso que liberta a fome
e sangra da prisão os cativos.
Vou a pé enquanto durar a noite:
recuso o lucro fácil das acções.

21.3.04

[deste dia da poesia fica um soneto feito em colaboração]

Reparo nas tuas mãos profundas de violência
em contraste com as superfícies frias dos teus versos
lembro os dias lúcidos da sabedoria e a penumbra
o assombro depois dos silêncios mais tardios

Reparo no som das ondas quando chegam às rochas
em como as palavras não evitam a paisagem
ao desfazerem-se em dispersão líquida
(se me atingem os lábios os hábitos do desassossego)

Reparo no sono dourado dos que passam de noite
e na distância intacta que levamos entre os quatro pés
porque se repetem fluidos pela calçada os nomes
das estátuas e das flores que matas pela primavera

Durmo devagar nos terrenos da solidão repetida
mas adivinhas gumes e medos como na primeira vez

(Sandra Costa e Rui Almeida)
A par das lutas de machos e acasalamento de hipopótamos na SIC à hora do almoço, a melhor evocação deste dia da poesia é a de um tal Repórter Lírico, frequentador de uma certa Janela Indiscreta.
Refira-se a vaga de comentários esclarecidos motivados pela solidez qualitativa de tão eloquentes versos.
Bem hajas Repórter!
Dos últimos dias chegam novíssimas perspectivas para signos do zodíaco e sabores de gelado alternativos.
Definitivamente, estamos numa era de transformações. A tradição renova-se.