30.11.13

PAUL DURCAN


30 DE NOVEMBRO, 1967

Acordei com uma dor de cabeça,
A minha mãe aos pés da cama;
«Más notícias no jornal», disse ela,
«Morreu Patrick Kavanagh».

Depois de uma semana isenta de real
Por fim, instalei-me frente a uma refeição normal;
Estava sentado com uma cerveja e uma sandes de carne
No Mooney's depois da rua que vem da Rotunda.

Por acaso, acabei por sintonizar
A conversa da mesa em frente a mim;
Ouvi um velho do Norte dizer para a mulher
«Era um tipo às direitas, Deus o tenha, não era como nós.»



PATRICK KAVANAGH


Há um ano, apaixonei-me pela funcionalidade de uma ala
De hospital: uma fila de compartimentos quadrados,
Betão, lavatórios - o desespero de qualquer amante de arte -,
Para não falar do modo como o fulano na cama ao lado ressonava.
Mas nada o amor interdita,
O comum, o banal, podem o calor dela conhecer.
O corredor conduzia a uma escadaria e, por baixo,
Ficava a imensa aventura de um pátio com gravilha.

É isto que o amor faz às coisas: a Ponte de Rialto,
O portão principal que o peso de uma carrinha amolgou,
O assento nas traseiras de uma cabana que era um foco de luz,
Nomear estas coisas é o acto de amor e a sua promessa;
Já que nos cumpre registar o mistério do amor sem desconversar,
Resgatar do tempo o passional transitório.



(in Estradas Secundárias - doze poetas irlandeses, selecção, posfácio e tradução de Hugo Pinto Santos, Artefacto Edições, 2013)

29.11.13

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA


CADERNO

Tudo o que fizemos e dissemos e amámos — ou
talvez nem isso —
cabe num mísero caderno onde o esplendor não
lança os seus raios.
De mais ou menos palavras se faz o tempo de
semear,
mas nenhuma colheita retomará o calor do feno,
nada que se possa tocar com a alegria dos dedos,
nada de inocente e sagrado
que nos deixe adormecer sobre o linho.



(de Agora e na Hora da Nossa Morte, Assírio Alvim, 1998)

28.11.13

MANUEL DE FREITAS


NADA DE NADA
para o José Carlos Soares
Um dia, logo de manhã, entraremos
num cemitério e perguntarás a Antonia
Pozzi se estar morto é mais ou menos
triste do que estes dias arduamente sepultados.
Receando que saibas a resposta, beberei
com Lowry a primeira ou a última tequila,
na certeza de que ambos os adjectivos estarão
certos (um pouco, talvez, demasiado certos).

Assim possa a chuva apagar todos
os versos que escrevemos
para nada, sobre nada, contra nada,
à sombra imensa dos jacarandás
que floriam - distraídos, quase por engano -
no Rossio. E inundavam de luz (nunca
vi uma luz tão escura) as portas
e os umbrais deste cemitério assim.



(de Terra sem Coroa, Teatro de Vila Real, 2007)

27.11.13

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


Nós inventamos as formas que nos dão alegria. Claro que estar alegre é cada vez mais e cada vez menos o instante. O instante entre o longo tempo em que não estamos de nenhum modo e o tempo do sofrimento que, sendo pouco, é tempo, tão longo. Nós escolhemos as formas da alegria, talvez seja a única coisa que, de verdade, escolhemos no mundo; uma escolha quase sempre sem grande sentido, sem grande valor e sem alguma imaginação; para além de toda a imaginação, sentido e valor, pois trata-se do acto único que mais soubemos e sabemos construir.
A alegria é um estado de coisas bem simples, do tamanho de um bilhete de autocarro que é pequeno e tem números, pouca espessura e, às vezes, um pequeno anúncio nas costas. A alegria tomo-a como uma escolha absoluta, um instante em que compreendo como as coisas são em si mesmas, como as integro na minha vida e como me deixo ser viajado por elas; pelas coisas, pela alegria das coisas.
Há itinerários de alegria, desenhos que traço e que permanecem como uma linha única na minha, na nossa memória. Alegria: coisa distinta, obrigatória, encadeada no corpo de sangue e nervos que não podemos nem queremos deixar de ser.


(excerto de «Mendes», in Uma paixão inocente, Livros Cotovia, 1989)

25.11.13

JOSÉ CARLOS SOARES


Vestes de branco, atravessas um campo de girassóis. Dezembro
é um mês longínquo. Espero-te, algumas murchas
flores na mão que hão-de abrir-se, se
na água de tua boca. Com a fadiga de quem pudera
descobrir-se, sentas-te a meu lado e dormes no meu ombro.
O árido deserto, minha morada, lentamente vai
sorvendo o branco. E a noite cai.
Lembro batalhas ganhas
e, quando acordas, convido-te
à viagem. Sonho, encontro, iniciação, eis
a chave para a vida eterna. Trocamos de água, sementes,
sossegados caminhamos para as árvores. Tantos
os pássaros, dizes, como podem
estas coisas acontecer? Estão ao teu serviço, proponho,
e logo alças voo e te despedes.

Passaram-se três noites em que fiquei ocupado
de mim mesmo. Cantou o galo, uma serpente
visitou-me meiga, mesmo um pastor
se abeirou de mim. Mantive-me quieto. Tentava
descobrir em que morada passaras já
a ser. Foi então que murmurei: ele
é meu amigo e tenho que visitá-lo.
Passado algum tempo, expirei.



(in Amor Luxúria e Morte, Mirto, 1987)

24.11.13

DANIEL JONAS


IMITAÇÃO DE VIDA

A minha vida...
Conquanto a minha vida seja
uma repetição da minha vida,
conquanto imitação da minha
a minha vida
conquanto minha nem pareça
e não, e seja muito e muito mais
do que a queria,
conquanto vivo me experimente enquanto morto
e enquanto morto a mim me sobreviva
a vida não é mais do que perdê-la
e tanto que a perdi pois
me acho num lugar
por insistente inexistente
passando inversamente nos lugares muito mais
da minha insistência em pensá-los...
Prossigo, pois, é mister que assim prossiga,
mas não trago um carinho por mim mesmo,
antes arrasto o móvel por que me tenho
(que peso, meu Deus, de sê-lo)
conquanto imóvel me detenha
e imóvel me seja o que sou
e tanto do que pense ou faça.
Sou tanto aquilo que não pensei de mim...
Sou tanto aquilo que não sou ou não quis
e tanto por tentar...
Sim... as coisas que eram e não foram...
O que mais ardentemente desejei e não cumpri.
As ondas que se foram para nunca mais...
Oh delírio!
A minha cabeça que anda tão perdida...



(de Passageiro Frequente, Língua Morta, 2013)