3.12.11


m. parissy


as páginas soltas

para alen ginsberg

desculpa
ter as páginas soltas do teu livro howl and other poems

eu atravessei o inferno sob o céu de alguns amigos
que flutuavam ao som dos doors

conduzi muitas vezes o fiat 126
até ao vale furado praia do norte e falca
para libertar das cordas vocais
o impulso rítmico dos versos

as capas dos livros escolares
ainda estão cheias de poemas americanos
eram cábulas que me ajudavam a regressar ao fogo
a liberdade existia nesses embrulhos

tinha amigos com quem apanhava figos
e fumava charros nas ervinhas
o sítio onde hoje existem prédios
altos prédios civilizacionais
e esperava que durante as aulas me pedissem
para ler o resto do rodapé ao poema howl
todos se riam quando terminava o verso
...a língua e o sexo e a mão e o olho do eu são sagrados!

caminhava pelas brasas do inferno
e divertia-me e bebia cerveja às escondidas
passava noites inteiras no sótão das minhas primas
a ouvir led zeppelin
e a fazer de guarda

eu queria era ver
o joão grilo e o pássar'da névoa
a surfarem com mares à pinoca

fui espreitar lawrence ferlinghetti
quando o zé carlos e o rui o levaram à praia

fui ouvir o jorge palma a cantar
de guitarra nas mãos e pés descalços
frente à capitania

fui bisbilhotar as conversas
do rui veloso e do cavalheiro e do silvino e dos borda d'água
quando fumavam um grande cachimbo ao pé da bola de nívea

eu também fumava cachimbos com o russo e libânio
lá ao sul em frente aos estaleiros
e depois ia arranjar redes e encher agulhas
com o meu avô asa negra

fui ao pére-lachaise
e depositei o corpo indómito
na campa de james douglas morrison
e deixei um cigarro aceso enfiado na areia
que cobre paul éluard

vendi tudo:
o corpo a trabalhar
nas casas de banho do parque de campismo de albufeira
para comprar pão e leite

a assar peixe num restaurante
para depois me deixarem comer
os restos dos almoços e dos jantares

dormi na praia
e às cinco da manhã ajudava os pescadores
a pôr as lanchas n'água

vendi a alma
porque conhecia alguém justo
que caminhava estrada fora

obrigaram-me a ter bilhete de identidade
e conta bancária
e médico próprio
e a assinar o nome
em todos os papéis que me punham à frente
as instituições do bem social

queria não ser o filho da puta que sou
igual aos outros
industrial robot
convertido a toda a merda que me vendem

eu que só disse uma asneira aos doze anos
e porque os amigos da escola me obrigaram

desculpa lá pá
desculpa ter algumas folhas soltas do livro

sabes que aqui os livros das bibliotecas
ganham bolor
ficam húmidos
e ninguém se rala

tive de roubar o howl senão apodrecia
desculpa tá bem?


(de cafurnas, edição do Autor, 2002)

30.11.11


VICENTE ALEIXANDRE


QUERO SABER

Diz-me depressa o segredo da tua vida;
quero saber porque a pedra não é pluma,
nem o coração uma frágil árvore,
nem porque essa criança que morre entre duas veias-rios
não parte para o mar como todos os barcos.

Quero saber se o coração é uma chuva ou orla,
o que fica de lado quando dois se sorriem,
ou se é apenas a fronteira entre duas jovens mãos
que cingem uma pele ardente e imutável.

Flor, risco ou dúvida, ou sede ou sol ou látego.
O mundo inteiro e único, a ribeira e a pálpebra,
esse dourado pássaro que dorme entre os lábios
quando a alba penetra no dia lentamente.

Quero saber se uma ponte é ferro ou é desejo,
esse esforço para unir duas carnes íntimas,
essa separação dos peitos atingidos
por uma flecha nova surgida dentre a folhagem.

Musgo ou lua são o mesmo, o que a ninguém surpreende,
essa lenta carícia que de noite os corpos
percorre como uma pluma ou lábios que agora chovem.
Quero saber se o rio se afasta de si mesmo
cingindo as formas em silêncio,
cataratas de corpos que se amam como espuma,
até desembocarem no mar como o prazer consentido.

Os gritos são chibatas, eriçados espinhos,
vivo desespero de ver os curtos braços
erguidos para o céu suplicando à lua,
doloridas cabeças que no alto dormem, vogam,
sem respirar sequer como lâminas turvas.

Quero saber se a noite vê em baixo
brancos corpos de tela estendidos na terra,
falsas rochas, papelões, fios, pele, água parada,
pássaros como lâminas cravadas no chão,
ou ruídos de ferro, floresta virgem do homem.

Quero saber, altura, mar vago ou infinito,
se o mar é essa oculta dúvida que me embriaga
quando o vento trespassa transparentes crespões,
sombra, pesos, marfins, longas tempestades,
o esquálido cativo além invisível debatendo-se,
ou matilha de doces armadilhas.


(de A Destruição ou o Amor, tradução de Luís Pignatelli, publicações Dom Quixote, 1977 – poesia século XX)

29.11.11

GUILLEVIC


COISAS

Pratos de faiança, usados,
De onde o branco se escapa,
Viestes novos
Para nossa casa.

Aprendemos imenso
Desde esse tempo.


SUBÚRBIO

A custo de pé se mantêm os muros 
Ao longo desta rua
Íngreme, cheia de curvas.

Dir-se-ia que vieram todos, os do bairro,
Enxugar as mãos gordurosas no rebordo das janelas,
Antes de em conjunto penetrarem na festa
Onde parecia cumprir-se o seu destino.

Vê-se um comboio a arrastar-se por cima da rua,
Vêem-se luzes a acender-se,
Vêem-se quartos sem espaço.

Por vezes uma criança chora
Na direcção do futuro.


ELEGIA

Bebemos às escondidas
Em copos intactos
Vinho que talvez
Fosse para nós.

Bebemos às escondidas
Por entre as turbas
Que se moviam para o sol.

Era à saída dos nossos labirintos
E faltava-nos firmeza nas mãos.

As delícias do azul reservavam-se para a colina,
O cimo das árvores
E o ocioso gavião.

Tivemos a nossa hora e julgámos possível
Proteger as planícies e o próprio espaço.

Amámos às escondidas
E soubemos que não pode curar-se
Em pouco tempo alegria excessiva.


(in Poesias, tradução de David Mourão-Ferreira, editora Ulisseia, 1965 - originais de Terraqué, 1942)

28.11.11


JOSÉ BLANC DE PORTUGAL


Alfarrobeira

Parece que é uma alfarrobeira
Esta árvore
— E'inda p'ra mais florida! —
Por onde passo pelo menos cada dia quatro vezes.

Parece, mas não sei!
E, todavia...
Persisto em julgar-me um ser da natureza
Tão ou mais do que essa maravilha de enflorados troncos.

Não sei...
E não há todavias realmente a opor...
A palavra comum,
A mim,
À terra que a sustenta,
Ao ar que a estremece,
A essa, digamos, tal alfarrobeira,
E' o viver por e para tudo isso
                 e para mim também
Que tanto vivo para esse tronco enflorado
Como para em palavras,
Tão como ele cifradas,
Pôr imagens informes do real oculto.

1967


Úlcera crítica

Todos querem ser o que não são
E eu à regra não faço excepção.
           Se acontece que mil vezes mudo
           É só por querer depressa ser tudo.
           Tudo, entendamos, exclui meio milheiro...
           Em especial: académico e banqueiro.
           Um porque sabe a mais o que é de menos;
           O outro sofre muito se os lucros são pequenos. 
Ambos, porque sim e porque não, 
Esses querem bem ser o que são...

Admiro até, porém, as linhas rectas,
Mas a geometria é, realmente, coisa de poetas
           Que eu entorto em letras p'ra fazer um dístico 
           Capaz de fazer passar até por aforístico.
Mas sem sorte alguma:
Puras agulhas de pinheiro, simples caruma, 
           Seca como as rectas da geometria 
           — A grande irmã secreta da poesia
Que faz as úlceras dos críticos
Em seus comentários analíticos...

1967

 
O Tempo e a Liberdade

Fosse meu o tempo e ele, por certo, Não seria assim:
Roubava-o na medida, evidentemente
A favor de mim.

O Tempo disse-me então:
— Por minha culpa não serás ladrão;
Dou-me como me quiseres gastar;
Perde-me à vontade.
Mas escusas de ir gritando empestando o ar:
«E onde fica a minha Liberdade?!»

1967


(in Ocidente - Revista Portuguesa de Cultura, N.º 414 / Outubro, 1972)