m. parissy
as páginas soltas
para alen ginsberg
desculpa
ter as páginas soltas do teu livro howl and other poems
eu atravessei o inferno sob o céu de alguns amigos
que flutuavam ao som dos doors
conduzi muitas vezes o fiat 126
até ao vale furado praia do norte e falca
para libertar das cordas vocais
o impulso rítmico dos versos
as capas dos livros escolares
ainda estão cheias de poemas americanos
eram cábulas que me ajudavam a regressar ao fogo
a liberdade existia nesses embrulhos
tinha amigos com quem apanhava figos
e fumava charros nas ervinhas
o sítio onde hoje existem prédios
altos prédios civilizacionais
e esperava que durante as aulas me pedissem
para ler o resto do rodapé ao poema howl
todos se riam quando terminava o verso
...a língua e o sexo e
a mão e o olho do eu são sagrados!
caminhava pelas brasas do inferno
e divertia-me e bebia cerveja às escondidas
passava noites inteiras no sótão das minhas primas
a ouvir led zeppelin
e a fazer de guarda
eu queria era ver
o joão grilo e o pássar'da névoa
a surfarem com mares à pinoca
fui espreitar lawrence ferlinghetti
quando o zé carlos e o rui o levaram à praia
fui ouvir o jorge palma a cantar
de guitarra nas mãos e pés descalços
frente à capitania
fui bisbilhotar as conversas
do rui veloso e do cavalheiro e do silvino e dos borda
d'água
quando fumavam um grande cachimbo ao pé da bola de nívea
eu também fumava cachimbos com o russo e libânio
lá ao sul em frente aos estaleiros
e depois ia arranjar redes e encher agulhas
com o meu avô asa negra
fui ao pére-lachaise
e depositei o corpo indómito
na campa de james douglas morrison
e deixei um cigarro aceso enfiado na areia
que cobre paul éluard
vendi tudo:
o corpo a trabalhar
nas casas de banho do parque de campismo de albufeira
para comprar pão e leite
a assar peixe num restaurante
para depois me deixarem comer
os restos dos almoços e dos jantares
dormi na praia
e às cinco da manhã ajudava os pescadores
a pôr as lanchas n'água
vendi a alma
porque conhecia alguém justo
que caminhava estrada fora
obrigaram-me a ter bilhete de identidade
e conta bancária
e médico próprio
e a assinar o nome
em todos os papéis que me punham à frente
as instituições do bem social
queria não ser o filho da puta que sou
igual aos outros
industrial robot
convertido a toda a merda que me vendem
eu que só disse uma asneira aos doze anos
e porque os amigos da escola me obrigaram
desculpa lá pá
desculpa ter algumas folhas soltas do livro
sabes que aqui os livros das bibliotecas
ganham bolor
ficam húmidos
e ninguém se rala
tive de roubar o howl
senão apodrecia
desculpa tá bem?
(de cafurnas, edição do Autor, 2002)
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