3.4.04

GUILHERME d'OLIVEIRA MARTINS

(...) O "melhor dos mundos possíveis" de Leibnitz obriga a procurar entender a dialéctica entre a possibilidade e a utopia. Não se trata de nos acomodarmos ou de nos conformarmos com uma ordem imperfeita ou desumana, mas de partirmos das condições concretas para podermos ultrapassar as meras boas intenções de que o inferno está cheio. Temos de encontrar causas mobilizadoras capazes de nos levarem à superação da indiferença e da acomodação, do egoísmo e do conformismo. Mas, como afirmava Hans Urs von Balthasar: "não é o saber absoluto, mas o amor absoluto que engloba os adversários". A compreensão mútua exige, assim, um suplemento de alma, um sentido crítico e a capacidade de entender as fronteiras sociais e humanas como pontos de encontro e de enriquecimento comum.

(excerto do artigo A cidadania como serviço, publicado no Jornal de Letras de 31 de Março de 2004)

2.4.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA]

LUIS DE GONGÓRA

De una dama que, quitándose una sortija, se picó con un alfiler


Prisión del nácar era articulado
(de mi firmeza un émulo luciente)
un dïamante, ingenïosamente
en oro también él aprisionado.

Clori, pues, que su dedo apremïado
de metal, aun precioso, no consiente,
gallarda un día, sobre impacïente,
lo redimió del vínculo dorado.

Mas, ay, que insidïoso latón breve
en los cristales de su bella mano
sacrílego divina sangre bebe:

púrpura ilustró menos indïano
marfil; invidïosa, sobre nieve
claveles deshojó la Aurora en vano.

[1620]


SOBRE UMA DAMA QUE, AO TIRAR UM ANEL, SE PICOU NUM ALFINETE

Grilhão do nácar era articulado,
de eu ser tão firme imitador luzente,
um diamante, engenhosamente
em ouro também ele encarcerado.

Clóris, porém, que seu dedo apertado
por metal mesmo raro não consente,
briosa um dia, além de impaciente,
resgatou-o do vínculo dourado.

Mas, ai, um insidioso latão breve
nesses cristais de sua bela mão
sacrílego, divino sangue bebe:

púrpura não pôs tanta ilustração
no marfim; e, invejosa, sobre neve
cravos desfolhou a Aurora em vão.


De un caminante enfermo que se enamoró donde fue hospedado

Descaminado, enfermo, peregrino,
en tenebrosa noche, con pie incierto
la confusión pisando del desierto,
voces en vano dio, pasos sin tino.

Repetido latir, si no vecino,
distinto, oyó de can siempre despierto,
y en pastoral albergue mal cubierto,
piedad halló, si no halló camino.

Salió el Sol, y entre armiños escondida,
soñolienta beldad con dulce saña
salteó al no bien sano pasajero.

Pagará el hospedaje con la vida;
más le valiera errar en la montaña
que morir de la suerte que yo muero.

[1594]


SOBRE UM CAMINHANTE DOENTE QUE SE ENAMOROU ONDE FOI HOSPEDADO

Transviado, enfermos, peregrino
em tenebrosa noite, o pé incerto
a confusão pisando do deserto,
em vão gritou e caminhou sem tino.

Um ladrar repetido, não vizinho,
claramente ouviu de um cão desperto,
e em pastoril albergue mal coberto
a piedade achou mas não caminho.

Veio o Sol, em arminhos escondida
sonolenta beldade em doce sanha
o malsão passageiro acometeu.

A hospedagem pagará co'a vida;
mais lhe valerá errar pela montanha,
do que morrer da mesma sorte que eu.


Inscripción para el sepulcro de Domínico Greco

Esta en forma elegante, oh peregrino,
de pórfido luciente dura llave,
el pincel niega al mundo más süave,
que dio espíritu a leño, vida a lino.

Su nombre, aún de mayor aliento dino
que en los clarines de la Fama cabe,
el campo ilustra de ese mármol grave;
venéralo y prosigue tu camino.

Yace el Griego. Heredó Naturaleza
Arte; y el Arte, estudio. Iris, colores.
Febo, luces (si no sombras, Morfeo).

Tanta urna, a pesar de su dureza,
lágrimas beba, y cuantos suda olores
corteza funeral de árbol sabeo.

[1614]


INSCRIÇÃO PARA O SEPULCRO DE EL GRECO

Em esta forma elegante, oh peregrino,
de pórfiro luzente dura chave,
o pincel nega ao mundo mais suave,
que deu espír'to ao lenho, vida ao linho.

Pra seu nome é alento inda mesquinho
tudo o que nos clarins da Fama cabe;
o campo ilustra desse mármore grave.
Venera-o e prossegue o teu caminho.

Jaz o Grego. Herdou a Natureza
Arte; e a Arte, estudo; Íris, cores;
Febo, luzes; se não sombras, Morfeu.

Tanta una, mesmo com sua dureza,
lágrimas beba, e quantos sua olores
fúnebre casca do tronco sabeu.


Cosas, Celalba mía, he visto extrañas:
cascarse nubes, desbocarse vientos,
altas torres besar sus fundamentos,
y vomitar la tierra sus entrañas;

duras puentes romper, cual tiernas cañas,
arroyos prodigiosos, ríos violentos,
mal vadeados de los pensamientos,
y enfrenados peor de las montañas;

los días de Noé, gentes subidas
en los más altos pinos levantados,
en las robustas hayas más crecidas.

Pastores, perros, chozas y ganados
sobre las aguas vi, sin forma y vidas,
y nada temí más que mis cuidados.

[1596]


Coisas, Celalba, tenho visto estranhas:
rasgar-se nuvens, desfrear-se ventos,
altas torres beijar seus fundamentos
e a terra vomitar suas entranhas;

duras pontes quebrar, qual tenras canas;
regatos raros, rios violentos,
mal vadeados pelos pensamentos
e travados pior pelas montanhas;

nos dias de Noé, gentes subidas
nos mais altos pinheiros levantados,
nas robustas faias mais crescidas.

Pastores, cães, choupanas, muitos gados
vi sobre as águas, já sem forma e vidas,
e nada temi mais que meus cuidados.

(traduções de José Bento)

1.4.04

LUCIANO
(125-190)

Já que não tinha nada de verídico para narrar..., virei-me para a mentira, mas uma mentira mais desculpável do que a daqueles [os autores de ficção], porquanto numa coisa serei eu verdadeiro: ao confessar que minto. Desta forma, isto é, declarando que não digo nem um pingo de verdade, creio ficar absolvido da acusação que porventura me façam. Escrevo, pois, sobre coisas que não testemunhei nem experimentei, e que não soube da boca doutrem; mais ainda: que não existem em absoluto e que, de qualquer forma, não são susceptíveis de ocorrer. Portanto não deve o leitor dar o mínimo crédito às minhas histórias.

(do Prólogo de Uma História Verídica, prefácio, tradução e notas de Custódio Magueijo, editorial Inquérito, s/d - edição bilíngue)
A grande verdade que me fica deste dia é a voz de Elis Regina cantando a rir.

31.3.04

OCTAVIO PAZ

APARIÇÃO


Voam aves radiantes destas letras. Amanhece a desconhecida em pleno dia, sol rival do sol, e irrompe entre os brancos e negros do poema. Pia na espessura do meu assombro. Pousa no meu peito com a mesma suavidade inexorável da luz que reclina a fronte sobre uma pedra abandonada. Estende as asas e canta. A boca é um pombal de que lhe brotam palavras sem sentido, fonte deslumbrada pelo seu próprio brotar, brancuras atónitas de ser. Logo desaparece.
Inocência entrevista, que cantas na encosta do poente à hora em que eu sou um rio que desaparece no obscuro: que frutos picas aí em cima? Em que ramos de que árvore cantas os cantos da altura?


DAMA HUASTECA

Ronda pelas margens, nua, saudável, recém saída do banho, recém nascida da noite. No seu peito ardem jóias arrancadas ao verão. Cobre-lhe o sexo a erva murcha, a erva azul, quase negra, que cresce nos bordos do vulcão. No seu ventre uma águia estende as asas, duas bandeiras inimigas enlaçam-se, repousa a água. Vem de longe, do país húmido. Poucos a viram. Direi o seu segredo: de dia, é uma pedra ao lado do caminho; de noite, um rio que flui às costas do homem.

(de águia ou sol?, Hiena editora, 1985 - tradução de Rui Rosado)
Justificação de um voto

Acordei hoje para a blogolândia com uma inquirição pública em umblogsobrekleit: A América deve fazer um "piercing" no umbigo?

Quem lá costuma ir sabe certamente que América, neste caso, é um antropónimo e não um topónimo, como poderia parecer à primeira vista.

Votei não. O umbigo é a parte mais luminosa de uma mulher: não convém que seja obliterado.

30.3.04

O caro Mário, que não conheço ainda pessoalmente, mas que mora aqui perto, colocou no blog dele uma ligação para o meu. Parece-me que sou dos poucos (talvez o único) não evangélicos da lista. É um privilégio comparável ao de o José ser judeu honorário.

Calculo que tal privilégio tenha a ver com o facto de terem dito ao Mário que eu tenho a 1ª edição do In Vivo dos GNR.
Pois eu informo que tenho o Independança também.

29.3.04

ABEL NEVES

Então eu vou explicar o que é uma natureza morta.
Vejo-me com um pêssego na mão sentado à direita de um quadro de Vieira da Silva, pode ser aquele d' As treze portas, com título directo em francês, cuja porta central é o rasgão fino de luz numa espécie de tela ou parede teatral, ruína séria, e olho em frente, até ao fim do tudo e do nada, e entretanto passam diante os públicos, sucessivamente, com lentidão, o povo dos séculos futuros, leitores entusiastas do incompreensível que é cada vez mais compreendido... acumulam-se os saberes, tombam como neve, e depois... após o sol, após a chuva... o que era um homem sentado à direita de um quadro é agora uma natureza morta. A língua inglesa chamar-lhe-ia... still life.
With peach and canvas.


(de Centauros, edições Asa, 2000 - Finisterra)

28.3.04

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Voz entre árvores


Ouço a tua voz de mil murmúrios e de um só espaço,
de uma só visão silenciosa.
Tu já começaste há muito com o sol e com os pássaros.
A tua voz ilumina as folhas e as pedras.
Eu sou o que começa, o que quer começar
para estar contigo entre as árvores e a água.
Aspiro a luz com o hálito de uma criança.
Estou enraizado numa pedra junto a um ribeiro.
Tu cantas e é o espaço que canta, um só desejo
que principia e adormece e no sono principia.

(de O Não e o Sim, Quetzal editores, 1990 - Graffiti)
Poesia é...

...um tipo cheio de piercings, num autocarro suburbano na A5, pegar no telemóvel para tirar uma fotografia ao pôr-do-sol num dia chuvoso.