17.2.07

SALVATORE QUASIMODO

NA FORTALEZA DE BÉRGAMO ALTA


Ouviste o grito do galo no ar
além das muradas, além das torres
gélidas de um dia que ignoravas,
grito fulmíneo de vida, e o ciciar
de vozes dentro das celas, e o chamar
de pássaro da ronda antes da alva.
E não pronunciaste palavras para ti:
estavas já no círculo estreito:
e silenciaram o antílope e a garça
perdidos num sopro de fumo maligno,
talismãs de um mundo apenas despertado.
E passava a lua de fevereiro
Aberta sobre a terra, mas em ti forma
De memória, atenta ao teu silêncio
Também tu entre os ciprestes da Fortaleza
ora vás sem rumor; e aqui a ira
se aquieta ao verde dos jovens mortos,
e a piedade distante é quase alegria.

(in Poesias Escolhidas, tradução de Sílvio Castro, editora Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1973 - original de Giorno dopo Giorno, 1947)

16.2.07

(atribuído a) TSEHHAS

O GRANDE PREFÁCIO
(Day Dzuy)


1. A poesia é fruto duma ideia. A ideia está na alma; quando expressa em palavras, torna-se poesia.
2. Os sentimentos que se agitam na alma, traduzem-se em palavras. Quando a palavra não basta, recorre-se às exclamações. Se nem estas chegam, canta-se; e por fim, instintivamente, encontramo-nos a gesticular e a dançar.
3. As emoções traduzem-se em sons, os quais, combinados com arte, se tornam música. Em tempos em que reina a ordem, as músicas são calmas, com tendência para alegres. O bom governo é harmonia. Se reina a desordem, a música vai de queixosa a impaciente, porque há discórdia no governo. Se um estado vira à ruína, então a música é triste e preocupada, pois o povo está em aflição.
4. Por isso mesmo, para exprimir correctamente os êxitos ou os fracassos da governação, para mover o céu e a terra, e despertar os Espíritos dos Mortos, não há como a poesia.
5.Com ela regulam os antigos Reis as obrigações de maridos e mulheres, inculcam a obediência e reverencia aos filhos, asseguram o respeito de todas as relações sociais, prestigiam a eficácia transformadora da educação e promoveram a civilidade e os bons costumes.
6. É por isso que no Livro dos Cantares há 6 estilos: o da sátira (phoq), do idílio (bhoes), do apólogo (pi), o épico (xheq), o parenético (ngah) e o panegírico (dzõw).
7. Nas sátiras (phoq), os Superiores moralizam os súbditos, e estes satirizam aqueles. O principal nelas é o estilo, em que a censura é habilmente insinuada. Ouve-se sem ofensa; mas isso basta para que o alvejado tenha mais conta consigo. Por isso é que se chma “Phoq”: árias ou virações.
8. Quando os governos entram em decadência, as regras da boa educação e equidade são descuradas e a educação pública torna-se deficiente. Daí regimes diversos nos diversos Estados, e variedade de costumes nas famílias. Isso dá origem a uma alteração no estilo da sátira e da parenese.
9. Os cronistas dos Estados, atentos aos sintomas de êxito ou de fracasso, e pesarosos com a alteração das relações sociais, lamentando os rigores das penas infligidas, exprimiram esses sentimentos em sátiras aos Superiores, com a ideia de mudar o curso das coisas, voltando-se aos bons costumes antigos.
10. Tais sátiras, embora alteradas (pyen phoq), para dar expressão ao sentimento, não saíram dos limites das conveniências. Tal expressão do sentimento é natural ao povo. O facto de ser comedida, deve-se aos Reis antigos.
11. As sátiras referem-se a um Estado e às obrigações dum Soberano.
12. Quando se trata do Império todo, e de morigerar os costumes em geral, entra o estilo parenético (ngah). Parenese quer dizer moralizar. Expõem-se as causas do êxito ou do fracasso da coisa pública. E como na Governação há coisas de maior e de menor importância, daí a distinção entre Parenese Menor e Maior (Siau Ngah e Day Ngah).
13. Os hinos (dzõw) chamam-se assim porque louvam os modelos duma virtude perfeita, levando aos Espíritos dos Antepassados o conhecimento dos seus feitos.
14. Formam os Hinos a IV parte do cancioneiro. Começam os Cantares.

(in Livro dos Cantares / She Keng, tradução de Joaquim A. Guerra, S. J., Jesuítas Portugueses, 1979)

15.2.07

JOÃO RUI DE SOUSA

A ESCRITA E A FALA


Enquanto o foco da fala
é um jacto que esmorece
no transeunte que abala
para a confusão da estepe
de cimento e ruas pálidas
de murchas árvores cercadas
por lebres motorizadas
(velozes balas ao vento)
a escrita
é um paulatino
ciclista que pedala
na cadeira de um jardim
ou no campestre da sala:
em sossego de marfim
pronto a reter enxurradas
de uma alma em corrupio
por tantas coisas sonhadas,
semoventes, renovadas
- tais sons em trilos de flauta
em torno aos peixes de um rio.

(de Lavra e Pousio, publicações Dom Quixote, 2005)

14.2.07

VLADIMIR NABOKOV

(...)
«Sempre me afligiu», escreve Sebastian Knight em Lost Property, «o facto de nos restaurantes as pessoas nunca repararem nos enigmas animados que lhes trazem a comida, recebem os casacos e abrem as portas à sua frente. Relembrei um dia a um homem de negócios com quem almoçara semanas antes que a mulher que nos entregara os chapéus tinha os ouvidos tapados com algodão. Ele ficou perplexo e disse que não dera sequer pela presença de mulher nenhuma.
... Um indivíduo que não repara no lábio fendido de um motorista de táxi só porque está com pressa de chegar a algum lugar é para mim um monomaníaco. Muitas vezes me senti como num mundo de cegos e loucos, quando pensava que era a única pessoa no meio da multidão a interessar-se pelo ligeiro, ligeiríssimo coxear da vendedora de chocolates.»
(...)

(excerto de A Verdadeira História de Sebastian Knight, tradução de Ana Luísa Faria, publicações Dom Quixote, 1990)