5.3.11

J. M. G. LE CLÉZIO


[…]
Beleza viva, beleza que existe por si mesma, sem ter de ser reconhecida, exibida, vendida; chega, natural, semelhante à linguagem, da profundidade maior do tempo, sem que seja preciso mudar-lhe um só fragmento. Depois, do outro lado do tempo vai, no centro do próprio porvir, inalterável beleza que é a única liberdade humana.
Basta de arte, basta de expressões individuais! Mas sim: estar unidos, e em conjunto saber ler.
As proezas da ciência, as proezas da linguagem, as proezas dos conquistadores: tudo sem dúvida falsas vitórias, visto não saberem senão subjugar os que as realizam. Os heróis não triunfam, são vítimas das suas próprias palavras.
Mas os que não são heróis, os índios: vivem, assim, cada qual em seu lado, não inventam nada. Não querem conquistar o mundo, não pretendem persuadir as multidões. Não querem dominar com as suas palavras, com as suas vozes. Instintivamente, o homem índio elimina tudo o que o separe, tudo o que o pudesse tornar superior. Não lhe importa a análise, a história, a missão. Encontra-se de imediato no interior do mundo, no centro da vida. Não precisa seguramente de livros, nem de quadros – todo o homem é um livro, é um quadro. A perfeição, a lógica, as ideias novas, isso que é? O índio leva na pele, à sua volta, nos signos quotidianos, a expressão da beleza, a liberdade.
É isso o que dizem os índios, e não queremos ouvi-los: TODA A GENTE É INTELIGENTE.

(excerto de Índio Branco, tradução de Júlio Henriques, Fenda edições, 1989 – Títulos do Tesouro)
MARIA REGINA LOURO / MIGUEL SERRAS PEREIRA


ENDEREÇO E ENVIO

Não, que se desiludam os pregoeiros e arautos da necessidade como prova ou regra, não escrevemos ou lemos por nos ser impossível fazer outra coisa, tal como também não é em lugar de outra coisa, na ausência ou à falta de melhor que lemos já mais livros do que lembramos ainda, ou escrevemos agora estas páginas.
As necessidades da sobrevivência são poucas e as poucas que podemos enumerar ainda duvidosas: não têm história nem explicam nada, como haviam de ser pedra de lei dos nossos destinos?
Pelo contrário, os desejos são muitos e múltipla a singularidade de cada um. Se, para além da sobrevivência, temos necessidade de alguma coisa é do desnecessário ou, dito afirmativamente, desse supérfluo ou excesso, desse cultivo apaixonado dos detalhes, dessa arte de não deixar que grande coisa alguma seja tudo, que foram postos à conta da futilidade das mulheres (e tanto mais quanto menos sérias as julgaram), no rol das condenáveis mas, apesar de todas as opressões, inextinguíveis «preocupações» femininas.
É por e para novas bárbaras, para as e os que as topam, que escrevemos se o fazemos também para alguém. Os que leiam por obediência ou por saber a que lei obedecer não têm falta de códigos e outros «livros em geral» para digerir e assimilar, e que os assimilem ou integrem nesta ou naquela facção dominante do Império. Por uma vez, tomando o ar um pouco teatral de quem se lhes dirige, gostaríamos de pedir-lhes que neste simulacro de livro não procurem regras de equivalência nem artigos de código: o que escrevemos não é sério, não tem «fim da História» nem programa de governo. O aviso está feito.
Mais delicado, porém, quereríamos que fosse o explicitar da trémula ousadia que nos leva agora a dizer inconfessável o quanto, ao longo destas páginas, nos inspirou a imaginação de outras paixões, em relação a nós outras, e a expectativa de por elas – quem? – virmos a ser lidas.


(excerto de Novas Bárbaras, Assírio & Alvim, 1979 – Cadernos Peninsulares / Literatura)