4.12.04

JOSÉ BENTO

RESPIGO: OUTRA ESTAÇÃO

30.


Novembro apagou nas buganvílias
seus nomes brancos, roxos, escarlates.

É mais difícil regressar a casa:
o caminho disfarçou, emudeceu
seu rosto nos muros e nas grades.

- Por onde seguiremos
sem que o outono espesso nos traspasse?

(de Um Sossegado Silêncio, edições Asa, 2002 ? pequeno formato)

27.10.04

DYLAN THOMAS

POEMA NO SEU ANIVERSÁRIO


Na semente de mostarda do sol,
Junto ao rio caudaloso e à cachoeira do mar
Onde veloz voa o cormorão,
Na sua casa em andas hasteada entre os bicos
E o arandel dos pássaros
No grão de areia deste dia na ladeira da cova da baía
Ele celebra e troça
O lenho à deriva dos seus trinta e cinco ventos tornados idade;
Garças elevam-se e lanceiam.

Debaixo e em redor de si vão
Solhas, gaivotas, com rastos moribundos e frios,
Fazendo o que lhes é dito,
Maçaricos estridentes nas ondas com safios
Lidam nas suas vias para a morte,
E o versejador na sala de longa língua,
Que tange o sino do seu aniversário,
Labuta para a cilada das suas chagas;
Garças, caules de campanário, abençoam.

Na queda da lã de sementes do cardo,
Ele canta caminho à angústia; voa o tentilhão
Nos cursos de garras de falcões
Num céu rapace; pequenos peixes deslizam
Por quelhos e conchas de cidades
De navios naufragados para pastos de lontras. Ele
Na sua casa torta e torturada
E nas espiras cinzeladas do seu ofício avista
Garças, sudários que caminham.

O manto do rio interminável
De vairões volteando a tecer as suas rezas;
E sabe que no mar lá longe,
Ele que moureja para o seu fim acocorado e eterno
Debaixo duma nuvem serpente,
Os golfinhos mergulham de dorso no pó,
As crespas focas raiam para o fundo
A matar e o seu próprio sangue que tinge a maré
Que bem que desliza na boca polida.

Num cavernoso, agitado
Silêncio de onda, o choro branco do ângelus toa.
Trinta e cinco sinos cantam tangidos
Em cicatriz e caveira, naufragados amores seus
Das estrelas cadentes guiados.
E o dia de amanhã chora numa grade cega
Que o terror rasgará em pedaços
Antes dos grilhões rebentarem num martelo em chamas
E o amor escancarar o escuro

E livremente vai perdido
Na famosa luz desconhecida do grande
Deus fabuloso e amado.
O escuro é um caminho e a luz é um lugar,
O céu que nunca foi
Nem nunca será é sempre verdadeiro,
E, nesse vazio de sarça,
Miríades como as amoras nos bosques
Os mortos crescem para a Sua alegria.

No lugar onde poderia errar nu
Com os espíritos da baía em ferradura
Ou os mortos costeiros dos astros,
Medula de águias, raízes de baleias
E quilhas dos gansos bravos,
Com Deus abençoado e incriado e o seu Espírito,
E cada alma um sacerdote Seu,
Logrado e chantre no jovem aprisco do Céu
Ser em tremente paz de nuvem,

Mas o escuro é um longo caminho.
Ele, na terra da noite, sozinho
Com todos os vivos, reza,
Sabe como o foguete do tempo vai soprar
Os ossos para fora das colinas
E os rochedos ceifados sangrar e a sanha
Das últimas águas estilhaçadas coicear
Mastros e peixes para as quietas rápidas estrelas,
Sem fé e até Ele

Que é a luz do velho
Céu em forma de ar onde as almas braveiam
Como cavalos na espuma:
Oh, possa eu chorar a meio da vida com as preces
Das garças druidas e consagradas
A viagem para a ruína que tenho de trilhar,
Madrugueiros barcos retidos em terra,
Mesmo assim, a clamar com a língua delapidada,
Conto em voz alta minhas bênçãos:

Quatro elementos e cinco
Sentidos, e o homem um espírito apaixonado
Enredando-se no vórtice deste lodo
Até ao reino que há-de vir, suave, sino, nimbo
E os perdidos domos ao luar
E o mar que esconde os seus secretos eus
Na funda base negra feita de ossos,
Canção das esferas na carne das conchas,
E sobre todas esta última bênção,

Quanto mais perto me movo
Para a morte, homem só em cascos com rombos,
Mais alto o sol floresce
E o mar retalhado e em ruínas exulta;
E cada onda do caminho
E cada tempestade enfrento, e toda a terra então,
Com fé mais triunfante
Do que sempre houve desde que foi dito o mundo,
Tece a sua manhã de louvor,

Ouço as impetuosas colinas
Erguerem-se festivas e mais viçosas ao cair das bagas
Castanhas e as cotovias do orvalho cantarem
Mais alto no trovão súbito deste maio e quão
Mais arqueadas de anjos cavalgam
As ilhas em fogo com as almas dos homens! Oh,
Mais santas que seus olhos
E meus homens fulgentes nunca mais sozinhos
Enquanto me faço ao mar para morrer.

(tradução de Joaquim Manuel Magalhães, em apêndice a Dylan Thomas - consequência da literatura e do real na sua poesia, Assírio & Alvim, 1982 - o original pode ser visto aqui)

26.10.04

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Há uma certa cegueira vidente no poema e na palavra silenciosa
que o precede e o move. Sem essa parte obscura a palavra
imobilizar-se-ia na evidência da sua visão. Por isso, escrever é
avançar, de ruptura em ruptura, através de um domínio obscuro
onde, a cada passo, se nos depara algo imprevisível. O poema
não reproduz nem designa porque o seu movimento se antecipa à
cristalização dos conceitos e das enunciações póstumas. O seu
objectivo não é o real, mas a energia nascente que incorpora na
sua dinâmica substância. O que se retira ou se retrai é idêntico ao
que se manifesta e se ausenta na sua própria manifestação. Nunca
a palavra é uma doação integral da presença mas o seu horizonte
mantém-se na abertura viva a si própria e ao mundo que a rodeia
no interior do seu círculo inaugural.

(de Relâmpago de nada, Labirinto, 2004)
ANIVERSÁRIOS REDONDOS d'OUTUBRO

dia 17: António Ramos Rosa fez 80 anos - assinalado pelo Mil Folhas desta semana, com Inéditos e um texto de Fernando Pinto do Amaral;

dia 21: 150 anos do nascimento de Jean-Arthur Rimbaud - assinalado pelo Quartzo, que nos informa que existe um site oficial da efeméride;

amanhã: 90 anos do nascimento de Dylan Thomas.

20.10.04

ANTÓNIO OSÓRIO

LXXIV: O POETA É UM PINTOR CEGO
(MIGUEL ÂNGELO)

Cego de palavras.
Intempéries, da verdade.
Chuva
futura, manancial
de nuvens.

Palavras ígneas:
acendalha, carqueja,
lava impreterível.

Ou constrangidas:
pureza, embalsamar o tempo,
amor desdobrável.

Palavras desgraçadas:
orfanato, coval, magarefe
untuoso de sangue.

Ou felizes:
filodendro, verdelha, cordeiro
dormindo no dorso de sua mãe.

Palavras proibidas:
absoluto, garganta
do rio, vidente do insolúvel.

E outras cegas palavras:
a imunidade
(orgulhosa) do suplicante.
O resgate - ilacerável, imenso.

(de Décima Aurora, 1982)
Textos demasiado longos, demasiado curtos, demasiado alinhados, demasiado desalinhados, demasiado presentes, demasiado ausentes, demasiado sociais, demasiado espirituais, demasiado heréticos, demasiado profanos, demasiado atabalhoados, demasiado perfeitinhos, demasiado iconoclastas, demasiado ortodoxos.

19.10.04

EUGÈNE IONESCO

Sejamos vivos, estejamos presentes no instante como estávamos há dez anos, há vinte anos, há cinquenta anos, sessenta anos. O instante de há muito tempo não era nem mais longo nem mais curto que o instante de hoje.
Que verdade profunda a que se diz sobre La Palice: «Um quarto de hora antes da morte, ainda ele estava vivo.» Todos nós nos encontramos um quarto de hora ou não, um quarto de hora ou mais, antes da morte. Toodos vivemos em momentos tão longos, tão curtos, em tão numerosos instantes, tão numerosos instantes, inúmeros instantes...
Deitada, ao meu lado, lê. Serenamente. O meu amor não é irreal, o amor não é irreal. A vida do amor é de uma realidade irrefutável. Tenho agora a certeza de que o amor é eternamente irrefutável.

(in A Busca Intermitente, tradução de Manuel João Gomes, Difel, 1990)

6.10.04

[a propósito e em complemento da evocação que faço na Terra da Alegria, deixo aqui um soneto de um homem lúcido, generoso e bom]

Padre ABEL VARZIM

Que fazes tu aí, oh! Cristo antigo,
Pregado nessa Cruz, eternamente?
Liberta a tua mão omnipotente,
Desprega esses teus pés... e vem comigo!

Não sabes que, sem Ti, nada consigo?
Não vês que fazes falta a tanta gente?
Oh! vem de novo como antigamente,
Viver connosco e nós contigo!

Não vens? Não queres ouvir a humilde prece
Num Mundo que, sem Ti, desaparece,
Vencido pela morte e pela dor?

Não vens? Não pode a Cruz ficar sozinha?
Pois bem: Permite, então, que seja minha!
Eu fico nela... e desce Tu, Senhor!

(publicado pela primeira vez por Domingos Rodrigues em Abel Varzim - Apóstolo Português da Justiça Social, Rei dos Livros, 1990)

[e isto anda tudo ligado: o Miguel desabafa sobre a necessidade do sobressalto para ultrapassar a dificuldade da oração quando o Tim constata que "o Amor é talvez a chave que desequilibra a favor do Bem os pratos da balança do acaso", frase que remete para o que o Lutz nos dirá na próxima 2ª feira]

5.10.04

RAUL BRANDÃO

[excerto de O MEU DIÁRIO - 9 de Outubro de 1910]

Oh meu Deus; nestas ocasiões é que eu queria ver por dentro estes homens lívidos e com um sorriso estampado na cara, que sobem e descem as escadas dos ministérios, para aderirem à República! É este e aquele, os que estão ameaçados de perderem os seus lugares, as altas situações, o poder. Os tipos não importam - o que importa é o fantasma que transparece atrás da figura; o que importa é o monólogo interior, as verdadeiras palavras que não se pronunciam, o debate que não tem fim, o que nestas ocasiões ruge lá dentro sem cessar. Escutá-los a todos! possuir o Dom mágico de ouvir através das paredes e dos corpos!... Toda a noite, toda a noite de Cinco de Outubro quantos perguntaram ansiosos: - Quem vai vencer? onde é o meu lugar?... Bem me importam a mim as tragédias e as mortes!... Interesses, ambição, medo, tantos fantasmas que nem eu supunha existir e que levantam a cabeça!...
Não há nada que chegue a estes momentos históricos em que o fundo dos fundos se agita e remexe, para cada um se avaliar e saber o que vale uma alma...
E o desfile segue - o desfile dos que sobem as escadarias dos ministérios, dos que descem as escadarias dos ministérios, uns já com o olhar de donos, mas vacilantes ainda, sem poderem acreditar na realidade, outros com um sorriso estampado que lhes dói. Estamos todos lívidos por fora e por dentro...

(incluído no "Tomo II" de Memórias - edição de José Carlos Seabra Pereira, Relógio d'Água, 1999 - Obras Clássicas da Literatura Portuguesa / Séc. XX)

9.9.04

[um dos grandes músicos do nosso tempo faz hoje 60 anos]

ROGER WATERS

5:01 AM: THE PROS AND CONS OF HITCHHIKING


An angel on a Harley
Pulls across to greet a fellow rolling stone
Puts his bike up on it's stand
Leans back and then extends.
A scarred and greasy hand... he said
How ya doin bro?... Where ya been?... Were ya goin'?
Then he takes your hand in some strange Californian handshake
And breaks the bone
Have a nice day

A housewife from Encino
Whose husband's on the golf course
With his book of rules.
Breaks and make a 'U' and idles back
To take a second look at you
You flex your rod
Fish takes the hook
Sweet vodka and tobacco in her breath
Another number in your little black book

These are the pros and cons of hitchhiking
These are the pros and cons of hitchhiking
Oh baby I must be dreaming
I'm standing on the leading edge
The Eastern seaboard spread before my eyes
"Jump" says Yoko Ono
"I'm too scared and too good looking" I cried.
"Go on", she says
"Why don't you give it a try?
Why prolong the agony all men must die?"

Do you remember Dick Tracy?
Do you remember Shane?
And mother wants you

Could you see him selling tickets
Where the buzzard circles over
Shane
The body on the plain.
Did you understand the music Yoko
or was it all in vain?
The bitch said something mystical "Herro"
So I stepped back on the kerb again.

These are the pros and cons of hitchhiking
These are the pros and cons of hitchhiking
Oh babe, I must be dreaming again

These are the pros and cons of hitchhiking

(do álbum The Pros and Cons of Hitch Hiking, 1984)

31.8.04

[entretanto, estejam atentos à retoma]

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

(...)
Não posso repetir as suas palavras: não as decorei e isto passou-se há muitos anos. E também não entendi inteiramente o que ele dizia. E algumas palavras mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhas arrancava da boca.
Mas lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavas que chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os restos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas.
(...)

(excerto de Homero, in Contos Exemplares, 1962)
[parto amanhã a caminho de Santiago de Compostela, como peregrino]

DANTE ALIGHIERI

(...)
Então um lume a nós se aproximou
da esfera onde saíra essa primícia
que Cristo por vigário nos deixou;
e a minha dama cheia de letícia,
me disse: «Mira, mira: eis o varão
por quem na terra se vai ver Galícia.»
(...)

(excerto do Canto XXV de Paraíso, in A Divina Comédia, tradução de Vasco Graça Moura, 2ª ed.: Bertrand, 1996)

27.8.04

[para a R.]

EDUARDO WHITE

É ou não é verdade
que a carinhosa maneira como choramos
quando nascemos
surpreende
nossos pés voltados para o ar?

Advirá daí o engenho que escondemos
e que nos faz ambicionar sonhar ou voar?

Não sabemos.
Mas quis a vida tivéssemos,
ao contrário de raízes
como as árvores,
estes olhos para as distâncias
ou então para os sonhos que não fazemos,
não tocamos
e só vemos
quando os temos voltados para dentro. Precisas de colher com o tempo a justa solidão que te refaz. Colher devagar, sem excessos, para que não desesperes e nem morrer te apeteça. Atravessa o silêncio, algum rumor enternece, não é o silêncio tão deserto. Cresce, com o coração em repouso és mais nascente e não se revela o medo. Mede a febre onde a febre se esconde, ouve o sangue silvar, a solidão acordará para a alma a ave que és e não conheces.

(de Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave, editorial Caminho, 1992)

26.8.04

LEOPOLDO MARÍA PANERO

CORRECCIÓN DE YEATS

(Extraída del poema "Prayer for old age")

Dios me proteja de pensar como esos
hombres que piensan solos y
viven por ello de olvidar lo
que pensaron -porque
la mente no está sóla y
Aquel
que canta la canción perdurable
demasiado la siente, demasiado.

Dios me proteja con más que su nombre,
Dios me proteja de ser un anciano
al que todos adulan y llamen
por el vacío de su nombre; oh, qué soy,
¿quién, si no puedo más,
que
parecer -por amor de cantar
entera la canción- siempre un loco?

Rezo -pues las palabras vacías se marcharon
sin ser oídas y sólo la plegaria queda
en pie- para que aun cuando tarde mucho
en morir y en escribir mi nombre
al fin sobre la lápida puedan
un día decir sobre ese frío
que no estuve loco.


(de Narciso en el acorde último de las flautas, 1979)


CORRECÇÃO DE YEATS
(Extraída do poema "Prayer for old age")

Deus me proteja de pensar como esses
homens que pensam sozinhos e
vivem por essa coisa de esquecer o
que pensaram -porque
a mente não está sozinha e
Aquele
que canta a canção duradoura
demasiado a sente, demasiado.

Deus me proteja com mais que o seu nome,
Deus me proteja de ser um velho
a quem todos bajulem e chamem
pelo vazio do seu nome; oh, o que sou,
- quem, se não posso mais,
que
parecer -por amor de cantar
inteira a canção- sempre um louco? -

Rezo -pois as palavras vazias se foram
sem serem ouvidas e apenas a oração fica
levantada- para que mesmo que demore muito
a morrer e a escrever o meu nome
por fim sobre a lápide possam
um dia dizer sobre esse frio
que não estive louco.

(tradução minha)
W. B. YEATS

A Prayer for Old Age


God guard me from those thoughts men think
In the mind alone;
He that sings a lasting song
Thinks in a marrowbone;

From all that makes a wise old man
That can be praised of all;
O what am I that I should not seem
For the song's sake a fool?

I pray - for fashion's word is out
And prayer comes round again -
That I may seem, though I die old,
A foolish, passionate man.


(de A Full Moon in March, 1935)


Uma Oração à Velhice

Deus me guarde daqueles pensamentos que os homens têm
Sozinhos no seu pensar;
Aquele que canta uma canção duradoura
Pensa num osso suculento;

De tudo o que torna sábio um velho
Isso pode ser o mais louvável;
Oh que sou eu que não devia parecer
Para que a canção crie um tonto?

Eu rezo - pois a vã palavra foi-se
E a oração volta a surgir -
Para que possa parecer, ainda que morra velho,
Um homem tonto e apaixonado.

(tradução minha)

10.8.04

HÉLIA CORREIA

Era uma vez um homem que nascera muito sábio. Ora, às vezes, tal facto aborrecia-o muito. Sempre com o nariz enfiado em livros velhos, sempre a escrevinhar relatórios para enviar aos outros sábios que moravam longe - naquele tempo não havia telefone -, sempre a pensar e a repensar, a fazer contas, a espreitar para os céus e para os caldeirões, que coisa! Então não tinha direito a descansar?
Parou e foi abrir uma janela. O sol - se bem que fosse um sol inglês estava cheio de força naquele dia - entrou por ali dentro, todo entusiasmado, porque era muito raro permitirem-lhe fazer uma visita àquele laboratório. Com a pressa, tropeçou contra um prisma de vidro e desfez-se nas suas sete cores. Surgiu um arco-íris na parede.
O sábio percebeu tudo o que se passara ficou ainda mais aborrecido:
- Pronto! Agora estraguei o mistério que havia no Arco-Íris do céu! Não passa de um espectro da luz solar que se refracta nas gotinhas de água. Acabaram-se as histórias sobre as panelas de ouro escondidas no lugar em que ele toca na terra. Ninguém mais verá nele a túnica de Íris, mensageira dos deuses, nem o sinal da paz entre Jeová e os homens. Mas que grande chatice!
Para desanuviar, foi dar um passeiozinho. Mas, como estava pouco habituado a andar, depressa se cansou. Sentou-se à sombra de uma macieira. E vai, caiu-lhe um fruto em cima da cabeça. Estava a saboreá-lo com delícia quando gritou de novo:
- Que chatice!
Descobrira, ali mesmo, as leis da gravidade.

(de A Luz de Newton, Relógio d'Água, 1988)


JOHN KEATS

(...)Do not all charms fly
At the mere touch of cold philosophy?
There was an awful rainbow once in heaven:
We know her woof, her texture; she is given
In the dull catalogue of common things.
Philosophy will clip an Angel's wings,
Conquer all mysteries by rule and line,
Empty the haunted air, and gnomed mine -
Unweave a rainbow, as it erewhile made
The tender-person'd Lamia melt into a shade

(from Lamia - part II, 1820)

4.8.04



[Alberto Giacometti fotografado por Henri Cartier-Bresson]
Maria Filomena Mónica revela hoje, no Público, "O Diário Secreto de Santana Lopes com a Idade de 48 Anos", onde, às tantas afirma: «(...)o Prof. [Boaventura] Sousa Santos declarava estar "Portugal no grau zero das alternativas". Se fosse a ele, estava caladinho. Caso contrário, ainda divulgo os poemas que publicou, num livrinho chamado Têmpera, editado pela Centelha, em 1980, sobre as "rachas das meninas".»

Antecipando a ameaça, passo a transcrever, do referido livro, um excerto (o poema é longo...) da

ODE À INFÂNCIA

(...)
são muitas as horas da tarde
quando as mãos do último cigarro
esfregam em louro
o triunfo sobre a autoridade
a moral escarpada da verdura
resvala dos cerros como a lua nova
alagada de medo
escancaram-se as cancelas
das secretas construções
nas ruínas do ciclone de quarenta
trabalhos manuais sem mestre nem montra
entram chefes guerras caracóis
tesouras e pauzinhos
nas rachas das meninas
na catequese é em coro
e em filas
no escuro dos intervalos
medem-se as pilas
Boaventura tens quebranto
dois te puseram três te hão-de tirar
se eles quiserem bem podem
são as três pessoas da Santíssima Trindade
que é Pai, Filho e Espírito Santo
mexo nos anos sinto nas mãos
a moleza da cera não fere
alastra
(...)

[o livro em questão é o nº 33 da colecção Nosso Tempo, que foi antecedido por Afluentes de Abril do conhecido advogado Celso Cruzeiro - apesar disso dessa colecção também fazem parte livros notáveis da poesia portuguesa dos anos 70]

3.8.04

MARGUERITE DURAS

- Despache-se a falar. Invente.
Ela fez um esforço, falou quase alto no café ainda deserto.
- O que seria preciso era habitar uma cidade sem árvores as árvores gritam quando há vento aqui há sempre sempre à excepção de dois dias por ano no seu lugar está a ver eu iria embora daqui não ficaria aqui todos os pássaros ou quase todos são pássaros do mar que se encontram mortos depois das tempestades e quando a tempestade pára e as árvores deixam de gritar ouvimo-los gritar sobre a praia como degolados isso impede as crianças de dormir não eu ia-me embora.
Ela deteve-se, os olhos ainda fechados pelo medo. Ele olhou-a com uma grande atenção.

(excerto de Moderato Cantabile, 4ª ed.: Difel, 2002 - tradução de Flora Larsson e Ana Paula Laborinho)

2.8.04

JOSÉ AFONSO

Por Trás Daquela Janela


Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão

Não pôs cravos na lapela
Por trás daquela janela
Nem se ouve nenhuma estrela
Por trás daquele portão

Se aquela parede andasse
Se aquela parede andasse
Eu não sei o que faria
Não sei

Se a minha faca cortasse
Se aquela parede andasse
E grito enorme se ouvisse
Duma criança ao nascer

Talvez o tempo corresse
Talvez o tempo corresse
E a tua voz me ajudasse
A cantar

Mais dura a pedra moleira
E a fé, tua companheira
Mais pode a flecha certeira
E os rios que vão pró mar

Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão

Na noite que segue o dia
Na noite que segue o dia
O meu amigo lá dorme
De pé

E o seu perfil anuncia
Naquela parede fria
Uma canção de alegria
No vai e vem da maré

Por trás daquela janela
Por trás daquela janela
Faz anos o meu amigo
E irmão

Não pôs cravos na lapela
Por trás daquela janela
Nem se ouve nenhuma estrela
Por trás daquele portão

(do álbum Eu vou ser como a toupeira, 1972)

1.8.04

[Faz hoje 27 anos que morreu o cardeal Cerejeira]

MÁRIO BEIRÃO

FALA DUM PASTOR
(NA GRANDE FESTA DE BEJA)


(Ao Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, Dom Manuel Gonçalves Cerejeira)

Aqui, neste solene descampado,
- Plaino de cismas e melancolia -
Tudo se volve a Deus; tudo irradia
Graça, Esperança, Espírito Sagrado:

E, nos sulcos abertos pelo arado,
Germina luz, um sonho, um novo dia;
E, do ocaso na mística elegia,
Brilham as chagas do precioso Lado!

Esta é a planície, que o silêncio embala,
- A grã planície, resplendente de oiro...
Que ela desperte ao som da vossa fala!

- Ó Príncipe da mais augusta igreja,
Por vosso influxo, a um gesto imorredoiro,
O pão do amor multiplicado seja!

(de O Pão da Ceia, edições Ática, 1964)


JORGE DE SENA

De púrpura andas vestido
Que Roma te concedeu
para que humilde defendas
o direito dos humildes
em Terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal!

Mas a mitra que te cobre
não te dói mais que os espinhos
na cabeça do teu Mestre.
Doem-te os cornos dos ricos
das terras de Portugal.
Ai cardeal, cardeal!

9 de Dezembro de 1956

(de Dedicácias, Três Sinais editores, 1999)

31.7.04

[a ironia da canção dos Xutos]

É amanhã dia 1 de Agosto
e tudo em mim é um fogo posto

28.7.04

Genocídio em Darfur

O Nuno da Rua da Judiaria tem estado a chamar a atenção, desde sexta-feira, para o genocídio que está nestes dias a acontecer no Sudão.

O boletim da Agência Ecclesia desta semana, também denuncia a situação e dá conta de alguns esforços que estão a ser desencadeados. Transcrevo:

«Ajuda para o Sudão
O enviado especial de João Paulo II ao Sudão, o arcebispo Josef Cordes, pediu aos católicos do mundo que se mobilizem por meio das instituições católicas de assistência, como a Cáritas, para sair em ajuda das populações do Darfur. O arcebispo, presidente do Conselho Pontifício "Cor Unum", fez uma análise dramática da situação no Darfur, região ocidental do Sudão, numa entrevista concedida à agência televisiva Rome Reports.
"Fala-se de dois milhões de refugiados, é um genocídio como o do Ruanda, mas em câmara lenta", assegura. Para explicar a origem do conflito, o prelado refere que "o povo sentia que não era bem tratado. Deste modo, criou-se um grupo de rebeldes que empreendeu a guerra contra o governo, contra o Estado". "Agora o governo actua contra eles para restabelecer a ordem e não parece que o faça da melhor maneira. Utiliza grupos milicianos tribais para atacar a população de Darfur", explica o arcebispo, após constatar que cerca de dez mil pessoas morreram neste conflito regional nos últimos meses.
A Caritas Internacionalis fez um apelo de forma a recolher dezoito milhões de dólares para levar ajuda, água, medicamentos e construir refúgios no Darfur. O presidente do "Cor Unum", que visita em nome de João Paulo II os locais do mundo mais afectados pela guerra ou pelas catástrofes naturais lamenta que o governo de Cartum "não facilite o acesso para fazer chegar estas ajudas às populações" e pede que "a comunidade internacional faça pressão sobre o governo do Sudão".
A Caritas Internationalis, confederação de 154 organizações católicas de ajuda, desenvolvimento e serviço social, já alertou para os números da crise humanitária no Darfur, província sudanesa, assinalando que mais de 1 milhão e 200 mil pessoas foram forçadas a abandonar os seus lares e estão espalhadas por um território duas vezes superior ao de França. As Nações Unidas estimam que mesmo que a ajuda internacional seja imediatamente entregue, 300 mil pessoas estão em risco de morte.»

Entretanto, a mesma agência acrescenta on-line mais desenvolvimentos.
Hoje é dia da Terra da Alegria
MIGUEL CASTRO HENRIQUES

O rapaz subiu a um banco de jardim todo coberto de folhas caídas e disse para quem o quisesse ouvir:
«Esta tarde não quero ter nome!»
E embora o tivesse dito com voz firme e sonora ninguém pareceu tê-lo ouvido.

(início de um conto de Uma Menina de sete Gatos ou O Saldo de Euler, Assírio & Alvim, 1992 - peninsulares / literatura)

26.7.04

Como se fora uma metáfora...

Na sexta-feira, dia em que morreu Carlos Paredes, passei a várias horas, por várias estações do Metro de Lisboa. Em todas o sistema de som difundia a música daquele mestre. Uma bela homenagem!

No entanto, em algumas das estações, o chinfrim do sistema de video-projecção com publicidade, intercalada por um pseudo-serviço infomativo, contaminava a voz da guitarra, como se fora uma metáfora...

20.7.04

[faz hoje 35 anos que dois escuteiros estiveram na lua]

R.E.M.

Man On The Moon


Mott the Hoople and the game of Life.
Andy Kaufman in the wrestling match.
Monopoly, Twenty one, checkers, and chess.
Mister Fred Blassie in a breakfast mess.
Let's play Twister, let's play Risk.
See you in heaven if you make the list.

Hey, Andy, did you hear about this one?
Tell me, are you locked in the punch?
Hey, Andy, are you goofing on Elvis?
Hey, baby, are we losing touch?

If you believed they put a man on the moon
If you believe there's nothing up his sleeve, then nothing is cool.

Moses went walking with the staff of wood.
Newton got beaned by the apple good.
Egypt was troubled by the horrible asp.
Mister Charles Darwin had the gall to ask.

Hey, Andy, did you hear about this one?
Tell me, are you locked in the punch?
Hey, Andy, are you goofing on Elvis?
Hey, baby, are you having fun?

If you believed they put a man on the moon
If you believe there's nothing up his sleeve, then nothing is cool.

Here's a little agit for the never-believer.
Here's a little ghost for the offering.
Here's a truck stop instead of Saint Peter's.
Mister Andy Kaufman's gone wrestling (wrestling bears)

Hey, Andy, did you hear about this one?
Tell me, are you locked in the punch?
Hey, Andy, are you goofing on Elvis?
Hey, baby, are we losing touch?

If you believed they put a man on the moon
If you believe there's nothing up his sleeve, then nothing is cool.

(do álbum Automatic for the People, 1992)

18.7.04

(atribuído ao) Rei DAVID

Quem habitará, Senhor, no vosso santuário,
quem descansará na vossa montanha sagrada?

O que vive sem mancha e pratica a justiça
e diz a verdade que tem no seu coração,
o que não usa a língua para levantar calúnias
e não faz o mal ao seu próximo
nem ultraja o seu semelhante,

o que tem por desprezível o ímpio
mas estima os que temem o Senhor,
o que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo,
e não empresta dinheiro com usura
nem aceita presentes para condenar o inocente.

Quem assim proceder
jamais será abalado.

(do Livro dos Salmos - tradução usada na liturgia católica)

12.7.04

PABLO NERUDA

O MAR


Um único ser, mas não existe sangue.
Uma carícia apenas, morte ou rosa.
Vem o mar e reúne as nossas vidas,
sozinho ataca e reparte-se e canta
em noite e dia e criatura e homem.
A essência: fogo e frio: movimento.

(de Plenos Poderes, tradução de José Bento, in Antologia de Pablo Neruda, editorial Inova SARL, 1973 - colecção as Mãos e os Frutos)
Hoje é dia da Terra da Alegria

11.7.04

ANTONIO GAMONEDA

Oír el corazón
en un silencio nuevo,
advertir el destino
donde estaba el deseo.

Oh verdadero amor,
qué sensación de tiempo
poseído, pensar
en el mundo y en ti
en sólo un pensamiento.

(in Edad - Poesía 1947-1986, Catedra, 5ª ed: 2000)

10.7.04

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

SEGREDOS


Segredos de uma espécie tão rara
na altura das grandes migrações
a vida pobre os bosques
o vento arrasa nuvens pelo céu
sem outro saber

O tempo era maior
do que se dizia
e ela dispunha-se a contar tudo
do mesmo modo delicado

para Maria de Lourdes Pintasilgo

(de De Igual para Igual, Assírio & Alvim, 2001)

9.7.04

EGITO GONÇALVES

Beijo não é palavra de poema. É o raiar da madrugada, o anúncio de um dia longo, o final da tensão que ameaçava partir a corda: podemos escolher imagens, comparações, fazer literatura. Será sempre outra coisa, meu amor, o beijo do poema. É como o branco que dizem ser a fusão de todas as cores. Não se retira um beijo do poema, este é apenas a fotografia de alguns pormenores. Um beijo é o corpo que antes não existia e ali nasce, uma nova estrutura óssea que suporta um pulsar único, um aposento onde o esplendor apaga todas as lágrimas que conseguiram viver até chegar ali.

(de O Mapa do Tesouro, editora Campo das Letras, 1998 - O Aprendiz de Feiticeiro)
[em face dos últimos acontecimentos]

MÁRIO CESARINY

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

(mais uma Nobilíssima Visão)

7.7.04

Dom HÉLDER CÂMARA

Que toda palavra


nasça
da ação e da meditação.
Sem ação
ou tendência à ação
ela será apenas teoria
que se juntará
ao excesso de teoria
que está levando os jovens
ao desespero.
Se ela é apenas ação
sem meditação
ela acabará no ativismo
sem fundamento,
sem conteúdo,
sem força...
Presta honras ao Verbo eterno
servindo-te da palavra
de forma
a recriar o mundo.

(de O Deserto é Fértil, editora Civilização Brasileira S. A., 1976)
Hoje é dia da Terra da Alegria.
Lá, tento fazer uma homenagem a Sophia de Mello Breyner. Reconheço que o texto não está grande coisa, ainda para mais pelo que pretende...
Sei que não é justificação que convença, mas é muito difícil expressar convenientemente o impacto que a grandeza da obra de Sophia tem na minha vida.
Talvez as palavras que se seguem digam melhor.

5.7.04

perguntamos um ao outro quem somos
deixamos o ar cair sobre o que desejamos

4.7.04

[só para lembrar àqueles que fizeram promessas, que uma das invocações mais frequentes de Nossa Senhora, em Fátima, é Téotokos]
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Depois da cinza morta destes dias,
Quando o vazio branco destas noites
Se gastar, quando a névoa deste instante
Sem forma, sem imagem, sem caminhos,
Se dissolver, cumprindo o seu tormento,
A terra emergirá pura do mar
De lágrimas sem fim onde me invento.

(de Coral, 1950)
O Almocreve das Petas evoca Sophia da maneira informada e rigorosa a que nos tem habituado.
No entanto há que fazer dois reparos: O Bojador, incluído na lista dos livros de poesia, é uma pequena peça de teatro "escrita em 1961, para as filhas qu frequentavam o 3º ano do liceu no Colégio de S. José das Irmãs Dominicanas" e foi, de facto, editado apenas em 2000 pela editorial Caminho e belamente ilustrado por Henrique Cayatte; é omitida uma outra peça de teatro: O Colar, editado também pela Caminho, em 2001.
Já agora: a fotografia incluída na evocação é de Fernando Lemos.
Há coincidências inefáveis: a poesia que enche as ruas de Lisboa no dia em que Sophia vai a sepultar é feita em grande parte por gente vinda da Grécia.
JORGE DE SENA

ODE PARA O FUTURO


Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.

Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.

E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárneo, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.

(de Pedra Filosofal, 1950)
JOÃO CABRAL DE MELO NETO

ELOGIO DA USINA
E DE SOFIA DE MELO BREINER ANDRESEN


O engenho banguê (o rolo compressor,
mais o monjolo, a moela de galinha,
e muitas moelas e moendas de poetas)
vai unicamente numa direção: na ida.
Êle faz quando na ida, ou ao desfazer
em bagaço e caldo; ele faz o informe;
faz-desfaz na direção de moer a cana,
que aí deixa; e que de mel nos moldes
madura só, faz-se: no cristal que sabe,
o do mascavo, cego (de luz e corte).

2.

Sofia vai de ida e de volta (e a usina);
ela desfaz-faz e faz-refaz mais acima,
e usando apenas (sem turbinas, vácuos)
algarves de sol e mar por serpentinas.
Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal,
em cristais (os dela, de luz marinha).

(de Educação pela Pedra, 1962-1965)
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

NA RUA DAS MÓNICAS


Nos meus vinte anos,
almoçar em casa de Sofia
era ouvir ferver em cachão, frigir
na cozinha, arfar a cafeteira da poesia.
Era ver a ama de Sofia,
e de todos os filhos, de muitos versos,
cuidar de muitas gerações de memórias,
no lar desses versos tão caseiros.
E era beber, ali, na mesa, uma água
que, mais do que a da torneira,
concitou o mar para cada copo.
Era olhar um rosto de coral
(o que exorciza as Fúrias, na cozinha)
um rosto de mar novo, de geografia.
Era escutar as palavras da boca
do vocábulo grego para a sabedoria
o que me confirma o poder dos nomes,
ao serem Verbo, sobre os seres e as coisas.
Era sentar-me, lado a lado,
no espaço irradiante da volúvel lareira,
no Outono apagada, na Primavera acesa,
e com o fogaréu alimentado
por papéis venais de outra política
(que não a da sua humanidade),
que a prudência mandava destruir no fogo.
Era entrar e sair pela porta das Mónicas,
a das mulheres congregadas
sob invocação da mãe de Agostinho,
o que para mim celebrava também
o amor da mãe, da velha ama, da Poesia.

(de Cenas Vivas, Relógio d?Água, 2000)

3.7.04

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Para Sophia de Mello Breyner Andresen


Vejo-te sempre vertical num apogeu azul
em que celebras as coisas e pronuncias os nomes
com a claridade das cúpulas e das evidências solares
Em ímpetos claros vais figurando o cristal
que dos actos transferes para as palavras límpidas
O ar te deslumbra na sua extrema seda
em ângulos fugitivos Tão perto e tão remoto
o intacto rosto! Não ser? Estar estar
atentamente até que o silêncio seja o cimo
que tudo vai reunindo consagrando no visível
Que possessão d vida que doçura tão forte
te liga a tanto fundo oculto a tanta festa
silenciosa! Tudo se vai definindo em sombra e cor
e as sílabas latentes soletram as evidências
simples e prodigiosas Através delas o espaço
das coisas se identifica ao ser absoluto
Em harmoniosa fluência e na atmosfera límpida
os vocábulos dizem a amizade do universo
Tão inteira tão firme na grande realidade
que se levanta como uma onda e te expõe frente a frente!
Aproximas-te do mar dos montes e das nuvens
e sustentas a atenção pura no número dos teus versos
O teu dom de ser acende-se nas coisas e no verbo
e os volumes vivos unificam-se em assombro
Tua vasta alegria é um ócio resplandecente
que propaga e ondula o ouro maravilhado
Toda te convertes em presságio e fragrância
e a tua vida freme em ti como uma rosa no espaço
És o dia a claridade do dia dominado
e de cimo em declive és o oriente amanhecendo
Frágil é o teu poder? Frágil e perfeitíssimo
num universo em que a criatura encontra o equilíbrio
justo e a delícia da certeza que é o espaço
De súbito as palavras têm um aroma a vento
e modulam as curvas como sinuosas barcas
Insinuam por vezes matizes de palácios
com pátios interiores onde desliza a água
Nada é um sonho por mais leve que seja
porque tudo é um trabalho sobre a madeira do mundo
Que potência cálida e tão certa entre as árvores
que enlaces naturais e que cintilantes cimos!
O teu destino é já música e sortilégio simples
de uma triunfal harmonia tão límpida e tão firme
que é de todos Porque em ti o mundo se redime
e toda a magia é a realidade da palavra

(in Relâmpago nº 9, 10/2001 - número de homenagem a Sophia)
LUÍS FILIPE CASTRO MENDES

O verso de Sophia é como a luz
que cruamente rasga a natureza:
alucina a visão que nos reduz
à imagem tangente da justeza.
O rigor do seu ver torna a verdade
no desenho exterior de um pesadelo:
que a injustiça rói esta cidade
e deserta as palavras sem apelo.

(in Relâmpago nº 9, 10/2001 - número de homenagem a Sophia)

2.7.04

MANUEL ALEGRE

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Uma atenção tão concentrada que
parece distracção ou mesmo ausência.
Navegação abstracta e a urgência de
conjugar o concreto e a imanência.

Ela colhe no ar a maravilha
depois diz a safira o mar a duna
procura o oriente o azul a ilha
e seu canto a reúne: única e una.

E por isso o seu gesto é como asa
onde há a Koré grega e a grafia
de quem junta os sinais e os sons dispersos.

E o seu poema é quase como casa
e a casa é o outro espaço onde Sophia
reparte à sua mesa o pão e os versos.

(de Sonetos do Obscuro Quê, 1993)
JOSÉ CARLOS ARY DOS SANTOS

RETRATO DE SOPHIA


Senhora dona águia água égua
inglesa num jardim de potros gregos
mordiscando beleza rega cega
do regador de inês em seus sossegos.

De muitos anos colhes magro fruito
que depressa transformas em compota
receita tão bem feita de que há muito
nos açucara o travo da chacota.

Porém quando por vezes és de pedra
não mármore mas árvore mas dura
do fundo do teu mar levanta-se a cratera
da nossa lusitana sepultura.

(de Fotos-Grafias, 1970)
JORGE DE SENA

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
ENVIANDO-LHE UM EXEMPLAR DE «PEDRA FILOSOFAL»


Filhos e versos, como os dás ao mundo?
Como na praia te conversam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Com quem se reparte?
Com quem pode matar-te?
Ou como quem a ti não volta mais?

15/12/1950

(de Peregrinato ad loca infecta, 1969)
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

INSCRIÇÃO


Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto ao mar

(de Livro Sexto, 1962)
Morreu o homem que recusou o Óscar de melhor actor no ano em que eu nasci.

30.6.04

Quem deve estar todo contente é o Alexandre Andrade: a selecção da República Portuguesa venceu três selecções de países monárquicos, afastando agora, aliás, a última que restava.
Este golo do Cristiano Ronaldo foi mais um madeirense a afirmar:

"a minha cabeça estremece"

29.6.04

Afinal o que importa...

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola

[isto é uma Nobilíssima Visão de um senhor sem dentes...]

25.6.04

SÉRGIO GODINHO

ESPECTÁCULO (excerto)


Quando
tu me vires no futebol
estarei no campo
cabeça ao sol
a avançar pé ante pé
para uma bola que está
à espera dum pontapé
à espera dum penalty
que eu vou transformar para ti
eu vou
atirar para ganhar
vou rematar
e o golo que eu fizer
ficará sempre na rede
a libertar-nos da sede
não me olhes só da bancada lateral
desce-me essa escada e vem deitar-te na grama
vem falar comigo como gente que se ama
e até não se poder mais
vamos jogar

(do álbum Campolide, 1979 e, em dueto com Manuela Azevedo - e os Clã - em Coincidências, 2001)

23.6.04

[para uma não-justificação da minha ausência temporária]

LEOPOLDO PANERO

Para inventar Deus, nossa palavra
busca, dentro do peito,
sua própria semelhança e não a encontra,
como as ondas do tranquilo mar,
uma após outra, iguais,
querem a exactidão do infinito
medir, enquanto cantam...
E Seu nome sem letras,
escrito a cada instante pela espuma,
some-se a cada instante
embalado pela música da água;
e nas praias fica só um eco.

Que número infinito
nos conta o coração?
Cada latejo,
outra vez é mais doce, e outra, e outra;
outra vez cegamente e de seu íntimo
vai pronunciar Seu nome.
E outra vez se ensombra o pensamento,
e a voz não o encontra.
Dentro do peito está.
Teus filhos somos,
ainda que não saibamos nunca
dizer-te a palavra exacta e Tua,
que repete na alma o doce e firme
girar das estrelas.

(tradução de José Bento, in Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea, Assírio & Alvim, 1985 - documenta poetica)

17.6.04

E quais são as palavras com que um homem
responde às tardes de sol?
JOSÉ GOMES FERREIRA

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformaram.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima de um divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
«Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela.»

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...

(primeiro poema, de 1931, de Poeta Militante - Viagem do Século Vinte em mim)
A entrada anterior é resultado de um certo cansaço mental, mas também da necessidade de canalizar energias criativas para outras coisas que desejo fazer.
Foi com uma intensa perplexidade feliz que me fui deparando com as reacções de alguns amigos.
Não faz, pois, sentido parar - mas necessito abrandar...
Talvez o Mestre Zé Gomes, a seguir, explique melhor o que tenho para dizer.

14.6.04

Somewhere...
We'll find a new way of living


Páro por aqui...
Não sei se definitivamente, mas páro.

Numa semana em que teria muito para dizer.
Dos 100 anos do dia de Bloom e dos 60 de Chico Buarque;
dos livros de Ruy Ventura e de Gonçalo M. Tavares que são do melhor de agora;
dos discos de Fausto e de José Mário Branco que provam que a cantiga continua mesmo a ser uma arma contra a buguesia;
da edição da Naxos do West Side Story que comprei há dias (uma das faixas lembra-me da imensa vergonha que é ainda não ter dado os parabéns ao Tiago...);
da fantástica pechincha de menos de 5 euros, na FNAC do Colombo, que foi o CD com as primeiras gravações do David Bowie, incluindo a primeira versão do Space Oddity;
das traduções que ando a fazer de Desnos;
do projecto A Naifa que me fez ir voltar a ouvir a Linha da Frente, o Wordsong (com poemas do Al Berto) e o projecto Os Poetas, mas também o CD de Vitorino de Almeida, Gaudeamus, em que musicou poetas de todos os países da UE (em 1996) ou os excelentes tabalhos de Lopes Gaça com a poesia portuguesa.

Talvez o ter demasiado paa dizer me deixe demasiado cansado... Talvez não tenha o talento para o dizer...
Fico por aqui.
Talvez volte.

There's a place for us A time and place for us

11.6.04

JORGE DE SENA

RAY CHARLES


Cego e negro, quem mais americano?
Com drogas, mulheres e pederastas,
a esposa e os filhos, rouco e gutural
canta em grasnidos suaves pelo mundo
a doce escravidão do dólar e da vida.

Na voz, há o sangue de presidentes assassinados,
as bofetadas e o chicote, os desembarques
de «marines» na China ou no Caribe, a Aliança
para o Progresso da Coreia e do Viet-Nam,
e o plasma sanguíneo com etiquetas de black e white
por causa das confusões.
E há as Filhas da Liberdade, todas virgens e córneas,
de lunetas. E o assalto ao México e às Filipinas,
e a música do povo eleito por Jeová e por Calvino
para instituir o Fundo Monetário dos bancos e dos louros,
a cadeira eléctrica, e a câmara de gás. Será que ele sabe?

Os corais melosos e castrados titirilam contracantos
ao canto que ele canta em sábias agonias
aprendidas pelos avós ao peso do algodão.
É cego como todos os que cegaram nas notícias da United Press,
nos programas de televisão, nos filmes de Holywood,
nos discursos dos políticos cheirando a Aqua Velva e a petróleo,
nos relatórios das comissões parlamentares de inquérito,
e da CIA, do FBI, ou da polícia de Dallas.
E é negro por fora como isso por dentro.

Cego negro, uivando ricamente
(enquanto as cidades ardem e os «snipers» crepitam)
sob a chuva de dólares e drogas
as dores da vida ao som da bateria,
quem mais americano?

15/Mar/1964

(de América, América, I Love You, incluído no volume Sequências, Moraes editores, 1980)

7.6.04

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA

A ÁRDUA CIÊNCIA


Ao subir a montanha
assistimos ainda ao júbilo dos construtores.
Os seus martelos acordam em sobressalto ao
alvorecer da pedra.
O seu coração é invisível.
Vive com o meu na inocência das terras,
iniciando o alicerce.
E a pedra rasgada compõe a obra como se fosse a
terrível verdade dos salmos,
uma rima atroz.
A visão das catedrais alimenta-se da tua ira.
Tu és a arte de erguer aos céus uma palavra baixa,
murmurada rente ao chão,
esculpida em ti.

(de Paixão e Cinzas, Assírio & Alvim, 1992)
Hoje há terra da Alegria

6.6.04

[colecção de coleccções - II]

Poetas em Mateus (Quetzal editores)

Trata-se do resultado dos seminários de tradução colectiva organizados pela Fundação Casa de Mateus, que conta com a presença dos poetas traduzidos. A data entre parêntesis corresponde à data em que se realizou o seminário, não tendo sido possível apurar as datas omissas por os respectivos volumes estarem esgotados...

Teoria das mesas antecedido de Elegia 7 / Emmanuel Hocquard, rev. e apres. por Egito Gonçalves, 1991 (Dezembro 1990)
Erro de localização dos acontecimentos no tempo / Claude Royet-Journoud, rev. e apres. por Pedro Tamen, 1991 (Dezembro 1990)
Uma onda e outros poemas / John Ashbery, rev., complet. e apres. por João Barrento, colab. Richard Zenith, 1992 (Junho 1991)
Uma luz diferente / John Montague, rev., complet. e apres. por Fernando J. B. Martinho, 1993 (Setembro 1991)
O jardim da dor e outros poemas / Thomas McCarthy, rev., complet. e apres. por Laureano Silveira, 1993 (Setembro 1991)
A espinha do P / Valerio Magrelli, rev. e apres. por Maria Carlos Loureiro, 1993 (Março 1992)
Memória / Franco Loi, rev. e apres. por António Osório, 1993 (Março 1992)
Sombras oblíquas / Demóstenes Agrafiotis, rev. e apres. por Fernando Echevarría, 1994 (Outubro 1992)
A outra versão / Tassos Denegris, rev. e apres. por Fiama Hasse Pais Brandão, colab. Nuno Júdice, 1994 (Outubro 1992)
Cantos de recusa / Anise Kolz, trad. colectiva, rev. e apres. por Casimiro de Brito, 1994 (Maio 1993)
Jardins mínimos e outros poemas / Jacques Izoard, rev. e apres. Fernando Pinto do Amaral, 1994 (Maio 1993)
Castanhas quentes e outros poemas / Richard Wagner, rev., complet. e apres. por Maria Teresa Dias Furtado, 1994 (Outubro 1993)
Como se fosse a minha vida / Hans-Ulrich Treichel, trad. colectiva, rev., complet. e apres. por João Barrento, 1994 (Outubro 1993)
Visitação / Ruth Fainligth, rev., complet. e apres. por Ana Hatherly, 1995 (Abril-Maio 1994)
Os hectares da memória / Herman de Coninck, trad. colectiva, rev., complet. e apres. por Nuno Júdice, 1996 (Outubro 1994)
Alguns poemas / Eva Gerlach, trad. colectiva, rev., complet. e apres. por Pedro Tamen, 1996 (Outubro 1994)
O instante luminoso / Péter Zirkuli, rev. e apres. por Nuno Júdice, 1997 (Abril 1995)
Um jardim de plantas medicinais / Endre Kukorelly, rev. complet. e apres. por Fernando Pinto do Amaral, colab. Mária Démeter, 1997 (Abril 1995)
Contrabando de luz / Maria-Mercé Marçal, rev. e apres. por Luís Filipe Castro Mendes, 1996 (Outubro 1995)
Simetria / Marin Sorescu, rev., complet. e apres. por Egito Gonçalves, 1997 (Abril 1996)
O mar, entre glaciações / Nicolae Diaconu, rev. e apres. por Miguel Serras Pereira, 1997 (Maio 1996)
A linguagem de areia / Erdal Alovatrad. rev. e apres. por Fiama Hasse Pais Brandão, colab. Nuno Júdice, 1997 (Novembro 1996)
As asas de orvalho dos ventos / Adnan Özer, rev. e apres. por Jorge Velhote, 1997 (Novembro 1996)
No avesso do mundo / Juan Gelman, rev. e apres. por Ana Luísa Amaral, 1998 (Maio 1997)
Planície, sudoeste e outros poemas / Ivan Strpka, rev. e apres. por Luís Quintais, 1999 (Outubro 1997)
Mobilis in mobile / Ivan Laucik, rev. e apres. por Pedro Mexia, 1999 (Outubro 1997)
Coração de papel / Lasse Söderberg, rev. Ana Luísa Amaral e Gonçalo Vilas-Boas, 2001 (Abril-Maio 1998)
Das coisas / Michael Donhauser, rev., complet. e apres. por João Barrento, 2000 (Outubro 1998)
Uma conversa passa pelo papel e outros poemas / Bruno Weinhals, rev., complet. e apres. por Maria Teresa Dias Furtado, 2000 (Outubro 1998)
Falando só com a pedra / Salah Stétié, rev. e pref. por Fernando Guimarães, 2000 (Abril 1999)
Parcelas / Marcin Sendecki, rev., complet. e apres. por Rosa Alice Branco, 2001 (Setembro 1999)
Primeiras sequências / Henry Deluy, rev. e apres. por Laureano Silveira, 2002 (Setembro-Outubro 2000)
Ponto de focagem do oceano / Pia Tafdrup, rev., complet. e apres. por Laureano Silveira, 2004 (Junho 2002)
Livro da Noite / Per Aage Brandt, rev. e apres. por Maria João Reynaud, 2004 (Junho 2002)

A magia dos números e outros poemas / Kenneth Koch, rev., complet. e apres. por Pedro Tamen, colab. Ana Hatherly, 1992
A pura verdade / Philip Levine, rev. e apres. por Maria de Lourdes Guimarães, 1992
Médium e outros poemas / Elaine Feinstein, rev., complet., e apres. por Fernando Guimarães e Maria de Lourdes Guimarães, 1995
Bosques e cidades / Álex Susanna, rev. por Rosa Alice Branco, 1996
Cantata sombria e outros poemas / Olga Orozco, rev. e apres. por Fernando Pinto do Amaral, 1998
O próximo voo das aves / Anne Perrier, rev. e pref. por Miguel Serras Pereira, 2000

5.6.04

ERNESTO SAMPAIO

Numa sociedade ordenada segundo a racionalidade dos fins (e na sociedade burguesa esses fins são o lucro), a possibilidade humana dos indivíduos é sempre limitada. Por isso mesmo os surrealistas procuraram descobrir momentos de imprevisão na vida quotidiana, fenómenos que não coubessem no mundo da racionalidade dos fins. A poesia é um bom meio para manter aberta essa possibilidade, mas uma poesia revolucionada. Poeta revolucionário não é o que realiza composições cujo conteúdo e propósito é a proclamação da necessidade da revolução, mas aquele que revoluciona, com meios poéticos, a poesia. Esta não toma a revolução por modelo. É ela que é o modelo da revolução. Possível é, no entanto, que a poesia desapareça antes da espécie humana, e também não é de excluir que ao fim e ao cabo não tenha passado de uma actividade menor e esporádica, a avaliar pela falta de resposta vital com que tem sido acolhida pela imensa maioria do público. Neste aspecto, a época crepuscular que atravessamos é das mais decepcionantes, não encontrando outras máscaras para disfarçar a sua atonia profunda senão as da leviandade e da presunção. Vai longe o tempo, realmente, em que Baudelaire sonhava ser capaz de persuadir os burgueses de que a poesia lhes era tão necessária como o pão. Infatigáveis fornecedores abastecem os burgueses e os outros, não só de pão ensosso como de poesia de pacotilha.

(primeiro parágrafo da apresentação aos poemas de André Breton, Assírio & Alvim, 1994 - documenta poetica)

4.6.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA]

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

EM TODOS OS JARDINS


Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

(de Poesia I, 1944)

MARIA TERESA HORTA

Sobre a ambiguidade


Este esquecer de mim
por bem te querer
este te perder
e envolver nos braços

Este meu dizer e desdizer
de nunca te prender
mas não esquecer que o faço

Este meu delírio
minha febre
este meu medo de saber

Este meu vício
e minha causa
este meu motivo
de não ser

(de Minha Senhora de Mim, 1971)

TERESA RITA LOPES

SONETO DA HORA QUIETA


Gordo pastor desse rebanho imenso
e todavia dócil incapaz de um gesto
de rebeldia o Deus Bojudo da Prudência
suas quietas reses mal vigia

Os galhos novos das árvores não acordam
em seus dentes a fúria de roer
seus cascos não conhecem som de rochas
escarpadas nem a vertigem dos barrancos

As mães lhes deram a beber nas frouxas tetas
o pavor do lobo e o goso do remanso
da erva pouca mas ao pé da boca

Enorme o cajado do pastor
é uma árvore de plácidas folhas quietas
à sombra da qual todo o rebanho dorme

(de Para cantar se calhar)

ANA LUÍSA AMARAL

DISCRETA ARTE


Discretamente. Cultivar a palavra.
Arte de dispor flores por longa mesa,
prazer de dispor quadros por paredes
em critério de escolha pessoal.

Discretamente: aqui uma pequena
haste a lembrar o sol, ali a folha
resolvendo o lugar, o espaço certo
(ligeiro afastamento necessário

para o conjunto articulado em cores).
O quadro mais azul naquele sítio,
o mais cinzento e largo a distrair-se

sobre a nudez de uma parede clara.
Discretamente. E a palavra nascida
de tela (ou terra) resolvida. Agora.

(de Minha Senhora de Quê, 1990)

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA

Na tua boca cantou subitamente uma voz
E, ao dizeres o meu nome na rede de um abraço,
o rio que outrora bordava o campo emudeceu
com as suas pedras lisas. Então, foi possível

ouvir o vento soprar nas asas das borboletas
e os lagartos recolherem-se nos veios dos muros
e o sol ferir-se nos espinhos das roseiras.

Sobre a colina quente passou uma nuvem
e uma ave poisou, perplexa, no fio do horizonte -
por um instante, o dia mostrou as suas pálpebras tristes;

e, na brancura cega desse entardecer, a tua mão
escorregou pela inclinação do sol e veio contar
as sombras do um decote.

São assim as mais pequenas histórias do mundo.

(de O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001)
[efeméride importante]

1945
No início de Junho, atingido pelo tifo [no campo de concentração de] Terezin, está quase moribundo. Vivem-se então os primeiros dias de euforia da libertação. A 4 de Junho, a um estudante checoslovaco que lhe pergunta se ele é parente de um certo poeta de apelido Desnos, reúne forças para responder: "- O poeta francês sou eu."
Morre quatro dias depois.

(da tábua cronológica que antecede Jack O Estripador de Robert Desnos, & etc, 2001 - tradução de Rui Caeiro - trata-se, pelo que pude apurar, da única obra traduzida para português deste escritor surrealista)

3.6.04

[outros melros XX]

Poema antibucólico
com melros dentro


Aqui, de onde ouço carros a passar
rumo a antigas viagens que já fiz,
de onde pela janela os cedros fitam
o tempo dos meus dias, sentinelas
que não vão deixar-me ir ao paraíso,
cedros com raízes firmes obscuras,
mergulhadas na minha carne, a terra
e o húmus, a mudez que tudo espera,
aqui me saberia de outro modo
se um deus rude chamado acaso visse
a injustiça das mãos que estão vazias
e pudesse tornar-lhe a elas a curva
que se acende e ilumina quando tocam
a flor da pele - vibra na memória
essa lembrança líquida do cheiro
que as madressilvas soltam no verão
e que inunda a surpresa alva do corpo,
como se os meus vinte anos me tornassem
sem os haver sequer tido algum dia,
se imagino os tivesse agora aqui
com a dor e a alegria acumuladas.

A poesia é a farsa luminosa
que de mim mesmo enceno. Vejo o abeto
além subindo ao céu, cheio de ninhos
e de melros que cantam: alimentam-se
da sua seiva e sombras resinosas,
é a casa onde tudo está certo, onde
o desejo não é uma surpresa,
onde nada inquieta a simbiose
dos ramos com os melros, porque nada
precisa de memória, e os automóveis
continuam a rota, e passam sob ele,
e por momentos são apenas carros,
e os cedros, sentinelas que vigiam,
com raízes na terra, a minha carne.

(de magnífico blog de originais de poesia, As Musas Esqueléticas)
ULLA HAHN

Sobre o conceito de tradição


Se, num juízo sobre um poeta, alguém usa a palavra tradição neste país [Alemanha], isso é quase sempre mais uma crítica do que um louvor. E se o conceito vier acompanhado de um "-ismo", então a condenação é inequívoca, e o poema atingido pelo veredicto, tal como o seu produtor, deixam pura e simplesmente de ser dignos de qualquer discussão. Não há lugar para uma relação despreconceituada com uma poesia que assuma de forma aberta e consciente determinados elementos tradicionais. É fácil torcer o nariz diante do cadáver, quando antes se afogou zelosamente em Ismos tudo o que era vivo, porque se mexia, e porque mexia com os outros de forma diferente da desejada. Na melhor das hipóteses, pergunta-se o que há de novo apesar da tradição, e não devido a ela - como se o lugar do velho fosse, se não logo a sucata, pelo menos a vitrina do museu, e como se o que é de hoje tivesse valor apenas pela sua "novidade". As exigências de "novas formas", tal como aparecem hoje nos prefácios a antologias de poesia, lembram a obsessiva procura, por parte das agências de publicidade, de novos slogans para os seus produtos. Está na ordem do dia uma tendência verdadeiramente servil para uma actualidade de fachada (...) Mas existe também, para além de um provincianismo no espaço, um provincianismo no tempo, e T. S. Eliot já chamou a atenção para isso. Quem escreve e emite juízos como se o mundo pertencesse apenas aos vivos, é um provinciano da História. E são sinal de tacanhez, tanto o seguidismo hipócrita como o apego cego ao velho.

(texto citado e traduzido por João Barrento, após a entrevista introdutória de A Sede entre os Limites, Relógio d'Água editores, 1992 - sublinhados meus)

1.6.04

[outros melros XIX]

ULLA HAHN

Despertar


Um lindo melro abre-me os olhos
de manhã. Canta no verde dos ciprestes
a canção do amor de outrora

Um lindo melro apaga-me os sonhos
pela manhã. Eu sentada no meio
da luz estou mesmo acordada.

(de A Sede entre os Limites, versão de João Barrento, Relógio d'Água editores, 1992)
PARA QUÊ MUDAR SE CONTINUA EXCELENTE??

Qualquer pretexto é bom para invocar, aqui, o carácter sublime e soberbo das doudices de Ale & Nebia. Nunca a inutilidade foi tão bem gerida. Água fria e água quente, sem nunca deslizar para equívocas águas mornas, ora pingo a pingo, ora jorrando em aluvião, as torneiras são referência incontornável (helás!!) no panorama da blogolândia nacional e internacional. Até aos 100 milhões!!
(o pretexto, desta vez, foi a oportuna e inquietante mudança de visual perpretada pelo freudiano conclave)

31.5.04

[A propósito de um texto que o meu amigo Carlos trasladou da extinta Quinta Coluna para as Partículas Elementares, lembrei-me que, tal como nas auto-estradas, também na poesia se podem encontrar alguns gatos mortos; já desde o Antigo Egipto, mas ficam só três exemplos recentes na nossa língua]

EUGÉNIO DE ANDRADE

RENTE AO CHÃO


Era azul e tinha os olhos de deus
o meu pequeno persa
- agora rente ao chão onde iria?,
a voz quebrada,
o peso da terra sobre os flancos,
a luz deserta na pupila.

(de Rente ao Dizer, 1992)


JORGE DE SENA

Morreu Dom Fuas, gato meu sete anos,
pomposo, realengo, solene quase inacessível,,
na sua elegância desdenhosa de angorá gigante,
cendrado e branco, de opulento pêlo,
a cauda como pluma de elmo legendário.

Contudo, às suas horas, quando acontecia
que parava em casa mais que por comer
ou visitar-nos condescendentemente como
a Duquesa de Guermantes recebendo Swann,
tinha instantes de ternura toda abraços,
que logo interrompia retornando
aos seus passos de império, ao seu olhar ducal.

Nunca reconheceu nenhuma outra existência
de gato que não ele nesta casa. Os mais
todos se retiravam para que ele passasse
ou para que ele comesse, eles ficando
ao longe contemplando a majestade
que jamais miou para pedir que fosse.

Andava adoentado, encrenca sobre encrenca,
e via-se no corpo e no opulento pêlo,
como no ar da cabeça quanta humilhação
o sofrimento impunha a tanto orgulho imenso.
Por fim, foi internado americanamente,
no hospital do veterinário. E lá,
por notícia telefónica, sozinho, solitário,
como qualquer humano aqui, sabemos que morreu.

A única diferença, e é melhor assim,
em tão terror ambiente de ser-se o animal que morre,
foi não vê-lo mais. Porque ou nós morremos,
como dantes se morria em público,
a família toda, ou toda a corte à volta, ou
é melhor que se não veja no rosto de qualquer
- mesmo ou sobretudo no de um gato que era tão orgulhoso em vida -
não só a marca desse morrer sozinho de que se morre sempre
mesmo que o mundo inteiro faça companhia,
mas de outra solidão tecnocrata, higiénica
que nos suprime transformados em
amável voz profissional de uma secretária solícita.

Dom Fuas, tu morreste. Não direi
que a terra te seja leve, porque é mais que certo
não teres sequer ter tido o privilégio
de dormir para sempre na terra que escavavas
com arte cuidadosa para nela pôres
as fezes de existir que tão bem tapavas,
como gato educado e nobre natural.
Nestes anos de tanta morte à minha volta,
também a tua conta. Nenhum mais
terá teu nome como outros tantos gatos
antes de ti foram já Dom Fuas.

18/12/1977

(de 40 Anos de Servidão, 1978)


VINICIUS DE MORAES

SONÊTO DO GATO MORTO


Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade

De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de electricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.

Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

Acaba, é o antigato; porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto.

(de O Operário em Construção e outros poemas, selecção e prefácio de Alexandre O'Neill, publicações Dom Quixote, 1986)
EXTRA! EXTRA!

A Terra da Alegria volta a ter convidados, com textos pertinentes.

30.5.04



...e renovai a terra.

[EL GRECO (1541-1614), La Pentecostés, datado de c. 1605 - a figura em baixo, em primeiro plano é um auto-retrato do artista]
ALEJANDRA PIZARNIK

7


Salta com a camisa em chamas
de estrela em estrela,
de sombra em sombra.
Morre de morte longínqua
a que ama ao vento.

(tradução de Alberto Augusto Miranda, in Antologia Poética, O Correio dos Navios, 2002)

29.5.04

JOSÉ AUGUSTO SEABRA
Nasceu em 1937.
Foi militante anti-fascista e a sua acção ficou marcada pela união entre civismo e cultura, quer antes, quer depois do 25 de Abril. Doutorou-se na Sorbonne com uma tese sobre Fernando Pessoa (de quem foi um dos mais destacados estudiosos), orientado por Roland Barthes. Fundou em 1980 a rvista Nova Renascença. Além da carreira académica foi deputado à Assembleia da República, Ministro da Educação ente 1983 e 1985 e Embaixador de Portugal na UNESCO, em Nova Delhi, em Bucareste e em Buenos Aires.
Morreu na passada quinta-feira.
(vd. também a evocação do Almocreve)
António Ramos Rosa disse acerca dele: "No âmbito da sua vida individual, procura o poeta apoderar-se de algo que o salve da mesquinhez e da frustração ambientes, do inexorável fluir do tempo - «Quase salto / sobre as garras do tempo» -, sendo o fruto desse combate a recuperação de gestos e impulsões vitais numa progressiva redução em que a consciência da linguagem acaba por ser determinante" (Líricas Portuguesas - 4ª série, 1969)


Nem nos defende a ausência:
é o reverso.
Sabemos todos já bem a ciência
da traição que se oculta a cada verso.

Nem nos salva a desculpa
de anoitecer, poetas:
por cada mea culpa,
apontam-nos a morte noutras setas.

Ficar nem chega. Ou ir
ou sepultar-nos.
Foge-nos o tempo já de decidir
Sequer suicidar-nos.

A bem ou mal, poetas.
Liberdade
só esta que sorri por entre as frestas
hesitante do peso da verdade.

(de A Vida Toda, edição do Autor, 1961)

A PALAVRA

Esperar o limite dos lábios, o limbo da palavra.

Ela chega do ritmo, desborda e cria o espaço, a música e o tempo.

Ela chega e contempla.

Visita-me uma sílaba, apanho-a à flor dedos dedos. Como pétala, cai.

Ilumina-me o abismo. Tombo aos pés do silêncio. Só a palavra salva.

Às vezes é tumulto. E sombra. Cerro os olhos e acordo. A palavra é manhã.

A água da palavra. A sede, a água, a sede.

(de Os Sinais e a Origem, Portugália editores, 1967)


SUBTERRÂNEO

Soterrei as palavras. Pelos canais do sono: ó catacumbas líquidas.

Desacordes os lábios. Decepados os dedos. Só trincheiras de ausência.

De um jeito curvo avanço: inviável toupeira. Sem mais noite que as unhas.

Desertar do limite. Para lá das narinas: no focinho do tempo.

(de Tempo Táctil, Portugália editora, 1972)

ACTO

Se iluminar-se
o puro acto
lento se ousasse
no tempo exacto
quase só graça
de ser o espaço
de nada a nada
no puro acto
de iluminar-se.

(de Desmemória, Brasília editora, 1977)

As cigarras rondavam
as espaldas da Acrópole
vergada. Repetiam
as sílabas roídas
por séculos
de nada.

(de Gramática Grega, edições Nova Renascença, 1985)

Nem sei de quando
amo este amor sombrio
e amado, nem se amando
ódio a ódio o adio,
brando, tão brando
e a frio.

(de Enlaces, em colaboração com Norma Backes Tasca, Fundação Eng. António de Almeida, 1993)

CICATRIZ

"Uma ferida, tudo o que há de mais esquemático"
(Ana Blandiana)

Desenhavam as nódoas
do silêncio, mediam
suas feridas todas
com a fria esquadria
das grades: tão a modos
que o esquema corria
da cicatriz dos bordos.

(de Conspiração da Neve, livraria Minerva editora, 1999)

RUGAS

Se a mágoa não perturba
a luz dorida e vaga
filtrada como a chuva,
que sombra já divaga
na mente que se curva
ao vento onde resvala
o tempo ruga a ruga?

(de O Caminho Íntimo para a Índia, Lello editores, Fundação Macau e Inst. Intern. de Macau, 1999)

7 de Agosto [de 1991]

Da alva ao crepúsculo, aí está a luz de Creta a distender-se sobre a matéria visível em cambiantes infindas, que só com uma experiência apurada apercebemos, ao olhar demoradamente as coisas, captando-lhes a tonalidade exacta a cada hora do dia. É de Cézanne que me lembro, quando a coincidência de algumas percepções inesperadas me domina, sob o sol que nos penetra até aos ossos.
Carnação sensual desta terra calcária, seca e dura, curtida pela história: quem saberá tocá-la ainda? A ela me rendo, com os sentidos todos.

(de A Luz de Creta - Diário Poético, edições Cosmos, 2000)

28.5.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA]

JOSÉ AUGUSTO SEABRA


Cai-me das mãos o resto de cansaço
e gela. Escorre inútil. Débil fio
à flor do corpo: transparente ou baço?
Dos braços verticais dedos esfio.

Abri-los. Distendê-los. E não faço
o fácil movimento. Só desfio
pela memória o nítido regresso.
Voltado sobre mim me desafio.

O círculo não fecha. Enquanto aflora
o leve estremecer. Uma demora
dum gesto me suspende. Quase salto

sobre as garras do tempo. Breve e incauto
me prolongo no rasto dum desejo.
E o milagre: apalpo, sofro, vejo.

(de A Vida Toda, 1961)

VARIAÇÕES

«Basta pensar em sentir
para sentir em pensar»

(F. Pessoa)

sempre te sinto ou penso ou sinto tão
sem te pensar sentir pensar ou sem
sentido ou não que só pensar-te vem
sentir-te ser pensando ser ou não

amor sentir pensar sentir só quão
te penso ou sinto ou penso ou quase nem
sentindo sei se o sei ou mal ou bem
pensei senti pensei sabendo em vão

pensar pensar pensar ou só sentir
não ser sentir senão sentir pensar-
-te sempre sentir sentir sentir sentir

já não pensar-te amor mas só pensar
sentir pensar sentir pensar sentir-
-te amor amor amor sentir pensar

(de Desmemória, 1977)

Qualmente as vagas
víneas volteiam
a bruma apaga
teia por teia

a luz que alaga
a ulisseia
ilha onde as águas
tecem a Ideia.

Só entre as pregas
do tempo espia
a velha deusa

tramando o mito
de um infinito
e vão regresso.
_____________

Que rasar cerce
de asas declinas
se o sol declina
e o voo excede

o voo, ó Ícaro,
filho de Dédalo
mas não do mesmo
raso destino?

Um pouco menos
de azul e a brasa
que te incendeia

derrete a cera
de cada asa
fundindo a Ideia.
____________

Aqui Ulisses
vai aportando
ao cais do mito,
aonde e quando

o infinito
se tece, enquanto
tudo é escrito
ou declinado

de canto em canto
pelas sereias
em seu descante

e em nada a deia
destece o manto
da pura Ideia.

(de Gramática Grega, 1985)

DA ALEGRIA

(Ouvindo a IX Sinfonia, de Beethoven, em Bucareste)

Que voz reconcilia
o sangue, assediado
pela música fria
dos lábios, modulada

na clave tão sombria
onde a loucura arde
assim cega e vazia?
Não é a voz: só o bafo

sereno da alegria
atravessando a alma
num íntimo arrepio

enquanto a melodia
circula pelo sangue
que a voz reconcilia.

(de Conspiração da Neve, 1999)

27.5.04

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

EPICÉDICA


Liso é o choro do passado
Concreta a voz que esconde o dia de hoje
(O travo seu agora foge
Escuso na sombra do grito adiado).

Perdeu-se o gesto da tragédia
Liso é o choro do passado...

(de Odes Pedestres, editora Ulisseia, 1965)
[na minha cidade não são tílias, são jacarandás, mas o fim de tarde é também bonito]

INÊS LOURENÇO

FEIRA DO LIVRO


Enfunava a laringe, relendo
as tão editadas palavras
onde ornara a humanidade campestre
da sua infância, em
vibráteis reverberações
para os jovens de trémulas pestanas
atentos na assistência à cerimónia
que o pavimento suportava, enquanto
lá fora balouçavam as tílias
acima dos bancos vermelhos,
escurecidos pelas sombras
do fim de tarde.

(de Teoria da Imunidade, Felício & Cabral, 1996)

26.5.04

ROGÉRIO RIBEIRO

Quando fui para a António Arroio para entrar para a Escola de Belas Artes tive um professor que foi uma sorte grande que me aconteceu: o Mestre Abel Manta. Um dia apareci numa aula dele com uma folhinha de papel Ingres e ele perguntou-me se eu era rico, e depois mandou-me ir comprar papel de cenário. Disse-me então que desenhasse "aquele casaco que está ali atrás da porta". Essa iniciação - eu começo a desenhar o casaco atrás da porta, ele apaga aquilo com a mão, limpa o carvão todo, desenha por cima, e depois pede-me para desenhar outra vez - foi fabulosa. E de facto o ensino é isto, é nós exercermos treinos, é aprender a ver, e a registar. Não é coleccionar.
(...)
Quanto a mim, a escola está esvaziada de sentido, encheram-na de uma carga teórica terrível (...). Os alunos hoje já sabem o que querem, já sabem o que vão fazer, portanto isto é um trânsito e apenas isso. Quem é que estuda os pintores de hoje? Ninguém.

(excertos da entrevista a Sarah Adamapoulos, publicada na revista Os Meus Livros n.º 20, de Maio de 2004)


24.5.04

[a propósito do poema que o Quartzo passa hoje, lembrei-me disto:]

JORGE DE SENA

A PAUL FORT (+20/4/60)


Como se fosse homem de ficha e método, registo
no apêndice bibliográfico de uma história literária,
a data da morte de Paul Fort, que, subitamente,
recordo não ver consignado ao pé da outra data
em que nasceu (de resto, foi uma surpresa, porque
era como se ele tivesse já morrido há muito).
Si tous les gars du monde... - esse poema era belo,
não o tenho comigo.

Príncipe dos Poetas, escreveu baladas,
numerosas baladas, e morreu agora
com quase noventa anos. Os seus pares na idade,
Claudel e Gide, Francis Jammes e Proust,
Jarry, Philippe, Valéry, Péguy,
Colette e Romain Rolland, mais Ana Brancovan,
condessa de Noailles, haviam já morrido,
ora velhos, ora de estarem vivos, ou de angústia,
na guerra - juste guerre... ó Péguy... -,
ou na paz - que paz?... Deixemos isso.

Apenas registei. Mas não dissera ele,
na Balada da Noite, que nós contemplássemos...
O quê? Laisse penser tes sens (sabias disso,
ó Fernando Pessoa?). Éprends-toi de toi-même,
épars dans cette vie. Esparso nesta vida -
como este «príncipe» sabia coisas!

Morreu. Não de arranhado em espinhos de roseira,
como convém a Rilkes. Só de velho,
e um pouco de esquecido, esparso, épris
de soi-même. As histórias literárias
- sem o relerem, ou não seriam histórias literárias -
dar-lhe-ão cada vez menos linhas,
resumidas das linhas das outras.
E eu, que sou poeta - ó Príncipe! - trai-te,
como se com método e com ficha, registando apenas,
no apêndice de uma delas, que morreste.

27/4/1940

(de Peregrinato ad Loca Infecta, 1969)


PAUL FORT

La ronde autour du Monde


Si toutes les filles du monde voulaient s'donner la main,
tout autour de la mer elles pourraient faire une ronde.

Si tous les gars du monde voulaient bien êtr' marins,
ils f'raient avec leurs barques un joli pont sur l'onde.

Alors on pourrait faire une ronde autour du monde,
si tous les gens du monde voulaient s'donner la main.

(de Ballades Françaises)


A RONDA EM TORNO DO MUNDO

Se as jovens todas do mundo se quisessem dar a mão
a toda a volta dos mares, podiam dançar de roda.

Se os jovens todos do mundo quisessem ser marinheiros
fariam com suas barcas uma ponte sobre as ondas.

E então podia dançar-se de roda em torno do mundo
se toda a gente no mundo quisesse dar-se a mão.


FORT, PAUL - nasceu em 1872, em Reims, e teve preponderância no movimento simbolista, tendo sido um dos criadores do "Théatre d Art" que foi um dos pontos de partida da renovação do teatro moderno. Em 1896, publicou uma colectânea de poemas, Ballades Françaises, título geral em que se integrará toda a sua obra até à morte em 1960. Os seus versículos em que se escondem versos medidos, rimas internas, usou-os ele para compôr "baladas" sobretudo desenvolvendo temas e motivos da história e da paisagem da França; mas tiveram, tecnicamente, grande importância nos movimentos de vanguarda. Um dos seus poemas mais famosos (e mais breves) foi sempre este La Ronde autour du Monde, aqui traduzido, e que foge à linha geral daquela temática.

(tradução e nota biográfica de Jorge de Sena, in Poesia do Século XX de Thomas Hardy a C. V. Cattaneo, 2ª ed: Fora do Texto, 1994 - Autores Universais)
O post anterior enquadra-se na campanha de angariação de 100 milhões de leitores para as Torneiras de Freud, lançada pelo Quartzo.
A NOTÍCIA DA INVENÇÃO DO ZAPPING

Na sexta-feira, Nebia informou que: "Marguerite Duras tinha o hábito de entrar numa sala de cinema e ver durante dois minutos um filme qualquer. no fim do dia dizia que a sua jornada fora emocionante porque viu uma mulher a chorar, um casal a fazer amor e um homem a morrer,etc."


Hoje, na Terra da Alegria, começamos a dar espaço a outros amigos.
É da Tradição cristã escutar os outros e partilhar a Alegria.

23.5.04

OLGA GONÇALVES
Nasceu em Luanda em 1929.
Iniciou a actividade literária pela poesia, mas teve maior destaque na ficção, pela qual recebeu vários prémios.
Morreu em Lisboa no início de Abril deste ano.

Como a palavra nua
que partiu sem regresso
a angústia voltou

*

Falta um vagar a cada movimento
do pé do tempo
que conduz à estrada

*

1. Nós estaremos lá onde o silêncio fecha
os olhos moribundos nós estaremos
lá à porta do silêncio.

2. O sol desmanchará o corpo das sombras
as pedras serão relógios os lugares voltarão
a ser grandes lugares.

3. E as lágrimas sem tempo e as lágrimas
traçadas perderão formas definitivas

nós estaremos lá

(de Movimento, Moraes editores, 1972 - Círculo de Poesia)


COMPOSIÇÃO 22

Os marcos. Os nomes. Vestígios de. As margens. Os gavetões herméticos da cidade. Violência. As torres. A ficção da solitária cena lenta. Os matadores com violetas nos dedos. Espécie. A convergência. Mitologia de um jogo de engrenagens. Um lupanar. Dois lupanares. Quinhentos e vinte e cinco lupanares. Séries. As línguas sarcásticas do relógio. As legiões. Emboscadas memórias. O cão de cada criatura. O tempo comprimido em dinastias. Encontro casual de circunstância. As gerações de escravos. A íntima candura. Serões judeus. O desvalor de um punhal sem coragem. Quem pôde lá escrever um livro de acabado modo. A lua nossa contemporânea. A gesta deste século. Matadores com violetas nos dedos. Quem sabe se a imortalidade. Nos reinos tocam sinos sobre o sangue da chuva. Se porventura o sonho. A água muito fria. O homem só. Uma parede em história. Injuriada. Quem trouxe o espanto a nudez a caricatura da repetição do silêncio. E nas vidraças faltam noites. E à vidraças chegam os braços da modesta orgulhosa forma de sobrevivência. Pelas vidraças fogem figuras foscas filhas de todas as jornadas. Esta página de um itinerário. Se regressar posso.

(de 25 Composições e 11 Provas de Artista, 1973)


festejar no teu corpo a liberdade
que a dobra desta noite pronuncia
sobre o nervo da voz foça de alarme
garganta milimétrica de abril

um cravo da coronha de um soldado
no campo há meia hora ainda em sentido
para o gesto tão fundo tão volável
infância já da luz dentro do sismo

jornais não censurados no tapete
uma fábula fértil de fogueiras
crepitando onde rola o som da estampa

interior ao rumo à labareda
o desenho final do nosso beijo
na premissa mais livre do meu sangue

(Abril 1974)

(de Só de Amor, edições Ática, 1975)


2.

debaixo somos
caruma areia saibro prata espuma
e o dia amadurece à recta claridade do fruto leve e morno
o dia que se alarga onde
hoje
lugar de verão arável como a terra
esbulhado de permanentes dívidas
se restitui profuso
original
obsessivo espaço já berma já repouso
estuário de vastas solidões
hélas ! que l'arc-en-ciel nous prend
et on se déshabille
et on est livre de gorges de soleil
ailleurs.

(de Três Poetas, colecção O Oiro do Dia, 1980)


20 de Dezembro

Caem as sombras. Tão devagar
como o sono se desenha e afunda no corpo.

Remota, a quietude
levanta-se, vai descobrir onde
o pensamento pode ser também ancestral
longo lençol para a revelação dos nomes

Por uma fresta de chuva cortada
de rumores começa
a densidade
que me sitia: presença
maior, sem rosto
extenuando o sossego que vou pisando
ontem difuso


agora exacto


tangencial


divinamente exacto.

(de O Livro de Olotolilisobi, edições Afrontamento, 1983)


audível

pedi-lhe a história de uma árvore. disse-me conta a de todas as árvores da floresta. quando as vozes se cobrem de escuro e as distâncias caminham a par. cautelosamente. para o lado onde os ecos morrem de espanto. e um frémito decompõe sua beleza estática. e a lua sobe aos cômoros mais próximos. e a noite afirma não estarei aqui para sempre. há lobos, há frio. há solidão na terra.

(de caixa inglesa, edições Rolim, 1981 - aleph)