[SONETOS À SEXTA-FEIRA]
JOSÉ AUGUSTO SEABRA
Cai-me das mãos o resto de cansaço
e gela. Escorre inútil. Débil fio
à flor do corpo: transparente ou baço?
Dos braços verticais dedos esfio.
Abri-los. Distendê-los. E não faço
o fácil movimento. Só desfio
pela memória o nítido regresso.
Voltado sobre mim me desafio.
O círculo não fecha. Enquanto aflora
o leve estremecer. Uma demora
dum gesto me suspende. Quase salto
sobre as garras do tempo. Breve e incauto
me prolongo no rasto dum desejo.
E o milagre: apalpo, sofro, vejo.
(de A Vida Toda, 1961)
VARIAÇÕES
«Basta pensar em sentir
para sentir em pensar»
(F. Pessoa)
sempre te sinto ou penso ou sinto tão
sem te pensar sentir pensar ou sem
sentido ou não que só pensar-te vem
sentir-te ser pensando ser ou não
amor sentir pensar sentir só quão
te penso ou sinto ou penso ou quase nem
sentindo sei se o sei ou mal ou bem
pensei senti pensei sabendo em vão
pensar pensar pensar ou só sentir
não ser sentir senão sentir pensar-
-te sempre sentir sentir sentir sentir
já não pensar-te amor mas só pensar
sentir pensar sentir pensar sentir-
-te amor amor amor sentir pensar
(de Desmemória, 1977)
Qualmente as vagas
víneas volteiam
a bruma apaga
teia por teia
a luz que alaga
a ulisseia
ilha onde as águas
tecem a Ideia.
Só entre as pregas
do tempo espia
a velha deusa
tramando o mito
de um infinito
e vão regresso.
_____________
Que rasar cerce
de asas declinas
se o sol declina
e o voo excede
o voo, ó Ícaro,
filho de Dédalo
mas não do mesmo
raso destino?
Um pouco menos
de azul e a brasa
que te incendeia
derrete a cera
de cada asa
fundindo a Ideia.
____________
Aqui Ulisses
vai aportando
ao cais do mito,
aonde e quando
o infinito
se tece, enquanto
tudo é escrito
ou declinado
de canto em canto
pelas sereias
em seu descante
e em nada a deia
destece o manto
da pura Ideia.
(de Gramática Grega, 1985)
DA ALEGRIA
(Ouvindo a IX Sinfonia, de Beethoven, em Bucareste)
Que voz reconcilia
o sangue, assediado
pela música fria
dos lábios, modulada
na clave tão sombria
onde a loucura arde
assim cega e vazia?
Não é a voz: só o bafo
sereno da alegria
atravessando a alma
num íntimo arrepio
enquanto a melodia
circula pelo sangue
que a voz reconcilia.
(de Conspiração da Neve, 1999)
POEMS FROM THE PORTUGUESE
Há 2 horas
Sem comentários:
Enviar um comentário