29.5.04

JOSÉ AUGUSTO SEABRA
Nasceu em 1937.
Foi militante anti-fascista e a sua acção ficou marcada pela união entre civismo e cultura, quer antes, quer depois do 25 de Abril. Doutorou-se na Sorbonne com uma tese sobre Fernando Pessoa (de quem foi um dos mais destacados estudiosos), orientado por Roland Barthes. Fundou em 1980 a rvista Nova Renascença. Além da carreira académica foi deputado à Assembleia da República, Ministro da Educação ente 1983 e 1985 e Embaixador de Portugal na UNESCO, em Nova Delhi, em Bucareste e em Buenos Aires.
Morreu na passada quinta-feira.
(vd. também a evocação do Almocreve)
António Ramos Rosa disse acerca dele: "No âmbito da sua vida individual, procura o poeta apoderar-se de algo que o salve da mesquinhez e da frustração ambientes, do inexorável fluir do tempo - «Quase salto / sobre as garras do tempo» -, sendo o fruto desse combate a recuperação de gestos e impulsões vitais numa progressiva redução em que a consciência da linguagem acaba por ser determinante" (Líricas Portuguesas - 4ª série, 1969)


Nem nos defende a ausência:
é o reverso.
Sabemos todos já bem a ciência
da traição que se oculta a cada verso.

Nem nos salva a desculpa
de anoitecer, poetas:
por cada mea culpa,
apontam-nos a morte noutras setas.

Ficar nem chega. Ou ir
ou sepultar-nos.
Foge-nos o tempo já de decidir
Sequer suicidar-nos.

A bem ou mal, poetas.
Liberdade
só esta que sorri por entre as frestas
hesitante do peso da verdade.

(de A Vida Toda, edição do Autor, 1961)

A PALAVRA

Esperar o limite dos lábios, o limbo da palavra.

Ela chega do ritmo, desborda e cria o espaço, a música e o tempo.

Ela chega e contempla.

Visita-me uma sílaba, apanho-a à flor dedos dedos. Como pétala, cai.

Ilumina-me o abismo. Tombo aos pés do silêncio. Só a palavra salva.

Às vezes é tumulto. E sombra. Cerro os olhos e acordo. A palavra é manhã.

A água da palavra. A sede, a água, a sede.

(de Os Sinais e a Origem, Portugália editores, 1967)


SUBTERRÂNEO

Soterrei as palavras. Pelos canais do sono: ó catacumbas líquidas.

Desacordes os lábios. Decepados os dedos. Só trincheiras de ausência.

De um jeito curvo avanço: inviável toupeira. Sem mais noite que as unhas.

Desertar do limite. Para lá das narinas: no focinho do tempo.

(de Tempo Táctil, Portugália editora, 1972)

ACTO

Se iluminar-se
o puro acto
lento se ousasse
no tempo exacto
quase só graça
de ser o espaço
de nada a nada
no puro acto
de iluminar-se.

(de Desmemória, Brasília editora, 1977)

As cigarras rondavam
as espaldas da Acrópole
vergada. Repetiam
as sílabas roídas
por séculos
de nada.

(de Gramática Grega, edições Nova Renascença, 1985)

Nem sei de quando
amo este amor sombrio
e amado, nem se amando
ódio a ódio o adio,
brando, tão brando
e a frio.

(de Enlaces, em colaboração com Norma Backes Tasca, Fundação Eng. António de Almeida, 1993)

CICATRIZ

"Uma ferida, tudo o que há de mais esquemático"
(Ana Blandiana)

Desenhavam as nódoas
do silêncio, mediam
suas feridas todas
com a fria esquadria
das grades: tão a modos
que o esquema corria
da cicatriz dos bordos.

(de Conspiração da Neve, livraria Minerva editora, 1999)

RUGAS

Se a mágoa não perturba
a luz dorida e vaga
filtrada como a chuva,
que sombra já divaga
na mente que se curva
ao vento onde resvala
o tempo ruga a ruga?

(de O Caminho Íntimo para a Índia, Lello editores, Fundação Macau e Inst. Intern. de Macau, 1999)

7 de Agosto [de 1991]

Da alva ao crepúsculo, aí está a luz de Creta a distender-se sobre a matéria visível em cambiantes infindas, que só com uma experiência apurada apercebemos, ao olhar demoradamente as coisas, captando-lhes a tonalidade exacta a cada hora do dia. É de Cézanne que me lembro, quando a coincidência de algumas percepções inesperadas me domina, sob o sol que nos penetra até aos ossos.
Carnação sensual desta terra calcária, seca e dura, curtida pela história: quem saberá tocá-la ainda? A ela me rendo, com os sentidos todos.

(de A Luz de Creta - Diário Poético, edições Cosmos, 2000)

Sem comentários: