9.4.04

Cardeal CARLO MARIA MARTINI

A Beleza crucificada: Sexta-feira Santa e o hoje da dor do homem


A Cruz é revelação da Trindade na hora da “entrega” e do abandono: o Pai é Aquele que entrega o Filho à morte, por nós; o Filho é Aquele que Se entrega por nosso amor; o Espírito é o Consolador no abandono, entregue pelo Filho ao Pai, na hora da Cruz (“E inclinando a cabeça, entregou o Espírito”: Jo 19, 30; cf. Hb 9, 14) e pelo Pai ao Filho, na ressurreição (cf. Rm 1, 4). Na Cruz, a dor e a morte entram em Deus por amor dos sem Deus: o sofrimento divino, a morte em Deus, a debilidade do Omnipotente são outras tantas revelações do seu amor pelos homens. É este amor incrível e ao mesmo tempo suave e atraente que nos envolve e fascina, exprimindo a verdadeira Beleza que salva. Este amor é fogo devorador, ao qual só se pode resistir por uma incredulidade obstinada ou por uma recusa persistente em nos colocarmos em silêncio frente ao seu mistério, ou seja, pela rejeição “da dimensão contemplativa da vida”.
É verdade que o Deus cristão não dá, deste modo, uma resposta teórica à interrogação sobre o porquê da dor do mundo. Ele oferece-Se, simplesmente, como “guardião”, como “seio” dessa dor, o Deus que não deixa que se perca nenhuma lágrima dos seus filhos, porque as faz suas. É um Deus próximo, que precisamente na proximidade revela o seu amor misericordioso e a sua ternura fiel. Convida-nos a entrar no coração do Filho, que se abandona ao Pai, e a sentir-nos, assim dentro do próprio mistério da Trindade.
O Filho é o grande companheiro do sofrimento humano, Aquele que nos é dado reconhecer em todos os sofrimentos, sobretudo naqueles aos quais chamamos “inocentes”. O rosto “frente ao qual todos cobrem o rosto” (Is 53, 3), revela-se-nos como um rosto belo, aquele que Madre Teresa de Calcutá contemplava com ternura nos seus pobres e nos moribundos.

(de Que beleza salvará o mundo?, edições Paulinas, 1999)
tenho sede

8.4.04

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

(...) espantam as palavras de Jesus que nesta quinta-feira santa, especialmente, se recordam. Ele pegou no pão e disse: "Tomem e comam dele, pois este pão é o meu corpo entregue por vós". A Eucaristia, por vezes repetida como mero culto devoto, rotineiro signo de uma pertença sociológica implícita, é, na verdade, o lugar vital da decisão sobre o que fazer da vida. Todas as vidas são pão, mas nem todas são Eucaristia, isto é, oferta radical de si, entrega, doação, serviço. Todas as vidas chegam ao fim, mas nem todas vão até ao fim no parto dessa utopia (humana e divina) que trazem inscritas. É disto que a Eucaristia fala.

(vale a pena ler o texto completo)
PIERRE JOUNEL

Da Ceia do Senhor à Eucaristia da Igreja


A Eucaristia da Igreja mergulha as suas raízes na Ceia de Jesus. Ao reunirem-se para celebrar a Refeição do senhor, os cristãos comem do pão partido e bebem do cálice de vinho, depois de o sacerdote ter pronunciado, na oração de bênção, as palavras de Jesus: Tomai e comei, isto é o meu corpo. Bebei todos deste cálice: este é o meu sangue (Mt 26, 27). Fazei isto em memória de mim (Lc 22, 19).
Memorial da última Ceia, A Eucaristia deveria ser marcada pela tristeza das despedidas do Mestre e do anúncio da sua morte próxima, morte que ela antecipava em mistério: o pão e o vinho tornam-se, de facto, o corpo entregue e o sangue derramado (Lc 22, 19-20). E, no entanto, a celebração desenrola-se em clima de alegria, é "eucaristia", o que quer dizer, simultaneamente, bênção, louvor, acção de graças. É a repetição da refeição tomada por Jesus com os seus apóstolos, ao começar a sua paixão, e realiza-se à lus da Páscoa. A paixão dolorosa tornou-se aí "bem-aventurada paixão", paixão triunfal. Na véspera da sua morte, Jesus falara aos seus do vinho novo que beberia com eles no reino de seu Pai. E eis que, na tarde da ressurreição, Ele parte o pão aos dois discípulos, com quem se juntaria na estrada de Emaús (Lc 24, 30), e a seguir partilha, com os dez apóstolos reunidos na cidade, o que sobrara da refeição deles (Lc 24, 41). Algum tempo depois, dir-lhes-á, junto à margem do lago da Galileia: vinde almoçar (Jo 21, 12). Por fim, depois de se ter sentado com eles à mesma mesa, deixou-os para voltar para seu Pai (Act 1, 4).
A partir desse momento, a lembrança da refeição que antecipou o sacrifício da cruz ficou unida à das refeições tomadas com o Ressuscitado.
(...)
Morte e ressurreição, preparadas por uma inserção íntima de Deus na família humana, tal é o mistério pascal de Cristo, mistério que se perpetuará ao longo dos séculos na liturgia da Igreja.

(de A Missa Ontem e Hoje, Gráfica de Coimbra, 1988)

7.4.04

MARIA VITORIA ATENCIA

A NOITE


Pode a lua cegar-nos, ela que em nosso leito
nos convoca, nos fere fatalmente ou cativa,
fiéis a seu intento de um sono desvelado.
Abre-se a noite. Dura. A trepadeira é cúmplice.
Cai ao chão a roupa ínima. Porém, idêntica
aurora há-de velar-nos ou ser glória nossa.

(tradução de José Bento)
Por via da Cláudia, tomo conhecimento de uma das poucas notícias de jornal que me poderiam deixar maravilhado.
Em Quarta-Feira Santa, pré-aviso de blog.

6.4.04

ANTÓNIO BARAHONA

PRIMEIRO MISTÉRIO DOLOROSO / A AGONIA DE CRISTO NO JARDIM DAS OLIVEIRAS

Que não resulte inútil e nos salve
este suor de sangue, gota a gota,
derramado na nossa face humana
pla Santa Face prosternada em prece

Que não resulte inútil: seja prática
a memória do sangue, que nos move
a rezar solidários por quem sofre
na infinita solidão sem sombra

Que não resulte inútil, que não durma
nenhum de nós: fiquemos de vigia:
a vida é curta pra tão longa hora!

Que não resulte inútil, que se cumpra
a promessa de Deus à Sua Igreja,
que continua Cristo em agonia

(de Rosas Brancas e Vermelhas para um rosário jubilar, edições Paulinas e Ajuda à Igreja que Sofre, 2000 - colecção Celebrar)
JOSÉ BLANC DE PORTUGAL

O deserto é imenso e errado
mas sua desolada vastidão
não chega para contar as penas todas
não as minhas queixas mesquinhas
de que um oásis saciaria o acre ardor
mas as dos que me rodeiam e a quem
apenas posso dar o meu querer bem.

11.IV.90

(de Quaresma Abreviada, Black Sun editores, 1997 - the impossible papers)

5.4.04

VITORINO NEMÉSIO

PRECE


Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha mão.

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu Filho copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de Pai ainda não pode ser,
Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.

(de O Verbo e a Morte, 1959)

4.4.04

AMADEU BAPTISTA

ENTRADA EM JERUSALÉM


Eu vi o sacrifício e o boi que chora,
e a pomba degolada na fogueira. Vi o cordeiro
imolado nas chamas e a cidade
ainda erecta, pedra sobre pedra.
Eu vi o que jamais
foi visto alguma vez,
Jerusalém, o céu e o deserto,
e o soluço imenso sobre o mundo
enquanto o fogo invadia tudo.
Vi a casa de Deus abandonada
e a salvação dos mortos maculada
pela eterna ausência que o espírito
chamou a esta torpe sedição.
Eu vi o sol e a treva que redime,
e a mágoa do esconjuro que persigo.

(de Paixão, edições Afrontamento, 2003)