8.3.08

RUBEN A.

[VIAGENS NA MINHA TERRA (II)]

(excerto)

Lisboa - dia seguinte - Telefonei cedo ao Cinatti que sonolento incompreendeu o Sonho de Cilião, as respostas monossílabas prometeram encontro na Ática e jantar cá em casa.
O Cinatti é alma fechada - nas longas caminhadas chupa dos outros - sem querer - para guardar intactos pensamentos puros - parece um filtro. Quem não o conhece nunca perceberá as suas afinidades poéticas - o Cilião no fundo conhece o Cinatti. - É poeta, publicou dois livros de versos, nasceu em Londres e esteve em Timor dois anos a pesquisar sândalos para esquecer poemas europeus - ele tem o contacto das almas e no aproximamento descreve os passos abertos da incerteza doutros - Amou como quem brinca aos 4 cantinhos e ainda ama as certezas do passado - julgam-no boémio quando se extasia ao sol de motivo lombada principal. O Cinatti é Ruy nunca conheceu a Dona Engrácia mas ela por vezes lembra-se dele. Ganha dias quando burgueses de sociedade o acham curioso e na alma sofre como menino a quem bateram injustamente - não faz pecados nem é ateu porque é são para seringar os que brincam com o fogo. Boémio o Cinatti? Só para a Dona Engrácia pois o Conselheiro ri-se quando ele recorda as histórias do papa-tudo. De vez em quando desaparece porque aparece nele o monge a tempo distante da meditação necessária. Ao princípio não nos entendíamos até mesmo olhávamos antipáticos, depois, ele começou a crescer em alma aberta e eu a diminuir-me em alma fechada até que considerei a nossa amizade nos pesos da eternidade - É grande amigo da Sofia mas ele critica-se melhor em pensamento do que a jogar ao pé coxinho - não tem idade nem precisa de ter, não tem horário estabelecido e tem palavras de ida e volta. Recorta-se sempre à vista amiga abrindo a concha do seu dique - é poeta é cheio de sol para a certeza do amor passado.
Não digas nada, amigo
Que a tempestade chora
Com a certeza de nos ouvir a voz.
Deixa viver amigo a tempestade,
Deixa que apenas se ouça a sua voz.


(de Páginas (II), 1950)

7.3.08

JOEL SERRÃO

Cronos, Eros e Tanatos nas Palavras do Poeta

(excerto)

(...)
Isto, este encontro quase sacro («coisa leve, alada e sagrada é o poeta...», ensinou Platão [em Íon]) de uma expressão poética contemporânea com raízes tão longínquas que se diria entroncarem no próprio ser do homem ocidental – isto situa-nos, uma vez mais, ante o problema da indagação do valor maiêutico da poesia na revelação e no conhecimento daquilo que no homem se encerra.
Problema temeroso que, só por si, exigiria um longo e exaustivo esforço, se é que se deseja fugir às banalidades mais ou menos fáceis, mais ou menos ousadas.
É que a poesia, naquilo que a radicaliza e a define como revelação e conhecimento específicos do que no homem se contém, se nos apresenta, afinal, como um modo singular de viver a essência temporal do homem – exprimindo-a dada simbologia. O homem, como ensinou Cassirer [em Antropologia Cultural], é um animal criador de símbolos – vários e concomitantes símbolos, tais o sagrado, o estético, o filosófico, o cientifico, etc. -, e esse criador encontra em tais símbolos-criaturas a sua imagem possível, conquanto polifacetada e irremediavelmente truncada.
Ora, estamos em crer que o cimento invisível que liga entre si as vivências do estético, do filosófico, etc., expressas singularmente por simbologias próprias, é, directa ou indirectamente, algo que ao tempo respeita ou a ele, em última instancia reverte. Outra vez o tempo, essa tentação maior! Tentação do historiador, sabemo-lo já; da filosofia e da religião, como já sabíamos que o era; da poesia... Ah! A que se reduziria ela, afinal, senão a cantilena melhor ou pior lograda, se não fosse também uma maneira específica de aprender o ser do homem nesse
Correr do tempo ou só rumor do frio
onde o amor se perde e a razão de amar
- surdo, subterrâneo impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
[Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro, 1950]

(de Portugueses Somos, Livros Horizonte, 1975)

5.3.08

ANTÓNIO LUÍS MOITA

POEMA NA RUA


Ao Albano Martins

O poema sai de casa.
Mal se despede do pai.
Sai livre, mas vulnerável
como qualquer ser mortal.

Sai para a rua concreta
do movimento. Vai nu.
Andando por suas pernas
voláteis à contra-luz.

É negro nos seus cabelos,
nos sovacos e púbis.
As suas costas são brancas.
Só é verde a sua voz.

Nos lábios tem, perceptível,
além do ouro de um dente
que brilha, sob a saliva,
molar e caninamente,

a língua – que é incisiva.
E, invisível aos olhos,
o céu da boca, guarita
da dentadura feroz.

Assim, na rua, viaja
com seus meios expeditos:
sexo contente, sem parra,
comunitário o umbigo.

Assim se cumpre e propaga.
Ou morre, sem nenhum grito,
varado por uma bala
de esquecimento.
                                       - Sozinho.

(de Cidade sem Tempo, edição do Autor, 1985)

4.3.08

[outros melros LI]

NUNO BRAGANÇA

(...)
Falámos muito em palavras poucas. Eu puxava pelo fio da fala dela para a conhecer. Eu queria conhecê-la.
«Você sabe», disse ela a dada altura. «Quando cheguei em Paris num apartamento solitário eu pegava uma friagem danada de solidão. Foi aí que resolvi comprar o melro.»
«O melro?»
«É. Um melro branco. O vendedor dizia que era bicho de falar melhor que papagaio. Mentiras à francesa. Mas perdi medo quando trouxe para o apartamento aquele pássaro maravilhoso. Às vezes eu falava para ele noites inteiras. Se acordava a meio da noite, bastava acender a luz e vê-lo empoleirado no espaldar do maple de madeira em que ele dormia.»
«O seu marido gosta do melro?»
Sobressalto. «Marido? Não gostava, não. Até tive que dar o pássaro para meu pai cuidar dele.»
«Gostava de ver um melro branco», disse eu. «É bicho da minha infância por causa do Pinóquio
«Você também leu Pinóquio em guri?»
«Em guri e depois de crescido.»
Sorriso grande. «É, que livro aquele.» Pausa. «O melro já não está em casa do meu pai. Quando ele sumiu fiquei agoniada de pensar que ele estivesse buscando o meu apartamento.»
«Se ele aparecesse você expulsava-o?»
«Ah não.»
«Mas há o seu marido.»
«Nessa altura já não havia, não. Quando o melro sumiu já eu estava separada e tratando do divórcio.»
«E agora?»
«O melro ou o marido?»
«O marido.»
(...)

(excerto de Square Tolstoi, 1981)

3.3.08

MARIA GABRIELA LLANSOL

Lição XIV


Calaram-se os objectos reflectindo no tempo e na nostalgia que havia de vir, mas uma figura fiel se debruçava sobre eles e derramava um espaço ingovernável penetrado de mar e de cantos de marinheiros anónimos. A casa desaparecia atrás dela e ela falava sem cessar com uma palavra para cada ser. – è um rapto – disse ao portão quando ele se fechou. – Mas sem violência – disse à primeira pedra – não poderia partir.

(de A Restante Vida – Geografia de Rebeldes II, 1982)