20.6.12


JORGEN THEOBALDY


Uma cerveja, por favor

Eu podia habituar-me a ser uma pessoa
arrumada.  Aqui chega ao fim um dia calmo
todo o dia o telefone esteve calado, e em silêncio quase rebenta
o cesto da roupa debaixo do lavatório.
No écran explode uma casa perante a cara
espantada do locutor.  Oh the fucking news!

O que eu quero é sobretudo amor. Não quero
preocupar-me com a marca das minhas cuecas, das minhas meias
que me oferecem pelo Natal, nos meus anos,
pela Páscoa e no dia em que morrer. Em criança pedia
um comboio e recebia uma camisa
coisa prática! embrulhada em celofane, presa com mil alfinetes.
Este poema não é praticamente nada. Mas pensa bem:
Como há-de desaparecer o que nós não derrubamos, a não ser o sabonete
na água do banho? Estou outra vez a fazer humor, embora não
me sinta  voltado para aí.  Terei mesmo
de lavar a cabeça antes de tu chegares? Lavar a cabeça
é uma recordação terrível...

E depois, amo toda a família, especialmente a minha mulher
que não é da família. Como? Eu não disse nada.
Acabou o noticiário do dia, o dia em noticias, the fucking
news. Hoje houve boas notícias. A  Casa da América
foi ocupada, não digo onde.  Começa o filme
e ainda não lavei a cabeça!
Tu não és a minha mulher. Amo-te. Protege-me
que estou a fumar demais! Fica-se nervoso nesta casa
depois de 1933 e depois de 1945. Estás a ligar alguma coisa ao que eu digo?

De repente encontro-me num café, com grande barulheira
ao balcão. Este poema está cheio de potencialidades
como a nossa vida. Evidentemente que não se passa um dia
sem álcool. Ah, a bebida é que dá gosto à vida.
Mehdi já lá está, bêbado como um cacho.  Também tu já chegaste há
um bocado, e tens razões para não falar comigo.
Vai alta a noite, a música está alta. Peço uma aguardente clara
para a minha cabeça ainda clara. Uma cerveja, por favor. Seja o que for
que tu penses de mim, é importante que eu te diga: também tu
escreveste este poema. Não foi arte nenhuma; foi escrito
de costas para a janela.


(in De Costas para a Janela / Poesia Alemã Contemporânea - I, Selecção e tradução de João Barrento,  colecção O Oiro do Dia, 1981)

19.6.12

JORGE DE LIMA



CANTO III
POEMAS RELATIVOS

X

Vós não viveis sozinhos,
os outros nos invadem,
felizes convivências,
agregações incômodas,
enfim ambientalismos,
e tudo subsistências
e mais comunidades;
e tantas ventanias,
acotovelamentos,
desgastes de antemão,
acréscimos depois,
depois substituições,
a massa vos tragando,
as coisas vos bisando;

os hábitos, os vícios,
as moças embutidas
mudando vossas cartas;

sereis administrados
no sono e nos pecados,
vós mapas e diagramas
com várias delinqüências,

e insanidades várias,
dosando o vosso espaço,
pesando o vosso pão
de tempos racionados;
e não tereis vivido
e não tereis amado,
porém sereis morrido.

XIII

Uma janela aberta
e um simples rosto hirto,
e que provavelmente
nela se debruçou;
e nesse gesto puro
do rosto na janela
estava todo o poema
que ninguém escutou;
só a janela aberta
e o espaço dentro dela
que o tempo atravessou.

XIV

O conto era um dia,
um dia futuro,
e dentro do dia
incluído o conforme,
e dentro o que foi
porque fora isso
se tal não se dera,
se o mundo parasse
e o espaço se excluísse;
se a pedra não fosse
o símbolo que era,
pois tudo era um dia,
um dia sem dia,
porém com o poeta
que um dia seria.


(de Invenção de Orfeu, 1952)




18.6.12


FERNANDO GUERREIRO


A pretensão em traduzir por escrito
o que, ao arrepio da faculdade
de simbolização da linguagem,
um dia tinha sentido talvez fosse
o que mais o incomodava na poesia.
De facto, que nome dar ao que,
retirando-se, põe em dúvida
a própria possibilidade do mundo
através da palavra encontrar
para o desconhecido
a promessa de um sentido?
Não era a linguagem que dava
corpo à verdade mas o real,
confirmado na sua ausência,
que obrigava as palavras
a alucinar-se produzindo
o monstro capaz de ocupar
o lugar na parede que, apenas
por existir, impedia o mundo
de sobre si ter ruído. Qualquer
nome de que nos servíssemos
continha em si a memória
atormentada de um corpo
em que as palavras estagnaram,
puxando-o para o fundo,
para a réstea de luz
de que se constitui,
presa dos limos,
a matéria seca do discurso.


(de Caminhos de Guia, Black Sun editores, 2002)