17.1.04

ALBERTO LOPES

PERIGO


Sai debaixo das pedras
E vai
Vai

Descola a memória
Flutua no vago
Deixa-te ficar
Há sempre um perigo

Sai debaixo das pedras
E vai
Vai

Vai mais longe mais fundo
Não mudes de assunto
Só porque é mais fácil

Vai
Vai mais longe vai
Vai ao fundo do fundo
Não mudes de assunto
Há sempre um perigo

Longe o ar é mais leve
Pode ser isso o que me chama
Não sei resistir
Nem sei porquê
Pensar que devia...

Vai
Vai mais longe vai
Vai ao fundo do fundo
Não mudes de assunto
Há sempre um perigo

(incluído, com música de João Gil no álbum Um destes dias..., o último dos Trovante)

16.1.04

cinco sonetos monossilábicos

1.


Co
mo
são
be
las,
meu
a
mor,
as
tuas
mãos
de
si
lêncio.

2.

No
va
s i
lhas
no
s o
lhos
do
ve
lho a
cen
dem
os
dias

3.

O
bar
co
re
cu
a
co
mo um
li
vro a
ber
to
no
índice

4.

Ce
le
bro os
di
a
s in
tei
ro
s à
sa
í
da
do
metro

5.

As
gran
des
tem
pes
ta
des
são
o
ma
r a
ser
fe
liz

15.1.04

JOSÉ GOMES FERREIRA

III


(Desordem? Uma palavra que, nas coisas divinas, significa caos.)

Vejam como os homens são rígidos na sua semelhança com os mortos.

Registam tudo em almanaques
até as certidões de idade dos planetas por nascer,
marés, vento norte, vento sul, menstruações do sal,
agendas com os números telefónicos das gaivotas nos horizontes
- e o horário da entrada dos astros nas repartições
para as serenatas aproveitarem melhor as insónias da Lua.
Só os terramotos continuam anónimos nos músculos dos gigantes
forças cegas em pontas de nos subterrâneos
sem horas certas para se espreguiçarem.
E é pena. Porque desordem sem ordem é um relógio
a que deram corda de mais
e o tempo desatou a correr para apanhar os ponteiros.

Desordem?

Terrível descoberta de que só podem organizá-la os burocratas
com os seus copiadores de ferrugem a esmagarem os ofícios,
Santo Ofício de torturar papel para haver arquivos
que fabricam borboletas com pó e traças,
e papel químico gasto de tanto parecer vida confusa em cidades de sinais
afinal sempre as mesmas frases, mapa retórico de ruas de fantasmas,
«Recebi a sua prezada carta...» «Esperando a sua prezada resposta...»
Milhões de canetas com aparos de suor pontual
que sangram as horas
de bafio inquieto
para simularem o caos inicial
do Tempo Mudo.
Porque não foram as curvas regulares dos aromas,
mas a anarquia
do mar e da dor das labaredas
que modelou a primeira rosa do mundo.

(de Grito Plural, parte de Poeta Militante - Viagem do Século Vinte em Mim, 3º Volume, Moraes editores, 1978 - Círculo de Poesia)

14.1.04

MARIA GABRIELA LLANSOL

(excerto de) Intróito

Joana gostava de escultura.
Um velho escultor, amigo do pai, chamado Sitiais, dava-lhe lições nas horas em que, por princípio, nunca criava.
- O artista - dizia ele - precisa de disciplina. Deve lembrar-se que é homem e não esquecer a realidade do seu próprio corpo. a criação sorve-nos como uma bomba esvazia um tanque. Se não podemos ter horas certas para ser artistas devemos, ao menos, ter horas certas para repelir a escravidão da Arte.
- Então a arte é semelhante ao amor - concluiu Joana uma tarde.
- Não ao amor de toda a gente, mas ao amor que és capaz de sentir.
- Já o sentiu assim alguma vez?
- Não, creio que é privilégio único de certas mulheres.

(in Os Pregos na Erva, 1962, 2ª ed: edições Rolim, 1987)
Não é só do pão que preciso, é
da água
e da morte, dos caminhos entre as
canas até à figueira. Preciso
dos olhos dolentes de um cão, das terras
cheias de erva e das casas em ruínas.

Preciso do cheiro do amor na terra.

13.1.04

[mesmo sem perceber nada do assunto, sugiro ao Tiago, em face das últimas notícias, que comece a fazer-se acompanhar deste poema:]

JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

ANSIEDADE


Os
últimos passos do dia pela casa
são os meus. Cerro a
porta de entrada na
última ronda pela sala
deixo
o ruído da noite tocar a
ruína da alma. A
manhã que vai trazer? Será dia de perder? Na
arte
da grande roleta: o que irá tocar aos meus?
A
trégua que ora me assola parece
querer demorar
mãe e
filha já dormem dentro deste território onde
devo parecer norte
onde me
toca
ser homem.

(de Rés-do-Chão, Gótica, 2003)
Ora aqui está um blog onde não se dão informações nem opiniões, não se fala mal nem bem, onde se dizem banalidades efémeras e sem pretensões estéticas ou filosóficas.
Da sua total inutilidade resulta que é... fabuloso e indispensável!!
TIM: As palavras são os tijolos. São os alicerces. Poemas?! Não! São letras rock.
Remar, remar

Mares convulsos, ressacas estranhas
Cruzam-te a alma de verde escuro
As ondas que te empurram
Aa vagas que te esmagam
Contra tudo lutas
Contra tudo falhas

Todas as tuas explosões
Redundam em silêncio
Nada me diz

Berras às bestas
Que te sufocam
Em braços viscosos
Cheios de pavor
Esse frio surdo
O frio que te envolve
Nasce na fonte
Na fonte da dor

Remar remar
Forçar a corrente
Ao mar, ao mar
Que mata a gente

letra: Tim
música: Xutos & Pontapés

(editado em single, em 1984)
[há 25 anos...]

(...)
ZÉ PEDRO: Com aquele speed todo, um gajo estava a tocar e parecia que o tempo nunca mais passava, eu dizia «Muda! Muda!» e passado uns segundos «Acaba, acaba e começa já outra! Não percas muito tempo.» Foi tudo muito confuso!

TIM: A gente a serrar e os gajos do público deviam pensar que era sound-check... porque nós, mal o gajo que nos foi apresentar disse: «Xutos & Pontapés Rock'n'Roll Band», entrámos. Pegámos nos instrumentos e começámos logo. Por fim o Zé Leonel estava tão à toa que saiu pela frente do palco. O Kalu, quando o viu sair, foi-se também embora. Fiquei eu e o Zé Pedro sozinhos... quando reparámos nisso, fomos também embora.

ZÉ PEDRO: A assistência que tinha estado a ouvir, a noite toda, o Rock Around the Clock e outras coisas similares, ficou estática. Quando acabámos não se ouvia nem uma palma. Nem um assobio. Não se ouviu nada. Eles não devem ter percebido absolutamente nada e o que é verdade é que nós também não.
(...)

(excerto de Conta-me Histórias, de Ana Cristina Ferrão, Assírio & Alvim, 1991 - Rei Lagarto)
MARIA GABRIELA LLANSOL

(excerto de) Intróito

As palavras escritas numa vidraça embaciada pela chuva são sempre tristes. Não importa o seu verdadeiro significado.

(de Os Pregos na Erva, 1962, 2ª ed: edições Rolim, 1987)

12.1.04

G. K. CHESTERTON

A primeira coisa a notar como típica da tonalidade moderna é um certo efeito de tolerância, que por sua vez é o efeito de uma certa timidez. A liberdade religiosa poderia significar que todos eram livres de discutir sobre religião. Na prática, significa que as pessoas mal se permitem mencioná-la. Há uma outra qualidade, de algum interesse: a de que aqui, como em muitas outras coisas, há uma imensa superioridade intelectual nos pobres e nos ignorantes. Qualquer inquilino da cidade velha gostava da cruz [para monumento de guerra, nas encruzilhadas] porque era cristã, e assim o dizia, ou então não gostava porque lhe cheirava a bispo, e assim o dizia. Mas os chefes do partido anti-papista tinham vergonha de falar no seu anti-papismo. Eles não diziam concretamente que achavam que um crucifixo era uma coisa perversa; mas diziam, com tantos rodeios quantos os necessários, que achavam que a bomba de água da freguesia, ou uma fonte pública, ou um autocarro municipal eram coisas boas.

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)
EMANUEL FÉLIX

AUTO DE DECLARAÇÃO


Ao Jacinto Monteiro

Sou o homem da mão ressequida
O cego Bartimeu de Jericó
O paralítico de Cafarnaum
Sou Zaqueu
Sou a viúva de Naím
Sou a mulher adúltera, Senhor
Sou Marta irmã de Lázaro
Maria Madalena
O Bom Ladrão

Só me falta, Senhor, o coração
Silencioso e humilde.

(de Habitação das Chuvas, edição do Autor, Angra do Heroísmo, 1997)
AMADEU BAPTISTA

NOLI ME TANGERE


(Para Luís Adriano Carlos)

Tudo me atinge, sendo alguns dos meus irmãos
os pescadores que conheci em Tiberíades,
e os que cultivavam os campos na Judeia.
E Barrabás, e Judas, e o soldado
romano que me escoltou no horto, e a mulher
que intercedeu por Lázaro, e aquela outra
a quem queriam assassinar com pedras. E as crianças
que Herodes mandou matar, e Herodes, e o guardião do templo
que invectivou o meu nome para que de lá me fosse.
E o grego sábio que anotou por mim a oração
secreta e os secretos desígnios do oráculo,
e o fenício jovem que quis que lhe comprasse
um baiozinho negro.
E os que passaram por mim na estrada larga
e de longe acenaram, e o que acendeu a fogueira certa noite
em que o frio escaldava e um resto de toucinho comigo dividiu
e uma manta. E o que era paralítico e nem assim andou, e o cego
que quis ver e nada viu, e o que pediu
por outrem, sabendo ser ouvido mesmo não pedindo.
E o que fez pão e não o repartiu, e ídolos adorou, o escaravelho
e o bezerro de oiro. E a que não teve senão
o corpo por enxerga, e se vendeu aos homens, concedendo à ternura
algum espaço para que a própria ternura evoluísse. E o que veio do norte
e perscrutou a lua, e o que foi emboscado e viajou no deserto
e sempre viajou, sem que no deserto houvesse água, orvalho, o vento
dos regressos, e o que voltou a cabeça e viu
a babilónia dos seres, o prometido extermínio,
Gomorra e Sodoma destruídas. Tudo o que é humano me atinge,
porque tudo o que é humano é divino.

(de Paixão, edições Afrontamento, 2003)

11.1.04

ÉSQUILO

CORO DOS ANCIÃOS DE ARGOS:
(...)
Terríveis são os propósitos do povo animado pelo ressentimento, e sempre a maldição popular pagou a quem lhe deve. Sinto-me angustiado pelo medo de assistir a alguma trama tenebrosa, pois aqueles que fazem correr sangue nunca escapam aos olhares dos deuses. Um dia virá, no curso das vicissitudes que consomem a nossa vida, em que as negras Erínyas destruirão o homem feliz que menosprezou a justiça, e não há qualquer apelo para aquele que elas fazem desaparecer. Um nome altamente ilustre expõe-se a muitos perigos, porque é sobre os notáveis que cai o dardo de Zeus.
O que pretendo é uma felicidade que não excite a inveja. Oxalá consiga não ser um destruidor de cidades nem um cativo que vê a sua vida submetida aos caprichos de um vencedor!
(...)

(da peça Agamémnon, incluída em Teatro Completo, tradução de Virgílio Martinho; Introdução de Jorge Silva Melo, 2ª ed: editorial Estampa, 2002)
MARIA GABRIELA LLANSOL

(excerto de) Os Pregos na Erva

- Queria ver-te passar - disse Raquel. - Mataram a galinha à pedrada por pertencer a uma judia. Sabes o que são estigmas?
- Sei, sei - respondeu Leonardo.
- Nós temos estigmas - continuou Raquel. - Qualquer dia as pedras acertam nos próprios judeus. Não compreendo porque matam. Os mortos são horríveis para ver.
Leonardo levantou a mão livre e apoiou-a nos lábios de Raquel. Sentiu o seu beijo vivo aquecer-lhe o corpo, como se sobre ele tivessem estendido a pele macia de um cordeiro.
A chuva recomeçou a cair, não desolada mas trespassada de sol. Era uma poalha de luz aquosa que esvoaçava nos seus rostos e neles se sumia. Apagava-se sem vestígios na pele transida que irmanava com o chão.
- Tenho de ir-me embora - disse Leonardo, varado pela angústia de não poder acompanhá-la a casa. - À noite ficarás junto de mim e de Gonçalo.
Olhou de novo a face de Raquel puída pelo medo, os olhos pretos recuados de susto.
- Faço a galinha para o jantar - disse ela.
Tapou-a com o vestido para que Leonardo não lhe visse a cabeça esmagada, de que pendiam estalactites de sangue coagulado.

(de Os Pregos na Erva, 1962; 2ª ed: edições Rolim, 1987)