JOSÉ GOMES FERREIRA
III
(Desordem? Uma palavra que, nas coisas divinas, significa caos.)
Vejam como os homens são rígidos na sua semelhança com os mortos.
Registam tudo em almanaques
até as certidões de idade dos planetas por nascer,
marés, vento norte, vento sul, menstruações do sal,
agendas com os números telefónicos das gaivotas nos horizontes
- e o horário da entrada dos astros nas repartições
para as serenatas aproveitarem melhor as insónias da Lua.
Só os terramotos continuam anónimos nos músculos dos gigantes
forças cegas em pontas de nos subterrâneos
sem horas certas para se espreguiçarem.
E é pena. Porque desordem sem ordem é um relógio
a que deram corda de mais
e o tempo desatou a correr para apanhar os ponteiros.
Desordem?
Terrível descoberta de que só podem organizá-la os burocratas
com os seus copiadores de ferrugem a esmagarem os ofícios,
Santo Ofício de torturar papel para haver arquivos
que fabricam borboletas com pó e traças,
e papel químico gasto de tanto parecer vida confusa em cidades de sinais
afinal sempre as mesmas frases, mapa retórico de ruas de fantasmas,
«Recebi a sua prezada carta...» «Esperando a sua prezada resposta...»
Milhões de canetas com aparos de suor pontual
que sangram as horas
de bafio inquieto
para simularem o caos inicial
do Tempo Mudo.
Porque não foram as curvas regulares dos aromas,
mas a anarquia
do mar e da dor das labaredas
que modelou a primeira rosa do mundo.
(de Grito Plural, parte de Poeta Militante - Viagem do Século Vinte em Mim, 3º Volume, Moraes editores, 1978 - Círculo de Poesia)
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