MARIA GABRIELA LLANSOL
(excerto de) Os Pregos na Erva
- Queria ver-te passar - disse Raquel. - Mataram a galinha à pedrada por pertencer a uma judia. Sabes o que são estigmas?
- Sei, sei - respondeu Leonardo.
- Nós temos estigmas - continuou Raquel. - Qualquer dia as pedras acertam nos próprios judeus. Não compreendo porque matam. Os mortos são horríveis para ver.
Leonardo levantou a mão livre e apoiou-a nos lábios de Raquel. Sentiu o seu beijo vivo aquecer-lhe o corpo, como se sobre ele tivessem estendido a pele macia de um cordeiro.
A chuva recomeçou a cair, não desolada mas trespassada de sol. Era uma poalha de luz aquosa que esvoaçava nos seus rostos e neles se sumia. Apagava-se sem vestígios na pele transida que irmanava com o chão.
- Tenho de ir-me embora - disse Leonardo, varado pela angústia de não poder acompanhá-la a casa. - À noite ficarás junto de mim e de Gonçalo.
Olhou de novo a face de Raquel puída pelo medo, os olhos pretos recuados de susto.
- Faço a galinha para o jantar - disse ela.
Tapou-a com o vestido para que Leonardo não lhe visse a cabeça esmagada, de que pendiam estalactites de sangue coagulado.
(de Os Pregos na Erva, 1962; 2ª ed: edições Rolim, 1987)
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