16.10.03

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

MISSÃO DO CORPO


Claro que o corpo não é feito só para sofrer,
mas para sofrer e gozar.
Na inocência do sofrimento
como na inocência do gozo,
o corpo se realiza, vulnerável
e solene.

Salve, meu corpo, minha estrutura de viver
e de cumprir os ritos do existir!
Amo tuas imperfeições e maravilhas,
amo-as com gratidão, pena e raiva intercadentes.
Em ti me sinto dividido, campo de batalha
sem vitória para nenhum lado
e sofro e sou feliz
na medida do que acaso me ofereças.

Será mesmo acaso,
será lei divina ou dragonária
que me parte e reparte em pedacinhos?
Meu corpo, minha dor,
meu prazer e transcendência,
és afinal meu ser inteiro e único.

(de Farewell, 1996 - edição portuguesa: Campo das Letras, 1997)
ANTÓNIO BARAHONA

para sua Santidade João Paulo II

ILUMINANTE dia o desta noite
no adro da igreja aberta
a todos nós - pecadores - quem não for
que atire a primeira pedra a
Maria Madalena por amor de Cristo

(Maria Madalena
ciência de humildade
sibila que é criança
encontrada-perdida
salva-a a fé e a esperança
unidas à caridade)

Dissoluta simplicidade a minha
em ritmos da infância religiosa
em que fui comungante à noitinha
na euforia mística da rosa

1.XI.80

(de Rizoma, Guimarães editores, 1983 - colecção Poesia e Verdade)

14.10.03

EMANUEL JORGE BOTELHO

guardar a estrela que cai
dentro de um vidro leve

a pedra que rasura a queda.

o diamante desertor

(de Asas e Penas, &etc, 1988)
Realismo Político

se a Dr.ª Ana Gomes tivesse um blog não precisava de andar a esforçar tanto as cordas vocais

13.10.03

[outros melros VIII]

VASCO GRAÇA MOURA

o melro de visita


o amor não é uma saga cruel:
vejo-a cuidar das plantas no jardim,
brincam as filhas com lápis e papel
e eu escrevo sossegado. é bom assim.

na relva, um melro a saltitar, vilão
pretíssimo, esfuzia à cata de algum resto,
ou da mosca azarada: passa lesto
entre duas roseiras. já é verão.

mas o melro demanda outro quintal
e do poema, sem jeito e sem disfarce,
sai de bico amarelo em diagonal

desajeitada: esvoaça sem maneiras
como um pingo de tinta a escapar-se.
de verde prateado, as oliveiras.

(de sonetos familiares, 1994)

12.10.03

[gosto muito de inventários XXVIII]

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

FAMÍLIA


Três meninos e duas meninas,
sendo uma ainda de colo.
A cozinheira preta, a copeira mulata,
o papagaio, o gato, o cachorro,
as galinhas gordas no palmo de horta
e a mulher que trata de tudo.

A espreguiçadeira, a cama, a gangorra,
o cigarro, o trabalho, a reza,
a goiabada na sobremesa de domingo,
o palito nos dentes contentes,
o gramofone rouco toda a noite
e a mulher que trata de tudo.

O agiota, o leiteiro, o turco,
o médico uma vez por mês,
o bilhete todas as semanas
branco! mas a esperança sempre verde.
A mulher que trata de tudo
e a felicidade.

(de Alguma Poesia, 1930)
[gosto muito de inventários XXVII]

MÁRIO CESARINY

o prestigitador
organiza um espectáculo


Há um piano carregado de músicas e um banco
há uma voz baixa, agradável, ao telefone
há retalhos de um roxo muito vivo, bocados de fitas de todas as cores
há pedaços de neve de cristas agudas semelhantes às das cristas de água, no mar
há uma cabeça de mulher coroada com o ouro torrencial da sua magnífica beleza
há o céu muito escuro
há os dois lutadores morenos e impacientes
há novos poetas sábios químicos físicos tirando os guardanapos do pão branco do espaço
há a armada que dança para o imperador detido de pés e mãos no seu palácio
há a minha alegria incomensurável
há o tufão que além disso matou treze pessoas em Kiu-Siu
há funcionários de rosto severo e a fazer perguntas em francês
há a morte dos outros ó minha vida

há um sol esplendente nas coisas

(de Manual de Prestidigitação, Assírio & Alvim, 1981)
[gosto muito de inventários XXVI]

JORGE LUIS BORGES

Things That Might Have Been


Penso nas coisas que poderiam existir e não existiram.
O tratado de mitologia saxónica que Beda não escreveu.
A obra inconcebível que talvez a Dante fosse dado entrever,
Depois de corrigir o último verso da Comédia.
A história sem a tarde da Cruz e a tarde da cicuta.
A história sem o rosto de Helena.
O homem sem os olhos, que nos ofereceram a lua.
Nas três jornadas de Gettysburg a vitória do Sul.
O amor que não partilhámos.
O dilatado império que os Viquingues não quiseram fundar.
O orbe sem a roda ou sem a rosa.
O juízo de John Donne sobre Shakespeare.
O outro corno do Unicórnio.
A ave fabulosa da Irlanda, que está em dois lugares ao mesmo tempo.
O filho que não tive.

(de História da Noite, 1977 - incluído em Obras Completas III, editorial Teorema, 1998 - tradução de Fernando Pinto do Amaral)
[gosto muito de inventários XXV]

GILBERTO MENDONÇA TELES

CHÁ DAS CINCO


para Jorge Amado

chá de poejo para o teu desejo
chá de alfavaca já que a carne é fraca
chá de poaia e rabo de saia
chá de erva-cidreira se ela for solteira
chá de beldroega se ela foge ou nega
chá de panela para as coisas dela
chá de alecrim se ela for ruim
chá de losna se ela late ou rosna
chá de abacate se ela rosna e late
chá de sabugueiro para ser ligeiro
chá de funcho quando houver caruncho
chá de trepadeira para a noite inteira
chá de boldo se ela pedir soldo
chá de confrei se ela for de lei
chá de macela se não for donzela
chá de alho para um acto falho
chá de bico quando houver fuxico
chá de sumiço quando houver enguiço
chá de estrada se ela for casada
chá de marmelo quando houver duelo
chá de douradinha se ela for gordinha
chá de fedegoso pra mijar gostoso
chá de cadeira para a vez primeira
chá de jalapa quando for no tapa
chá de catuaba quando não se acaba
chá de jurema se exigir poema
chá de hortelã e até amanhã
chá de erva-doce e acabou-se

(pelo sim pelo não
_______________chá de barbatimão)

(de Plural de Nuvens, Gota de Água, 1984)
[gosto muito de inventários XXIV]

JEAN-ARTHUR RIMBAUD

Iluminações III


No bosque há uma ave, o seu canto detém-vos e faz-vos corar.
Há um relógio que não toca.
Há uma lixeira com um ninho de bichos brancos.
Há uma catedral que desce e um lago que sobe.
Há um carrinho abandonado nas moitas, ou descendo a vereda em correria, engalanado.
Há uma troupe de cómicos, com os seus fatos, visíveis na estrada através da orla do bosque.
Há enfim, quando tens fome e sede, alguém que te enxota.

(de Iluminações / Uma Cerveja no Inferno, Assírio & Alvim, 3ª ed: 1999 - tradução de Mário Cesariny)
[gosto muito de inventários XXIII]

LUIZA NETO JORGE

EXORCISMO


o sangue o suor
a água lustral
o leite do sol
retido na mama
o sangue sangrando
com o vinho
o pranto o rito
líquido o vinho
tinto no mijo
de deus no sangue
descendo na urina
subindo água
benta no sangue
o filtro do amor
filtrando o suor
um licor dividindo
o choro do pus

(de Terra Imóvel, 1964)
[gosto muito de inventários XXII]

ALBERTO PIMENTA

DESCRIÇÃO DA MONTRA DUMA LOJA DA ALDEIA DA MOURARIA EM LISBOA
E DESCRIÇÃO DA MONTRA DUMA LOJA DO ROSSIO NA CIDADE DE LISBOA


1.
48 ganchos de plástico e chichis para prender o cabelo, todos em plástico resistente e irisado, desde as formas mais simples de prender um carrapito até aos modelos mais preciosos, em forma de peixes, borboleta, caracol ou tubarão azul; 14 rolos de nastro em duas larguras e sete cores, incluindo o dourado e o prateado; 27 cartões com colchetes simples, alguns brancos, outros pretos; 3 embalagens de fita-cola; um pequeno elefante-relógio, com a tromba levantada para se ver o mostrador; 6 caixas de bolas de borracha com motivos e figuras heróicas como o gato Silvestre; 16 emblemas-isqueiro dos clubes mais conhecidos e em vários tamanhos e para vários efeitos, desde os públicos aos domésticos; 6 macacos de peluche, 4 ursos também de peluche, 2 patos, 3 girafas, 3 tigres, 2 leões e 6 gatos, todos em tamanho pequeno e sem música; dezenas dos mesmos animais maiores e com música; 6 pares de pantufas; peúgas para bébé; 8 caixas com materiais não identificáveis; verniz das unhas em 68 tonalidades disponíveis; caixas de lápis de cor; pilhas eléctricas, bonés e dedais.

2.
14 salvas de prata, algumas segundo motivos decorativos do século XVIII, e 3 com aplicações douradas; 34 anéis de ouro e 12 de prata, dos quais muitos com pedras quadradas ou ovais, topázios, ametistas, esmeraldas e naturalmente brilhantes; anéis com pérolas e diamantes, em tamanhos diversos, num total de 28; broches em forma de pêra, de folha de plátano e roseira silvestre, com decoração de rubis, topázios, esmeraldas, e ainda outros de formatos menos convencionais, num total de 32 peças de grande brilho e representatividade; 16 estojos de veludo azul-escuro com colares de brilhantes, com ou sem brincos; 2 galos e 2 perus de prata maciça, segundo modelos ingleses do século XVIII; 14 pedras preciosas em estado natural: ágata branca e rosa, opala irisada das Índias, safira, rubi, esmeralda e granada.

(in V-Ludo 4, Primavera 2001 - por razões óbvias não é possível reproduzir o grafismo, que permitiria estabelecer uma melhor diferenciação das duas listas)