26.9.09

NUNO DEMPSTER

O COMBOIO



Digamos no final deste sábado que
a novidade foi nada se ter passado,
que tudo cada vez se volve mais eterno,
profundamente chato e sem contornos,
e que não é possível um pássaro de fogo
entrar-me no escritório, vulgo biblioteca.
Sei tão bem as cidades por onde caminhei
que bocejo somente em pensar ir
até ao aeroporto. Todas essas cidades
se resumem à estrada que vai por aqui
não me interessa aonde.
Mesmo a rapariga que achei bela,
a semana passada desfeou-se
e as árvores, porque é Outono,
perderam todo o brilho que tiveram,
e nada disto é digno de citar-se.
Portanto regressemos ao princípio.
Nada sucede, e o meu coração lança
a crédito outro dia que jamais
poderei reaver. E quantos dias
assim hão-de somar-se em anos idos?
Oxalá não me ponha a fazer contas
a esse tempo que vou perdendo
nem escute o comboio em que, miúdo,
pensei fugir de casa para sempre.

(de Osmose; in Dispersão – Poesia Reunida, edições Sempre-Em-Pé, 2008)

25.9.09




JOSÉ MIGUEL SILVA

MORANGOS SILVESTRES — INGMAR BERGMAN (1957)


Para a Berta Neto

Um ser humano é um combinado de egoísmo,
sofrimento e necedade. Não comove ninguém.
Uma pedra não comove ninguém. A beleza
é um acidente banal e pressupõe a morte;
muitas vezes se rodeia de sandice, e se nos fala,
chega a ser assustador. A inteligência, refrescante
como um duche, sabe bem, no Estio; mas agora,
que é Inverno toda a vida, que lugar atribuir
à inteligência? O de criada de servir nos aposentos
da ganância. Não comove, é evidente, ninguém.
A bondade, sim, comove. Mas é tão débil
e tão rara que ninguém a ouve. Não é fácil,
assim, encontrar algo que possamos amar. Eu
tenho procurado, eu juro que não sei o que fazer:
tudo me parece, até a música, produto de uma falha.
Vou por essas ruas ao acaso e não acerto a conhecer
quem me convença que bem outra poderia ser
a vida. Tudo se mostra sob espelhos deformantes,
tudo arde numa estranha aceitação. Francamente,
não consigo perceber. E gostava tanto, mas tanto,
que alguém me demonstrasse que não tenho razão.

(de Movimentos no Escuro, Relógio d’Água editores, 2005)

24.9.09

ARMANDO FREITAS FILHO

A linha da vitória
é a do horizonte.
Com principício e fim
e o que conta
não é a duração da pista
da pegada: é a do desejo
para acabar cruzando
antes do tempo
e com a corda toda
um instante depois
o espelho vazio de chegada.

(de 3x4, editora Nova Fronteira, 1985)

23.9.09

[olha se ela por acaso fosse escritora...]

RITA F.

Uma ficção eleitoral

Se eu por acaso fosse escritora, escreveria sobre um homem que vai votar, no dia das eleições, e está até ao último minuto para se decidir, de tal modo que está já com o boletim de voto na mão e mesmo assim não sabe, a decidir, a decidir, e depois põe a cruz no partido X, vai à urna, o papel escorrega lá para dentro a muito custo, e de repente o homem muda de ideias e quer à força que abram a urna para sacar o seu papelinho, que com certeza será fácil de identificar porque foi o último a cair para o monte, mas não o deixam, e ele lá vai para casa muito agastado, e depois vem a descobrir que o partido vencedor venceu por um único voto apenas, um simples e insignificante votinho. O homem sente-se muito mal, cheio de remorsos, afinal devia ter votado no partido Y, e agora se alguma coisa acontecer a culpa é dele, a culpa é toda dele, de tal forma que os meios de comunicação social passam a entrevistá-lo de cada vez que algo nefasto acontece no país, os impostos, os escândalos, a corrupção, tudo por sua culpa exclusiva, o homem a arranjar justificação atrás de justificação, mas sem nada que o justifique, o remorso a crescer, a culpa, o homem já cheio de olheiras e sem dormir, se é Verão há incêndios, se é Inverno há cheias, se não fosse o seu voto eram outros no lugar do Governo a endireitar o país, mas ele votou e estragou tudo, e continua no seu sofrimento até que vêm outras eleições. E o homem vota no partido Y. E descobre que o partido X voltou a ganhar, mas apenas por um voto, um único e mísero voto, que não foi o seu, e é a completa redenção. Os meios de comunicação social passam a entrevistar um outro homem, outro qualquer, outro que podia ser ele, outro homem que também não consegue dormir, se é Verão há incêndios, se é Inverno há cheias, os escândalos, a corrupção, tudo por causa do seu insignificante voto. O primeiro homem dorme descansado. O segundo homem morre de remorsos.
E vêm novamente as eleições. O partido X volta a ganhar por um voto. O segundo homem dorme descansado. O terceiro homem morre de remorsos.
E assim sucessivamente.


(daqui)

22.9.09

GONÇALO M. TAVARES

Poesia


Construíram uma prisão cujos limites exteriores eram redes onde, através da torção dos arames, se encontravam escritos alguns dos mais belos poemas dos principais poetas do país.
Essa rede de versos que contornava toda a prisão era eléctrica: quem a tocasse apanharia um choque mortal.

(de Senhor Brecht, editorial Caminho, 2004)

21.9.09

LUÍS AMARO

CONQUISTA


a Murilo Mendes

Na miséria mais funda
cintila uma estrela
a dizer que a vida
é bela.

No silêncio aflito
da noite (naufrágio
dos tristes)
alguém sonha e canta
virgens alegrias.

A manhã nascente
para ser merecida
tem que ser sangrada
com a própria vida.

(de Dádiva, 1949)
(Sintra, Julho de 2009)


MURILO MENDES


SINTRA


A Luís Amaro

A paisagem redonda (claro que considerável), a mata (com ou sem aspidistras, palavra que encontrei num texto de José Rodrigues Miguéis, e que pressupõe uma áspida — talvez de cabeleira — na aliás planta), etc.



Obrigatoriamente, a figuração retórica de Byron, personagem da linha grande reverência.



O Castelo da Pena, caleidoscópico, e que poderia resultar da paranóia de Luís II da Baviera aliada à de Salvador Dali.



“O mistério da estrada de Sintra.”



As queijadas de Sintra, monumento nacional. Categoria!



O encontro com Ferreira de Castro, que há vários anos escapa ao verão num hotel de Sintra; suas janelas disparam ar e verde. Depois do seu já remoto sejur no Brasil, que lhe fornecera a matéria dum livro marcante, deu a volta ao mundo. Regressando-se, viu que tudo cresce e se transforma; conforme o Padre Vieira, neste mundo só o céu não cresce. O escritor persiste idêntico a si mesmo, bom, amigo das nossas coisas; não estranha mais a espantosa bagunça brasileira. Continua a se interessar pelos problemas do homem, o que o torna atual; mesmo porque a maior volta que se pode dar ainda é mesmo dentro do homem. Montaigne dixit.



Desloca-se a grafia da Cintra para Sintra; com vantagem, pois letra S é sinuosa tal os caminhos de Sintra; serpentina; e ninguém ignora que Veneza toma a forma dum S. Claro que Sintra não tem relação com Veneza; mas vimo-lo, a letra S, de Sintra, sim.



Nenhum quadro alusivo a Sintra; duas ou três fotografias; um futuro documentário cinematográfico, televisivo ou de ou de outra técnica então mais perfeita, a ser transmitido por satélite aos habitantes de Vénus e Marte, boquiabertos; mas temo que estes não existam.

(de Janelas Verdes, edições Quasi, 2003 – biblioteca arranjos para assobio)

20.9.09

DIOGO VAZ PINTO

Pelo meu relógio são horas de matar,
de chamar o amor para a mesa dos sanguinários.

António José Forte


I.

Tenho sonhos tão mal frequentados, clichés
de toda a ordem, corações mal iniciados
ou com tão podres usos, e no entanto,
por vezes ainda te vejo num café,
uma água com gás e um livro do tempo
em que eu não sabia ler. Aproximo-me,
e perco depressa a iniciativa de se passar
tudo isto apenas na minha cabeça.
Apesar de tudo
continuo a não contrariar a realidade
e o que de nós ali fica são duas bocas
a comerem o mesmo silêncio,
nas horas, nos mostradores,
na não correspondência que mais me magoou.

Enfim, o meu mundo também
foi começando e acabando à volta de um perfume
de mulher. Das poucas que não se deixam
escrever ou glosar, nem estão dispostas
a ficar de helenas para algum estupro literário.
É ela quem ainda concebe no ventre os meus
únicos filhos,
mas nunca os deixa partir, como nunca
me deixou tocar-lhe em nove dos anos sentados
na escola, na carteira logo atrás dela,
com a respiração
obedecendo a cada gesto que fazia.

Existe mesmo e pode ser vista. Levou daqui a elegância
a outros olhos, mas visita-me entre perturbações
do sono, passeando tão devagar
com uma serpente enrolada nos tornozelos,
abocanhando-lhe, mais acima, o sexo.
Tem envolvido no pescoço um colar de dentes arrancados
às noivas que até hoje fui entretendo com conversas
sobre o futuro, antes de lhe perder todo o interesse.

Assim me explico e a tantos versos. Naturalmente,
a rejeição é de longe o meu tema preferido.
Daí o sangue nos joelhos, na mesa
de cabeceira o revólver em cima do livro
que estiver a ler, balas das que assobiam para
o lado e veneno dos que matam com extrema
doçura. Os meus crimes até para mim estão a ficar
sem importância. Não durmo para seguir madrugadas,
espremo leite das sombras que me trazem, tenho
as pálpebras humedecidas de assaltos, sirenes,
fúrias venéreas e pássaros que contra elas se esmagam.
Tenho nos bolsos listas de palavras
para as quais procuro significado, artigos
de higiene e outros, além dos hotéis
com as melhores vistas
para o sórdido vazio que vai ajardinando
a minha relativa indisposição para a vida.


II.

Sei que acredito em alguma coisa,
qualquer coisa – que se pode começar
a escrever por uma mulher, esquecê-la noite após
noite e de dia não pensar em mais nada além
do que hão-de ser as epopeias do século XXI.
Imaginar o que pode nascer dos estilhaços mitológicos
cravados nas nossas deambulações e voos rasos
de uma livraria para um bar, num táxi
que nos devolve a cidade às quatro da manhã,
do quarto à cozinha, passando pela casa-de-banho
onde os olhos escorrem no espelho
e se desequilibram como frutos negros
na gaguez absurda que ali arvora.

Qualquer coisa me serve.
Acredito no dia seguinte – em sair da cama
feio como quem nasce de um pesadelo, mas
com uma vaidade
que podia dar vida a cem bibliotecas.
Acredito no que me apetecer.

Acredito que estamos juntos nisto. Logo
pela manhã os clássicos, com calma, vão uns
a seguir aos outros ao pequeno-almoço. Ao meio-dia
já demos conta dos românticos, parnasianos,
simbolistas e dentro de momentos seguem
os modernistas, este ou aquele surrealista menos
empenhado com aquilo,
e alguns dissidentes. Já almoçamos
com os beatnicks que de um abraço nos levam
para dar uma volta, lubrificar o espírito
e dançarmos descalços ao som de ventos marados,
nalgum jardim público. À tarde, para o lanche,
passamos num drive-in e vimos de lá
com sacos cheios desse fast food lírico
que engorda os nossos dias.

Só mais para a frente, com a noite,
vão chegando os convidados para jantar.
Uns trazem aperitivos e refrigerantes, saladas
e umas coisas mais light. Alguém
fez um arroz de pato à maneira, abrimos
uns tintos, falamos mais alto, zangamo-nos,
comemos a sobremesa em silêncio, depois vêm
os digestivos, whisky, brandy, e volta a ficar
tudo bem. Há um momento em que damos
por gastas as piadas e disparates, só então
começa a falar um de cada vez.
Tiramos umas notas, comparamos ideias,
vamos avançando com as primeiras noções
para pôr esta porra a mexer.

No fim, com as sobras, enchem-se uns tupperwares
e ainda redigimos uma acta. Aí começa por ler-se:
Outros sacudiram daqui o peso da rima e
o das sílabas contadas, talvez nos cumpra a nós
tirar de vez o açaime à besta, largá-la nas ruas
e deixar que morda, rasgue, estrafegue e fôda
tudo o que cheire a mijo, hesitação e medo.

(in Criatura, N.º 3 - Abril de 2009)