23.9.09

[olha se ela por acaso fosse escritora...]

RITA F.

Uma ficção eleitoral

Se eu por acaso fosse escritora, escreveria sobre um homem que vai votar, no dia das eleições, e está até ao último minuto para se decidir, de tal modo que está já com o boletim de voto na mão e mesmo assim não sabe, a decidir, a decidir, e depois põe a cruz no partido X, vai à urna, o papel escorrega lá para dentro a muito custo, e de repente o homem muda de ideias e quer à força que abram a urna para sacar o seu papelinho, que com certeza será fácil de identificar porque foi o último a cair para o monte, mas não o deixam, e ele lá vai para casa muito agastado, e depois vem a descobrir que o partido vencedor venceu por um único voto apenas, um simples e insignificante votinho. O homem sente-se muito mal, cheio de remorsos, afinal devia ter votado no partido Y, e agora se alguma coisa acontecer a culpa é dele, a culpa é toda dele, de tal forma que os meios de comunicação social passam a entrevistá-lo de cada vez que algo nefasto acontece no país, os impostos, os escândalos, a corrupção, tudo por sua culpa exclusiva, o homem a arranjar justificação atrás de justificação, mas sem nada que o justifique, o remorso a crescer, a culpa, o homem já cheio de olheiras e sem dormir, se é Verão há incêndios, se é Inverno há cheias, se não fosse o seu voto eram outros no lugar do Governo a endireitar o país, mas ele votou e estragou tudo, e continua no seu sofrimento até que vêm outras eleições. E o homem vota no partido Y. E descobre que o partido X voltou a ganhar, mas apenas por um voto, um único e mísero voto, que não foi o seu, e é a completa redenção. Os meios de comunicação social passam a entrevistar um outro homem, outro qualquer, outro que podia ser ele, outro homem que também não consegue dormir, se é Verão há incêndios, se é Inverno há cheias, os escândalos, a corrupção, tudo por causa do seu insignificante voto. O primeiro homem dorme descansado. O segundo homem morre de remorsos.
E vêm novamente as eleições. O partido X volta a ganhar por um voto. O segundo homem dorme descansado. O terceiro homem morre de remorsos.
E assim sucessivamente.


(daqui)

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