17.9.11

REINER KUNZE


O BOSQUE EDUCA AS SUAS ÁRVORES

O bosque educa as suas árvores

Desabituando-as da luz, obriga-as
a remeter todo o verdor para as copas
A capacidade
de respirar por todos os ramos,
o talento
de deitar galhos assim só por prazer
vão estiolando

Côa a chuva, prevenindo
a paixão da sede

Deixa crescer as árvores
coruto a coruto:
nenhuma vê mais que as outras,
ao vento todas dizem o mesmo


(de Poemas, traduções de Luz Videira e Renato Correia, Paisagem editora, 1984)

16.9.11


JOSÉ KOZER


AUTO-RETRATO

Sóbrio não sou, surdo-mudo tampouco. De saúde não ando bem,
mas não estou enfermo: de conformação duvidosa essa coisa 
do corpo. Em sua zona artrítica agora reconheço seu 
aspecto menos monstro, mais Teresa*. Não se me deteve a 
esferográfica (adeus estilográficas, adeus plumas) ante 
a barbaridade de chamar monstro a um aspecto deste 
meu corpo (menti) (e minto duplamente) ainda 
em bom estado, me ficam bem as cãs, os poucos pés de 
galinha dão um toque de sabedoria ao meu aspecto, esse 
galhardo, esse mirado, sou o verdadeiro eu: um eu 
Cibola*, eu Hespérides*, sou argivo sou argivo (gritou). 
Sou personificação do vento oeste a leste (qual) se
a meti na harpia (gritou) barbas de algodão, cacheada 
cabeçorra da mais fina tela ouropêndula, deixa correr
(amada) teus longos dedos por esta encrespada cabeleira 
onde cada fio contraído se alonga linha, saca do fundo 
da laguna o atolado manati (amada). Eu disse, não 
sou sóbrio; agramático? Não exageremos: a licença 
poética estará de minha parte até o Dia do Último 
Diálogo; só então calarei, e não gramaticarei, pois 
Além mandam. Aqui, eu me quero tanto que me comestiveleria 
a mim mesmo, se pudesse (já disse que não sou sóbrio):
posso sê-lo; assim, um passo atrás perna direita, postura
do Arqueiro, nem arco nem flecha, nem etéreo quimono 
repousado de seda, tampouco à espádua um íbis amarelo 
sobre fundo negro três ideogramas diminutos ao pé 
da pata suspensa da   ave, nada, nada ave, nada pata, 
nada perna direita atrás um passo, o passo das 
letras do Arqueiro sustentado por se talvez (existirá vida 
ultraterrena?) poderia aparecer Auto-retrato.



NOTAS:
Em Auto-retrato, José Kozer faz colagens de diferentes símbolos e referências históricas, lendárias e mitológicas, do Ocidente e do Oriente. Teresa, aqui, é uma referência a Santa Teresa de Ávila, teóloga e doutora da Igreja.
CIBOLA. Referência às Sete Cidades de Cibola, terras lendárias que os conquistadores espanhóis imaginavam existir no continente americano. Alvar Nunez Cabeza de Vaca, que chegou à Flórida em 1528, escreveu sobre esse "paraíso perdido", e várias expedições foram organizadas, em anos posteriores, para tentar localizá-lo.

HESPÉRIDES. Filhas de Júpiter, as hespérides eram ninfas que tinham a missão de guardar os pomos de ouro no jardim dos deuses. Um dos doze trabalhos de Hércules foi justamente o roubo desses frutos, que por orientação divina não poderiam ser levados ao mundo dos humanos. Há relato semelhante na mitologia nórdica (no Eddà).

(tradução e notas de Cláudio Daniel, in Jardim de camaleões: a Poesia Neobarroca na América Latina, organização, seleção e notas de Cláudio Daniel, Iluminuras, 2004)



13.9.11

MANUEL DE FREITAS


SEPTEMBER SONG

Ouve, pelo começo de Setembro,
o clamor e a melancolia
deste mar atravessando a tua vida,
as páginas de um livro por abrir.

Ouve como se vê,
sobre as falésias deste mês abrupto,
alguém que te celebra
muito depois das palavras.

É tão difícil escrever um poema
que não fale da morte.


(de Intermezzi, Op. 25, Opera Omnia, 2009)





12.9.11


MARCOS TRAMÓN


CARICATURA DO ATORMENTADOR DE SI MESMO
A Marcos Tramón
Que se passa comigo?
Estou doente, doente de mim mesmo.
Não sei antes, mas
desde que o mundo é mundo comigo
os dias são escuros, de tempestade
ou fustiga o sol sinistro.
Os outros dias,
os dias intermédios,
nem os sinto, são neutros, são esquecimento.
Pelas noites encho-me
da melancolia do nada,
a transbordar, como um cinema barato,
onde passam filmes sem ritmo,
sem acção, lentos e de pouco
talento, sem a graça
sequer do horrível.
A minha vida é um fracasso.
Senti a companhia
por vezes do verso e de uma qualquer
rapariga de quarenta
anos com propensão para os rapazes
propensos ao afecto de uma mãe.
Agora as senhoras
foram-se, é natural pois, dizia,
gostam dos jovens indefesos
e falhos de afecto, mas evitam
os rostos lacerados.
E com elas, pelas mesmas razões,
fugiu a poesia
com a sua música para outra parte.
Eu continuo condenado pela vida
e só, ou pior, pois não estou só,
estou comigo.



(in Poesia Espanhola, Anos 90, de Joaquim Manuel Magalhães, Relógio d'Água, 2000)

11.9.11

RUY VENTURA

presença


a luz desenha no espaço
duas colunas de sombra.
a memória coloca no olhar
duas colunas de fogo
que as asas devolveram
à poeira das origens.
sangue e voo
sobrepõem-se à imagem
obstruindo a presença da luz
na tinta e no coração.
traços e cores
dispensam, no entanto, a linha
do horizonte. na ascensão da tela
restituem, sem matéria,
a presença do edifício –
sem vidro, sem aço
com carne, sangue e memória
na inscrição do mundo.
[WTC de Jorge Martins]

(de  Instrumentos de Sopro, edições Sempre-em-Pé, 2010)


JORGE MARTINS



[sem título], 1975 / 6
acrílico
90x126 cm