16.9.11


JOSÉ KOZER


AUTO-RETRATO

Sóbrio não sou, surdo-mudo tampouco. De saúde não ando bem,
mas não estou enfermo: de conformação duvidosa essa coisa 
do corpo. Em sua zona artrítica agora reconheço seu 
aspecto menos monstro, mais Teresa*. Não se me deteve a 
esferográfica (adeus estilográficas, adeus plumas) ante 
a barbaridade de chamar monstro a um aspecto deste 
meu corpo (menti) (e minto duplamente) ainda 
em bom estado, me ficam bem as cãs, os poucos pés de 
galinha dão um toque de sabedoria ao meu aspecto, esse 
galhardo, esse mirado, sou o verdadeiro eu: um eu 
Cibola*, eu Hespérides*, sou argivo sou argivo (gritou). 
Sou personificação do vento oeste a leste (qual) se
a meti na harpia (gritou) barbas de algodão, cacheada 
cabeçorra da mais fina tela ouropêndula, deixa correr
(amada) teus longos dedos por esta encrespada cabeleira 
onde cada fio contraído se alonga linha, saca do fundo 
da laguna o atolado manati (amada). Eu disse, não 
sou sóbrio; agramático? Não exageremos: a licença 
poética estará de minha parte até o Dia do Último 
Diálogo; só então calarei, e não gramaticarei, pois 
Além mandam. Aqui, eu me quero tanto que me comestiveleria 
a mim mesmo, se pudesse (já disse que não sou sóbrio):
posso sê-lo; assim, um passo atrás perna direita, postura
do Arqueiro, nem arco nem flecha, nem etéreo quimono 
repousado de seda, tampouco à espádua um íbis amarelo 
sobre fundo negro três ideogramas diminutos ao pé 
da pata suspensa da   ave, nada, nada ave, nada pata, 
nada perna direita atrás um passo, o passo das 
letras do Arqueiro sustentado por se talvez (existirá vida 
ultraterrena?) poderia aparecer Auto-retrato.



NOTAS:
Em Auto-retrato, José Kozer faz colagens de diferentes símbolos e referências históricas, lendárias e mitológicas, do Ocidente e do Oriente. Teresa, aqui, é uma referência a Santa Teresa de Ávila, teóloga e doutora da Igreja.
CIBOLA. Referência às Sete Cidades de Cibola, terras lendárias que os conquistadores espanhóis imaginavam existir no continente americano. Alvar Nunez Cabeza de Vaca, que chegou à Flórida em 1528, escreveu sobre esse "paraíso perdido", e várias expedições foram organizadas, em anos posteriores, para tentar localizá-lo.

HESPÉRIDES. Filhas de Júpiter, as hespérides eram ninfas que tinham a missão de guardar os pomos de ouro no jardim dos deuses. Um dos doze trabalhos de Hércules foi justamente o roubo desses frutos, que por orientação divina não poderiam ser levados ao mundo dos humanos. Há relato semelhante na mitologia nórdica (no Eddà).

(tradução e notas de Cláudio Daniel, in Jardim de camaleões: a Poesia Neobarroca na América Latina, organização, seleção e notas de Cláudio Daniel, Iluminuras, 2004)



2 comentários:

Nina Owls disse...

será tentativa de santificar as dores do corpo até que percam a relevância face ao eu?
Quase canibal, quase narcísico...
a sobriedade de um auto-retrato

Luna Blanca disse...

Nem para o céu nem para o inferno... escritores, quando morrem, vão para a eternidade.