25.6.05

MATSUO BASHÔ

O Sétimo mês
a noite do sexto dia
não me parece a de sempre.

Mar bravo:
até à ilha de Sodo
estende-se a Via Láctea

[em nota da edição, refere-se que "no sétimo dia do Sétimo mês celebra-se a festa das estrelas. Segundo a lenda nesse dia reúnem-se duas estrelas [Altair e Vega] enamoradas, que vivem em margens opostas do Rio do Céu (Via Láctea)."]

(de O Caminho Estreito para o Longínquo Norte, em versão de Jorge de Sousa Braga, 1987)
YASUNARI KAWABATA

- Oh!, a Via Láctea... Como está esplêndida! - exclamou Komako, continuando a correr à sua frente, com o olhar erguido para o céu.
A Via Láctea... e ao contemplá-la também Shimamura teve a impressão de nadar dentro dela, de tal modo a sua fosforescência lhe parecia próxima. Era como se ela o tivesse aspirado para dentro de si. Teria sido sob a impressão desta imensidade esplendorosa, deslumbrante, que Bashô a descrevera como um arco de paz sobre um mar enfurecido? Justamente por cima dele, a Via Láctea inclinava a sua abóbada, estreitando a terra nocturna num abraço límpido, indecifrável, sem inquietação. Imagem pura e próxima de uma terrível volúpia, sob a qual, por breves instantes, Shimamura viu representada a sua própria silhueta, recortada numa sombra tão múltipla como as estrelas, de tal modo insuperavelmente repetida, que havia lá no alto, partículas de prata na luz leitosa e até no reflexo cintilante das nuvens, das quais cada gota ínfima e irradiante de luz se confundia com a sua infinidade, de tal modo o céu era claro, de uma limpidez e de uma transparência inconcebíveis. Shimamura não podia afastar do seu olhar este manto sem fim, este céu infinitamente ténue, subtilmente tecido no infinito.

(excerto de Terra de Neve, tradução de Armando Silva Carvalho, publicações Dom Quixote, 1968)

24.6.05

NATÉRCIA FREIRE

FANTASMAS

Mesmo que vós me toqueis,
ainda assim me não contento.
Mesmo que vós me leveis...
Estão muito longe os anéis
que há nos cabelos do vento...

Para nossos bailes de fumo
não há saletas reais.
Corpos de fio de prumo,
olhos de barco sem rumo,
e ouvidos nos temporais.

Quando a casa dorme e sonha
é que os passos vem espreitar.
Da torre negra, as cegonhas,
sobre a planície que sonha,
deitam fantasmas ao mar.

Minhas claras companhias!
Ainda assim me não contento.
Há-de haver praias vazias,
melancolias bravias
como aquelas que eu invento.

Tudo em mim é fracasso
já não tem raiz humana.
Nas pontas do mesmo laço
É que o aço nos irmana.

Convosco em pó me desato
e a viagem não termina.
Parto de mim em retrato,
no movimento sem acto
que o destino me destina.

(de Poemas, 1957)

23.6.05

[outros melros XXVII - agradecendo à R. que mo descobriu]

PAULO TEIXEIRA

Pinhal com lago

(...)

III

O melro tartamudeia a caminho da mudez,
os grilos que num assobio imitativo se respondem,
seres minúsculos na voz débil da sua apelação,
são impossíveis de assinalar entre os juncos e os arbustos
quando os animais vão por velhas áleas
abrindo um itinerário conhecido na folhagem.

Os galhos do veado podem mover-se ainda,
agora que terminados são os jogos do homem
e depositado foi o primeiros mosto no lagar.
Agora, que as aves rostradas espreitam
entre os ramos, o texugo, o javali e a raposa
com seus adágios imporão à natureza

amortalhada pela noite um antigo fabulário.

(de Túmulo de Heróis Antigos, editorial Caminho, 1999)
[para a R., porque sim!]

RICHARD RODGERS / OSCAR HAMMERSTEIN

My Favorite Things

Raindrops on roses and whiskers on kittens
Bright copper kettles and warm woolen mittens
Brown paper packages tied up with strings
These are a few of my favorite things

Cream colored ponies and crispapple strudel
Doorbells and sleighbells and schnitzel with noodles
Wild geese that fly with the moon on their wings
These are a few of my favorite things

Girls in white dresses and blue satin sashes
Snowflakes that stay on your nose and eye lashes
Silver white winters that melt into springs
These are a few of my favorite things

When the dog bites
When the bee stings
When I'm feeling sad
I simply remember my favorite things
And then I don't feel so bad

Silver white winters that melt into springs
These are a few of my favorite things

When the dog bites
When the bee stings
When I'm feeling sad
I simply remember my favorite things
And then I don't feel so bad
Then I don't feel so bad

Girls in white dresses
Blue satin sashes
Snowflakes on my eye lashes
Ooh, my favorite things

(in Cem Caminhos, na Voz de Maria João)

22.6.05

[Contraditório (sabendo a pouco...) ao texto do Miguel hoje na TdA]

A Comissão Justiça e Paz dos Institutos Religiosos Portugueses condenou a manifestação da Frente Nacional, que teve lugar este sábado em Lisboa, considerando que os organizadores pecam por uma "visão racista e xenófoba".
"Consideramos legítimo e necessário que os cidadãos manifestem as suas posições e também a sua indignação perante actos e situações que consideram ofensivas do projecto pessoal e colectivo garantido pela lei fundamental do país, mas demarcamo-nos radicalmente dos promotores da manifestação tanto na análise das causas dos problemas, como nas propostas da sua superação", escrevem os Religiosos e Religiosas.
Apontado o dedo a propostas que vão na linha da "limpeza étnica", a mensagem explica que "não podemos continuar a chamar estrangeiros a quem já tem a nacionalidade portuguesa, ou a quem nasceu e sempre viveu em Portugal, ou ainda a quem com toda a probabilidade aqui terá o futuro". A respeito dos recentes acontecimentos na praia de Carcavelos, os Religiosos entendem que esse facto "não passa de um sinal do mal-estar presente na sociedade portuguesa e que tende a agravar-se".
"Desejamos que os governantes tenham a lucidez e a coragem para não escutarem somente aqueles que têm poder reivindicativo, mas que se preocupem por criar condições para que a nossa sociedade não se transforme numa selva onde o que tem garras maiores, com maior quinhão vai ficar", alertam.
Em conclusão, a Comissão Justiça e Paz dos Religiosos manifesta a sua "indignação" com "tudo o que constitui negação da cidadania, não respeitando os direitos e não cumprindo os deveres correspondentes".
"Estamos convencidos de que se todos nós e aqueles que mandatamos para a condução do país estivéssemos informados e interessados em criar um país que não nos envergonhasse pelos desequilíbrios existentes, seguramente não contemplaríamos cenas como as que agora nos preocupam", sublinha o documento.

(Agência Ecclesia - edição Semanal n.º 1013, 21 de Junho de 2005 - negritos da minha responsabilidade)

20.6.05

BERTOLT BRECHT

UNICAMENTE POR CAUSA DA DESORDEM CRESCENTE

Unicamente por causa da desordem crescente
Nas nossas cidades com as suas lutas de classes
Alguns de nós nestes anos decidimos
Não mais falar dos grandes portos, da neve nos telhados, das mulheres,
Do perfume das maçãs maduras na despensa, das impressões da carne,
De tudo o que faz o homem redondo e humano, mas
Falar só da desordem
E portanto, ser parciais, secos, enfronhados nos negócios
Da política, e no árido e «indigno» vocabulário
Da economia dialética,
Para que esta terrível pesada promiscuidade
Das quedas da neve (elas não são só frias, nós bem o sabemos),
Da exploração, da tentação da carne e da justiça de classes,
Não nos leve à aceitação deste mundo tão diverso
Nem ao prazer das contradições de uma vida tão sangrenta.

Vocês entendem.

(tradução de Arnaldo Saraiva, com a colaboração de Sylvia Deswarte in Poemas, Presença, 1976 - colecção forma)
MARGUERITE DURAS

De onde vinha a fascinação, a graça, essa palavra do instante, do Verão, daquela gente? Impossível saber. Eu não sei. Sem dúvida daquela humildade perante a morte, de certo. Mas também daquela indecência. Daquele acontecimento. Do conjunto dessas coisas e de cada uma delas por si só. Sem que se pudesse dizer porquê nem como. Daquele rio também, daquela luz em que tudo banhava, daquela brancura das falésias brancas, esparsa por toda a parte. Da brancura do giz. Das falésias e da espuma. Do azul esbranquiçado das aves marinhas. E também do vento.

(excerto de Emily L., tradução de José Carlos González, Livros do Brasil, 1988)
Em 2001, forçado a umas férias de cinco dias, fui sozinho até ao Porto.
Fui, com os livros de Eugénio de Andrade debaixo do braço, tocar à campainha da casa da Rua de Serrúbia. Fui acolhido pela funcionária da Fundação, que, com uma extrema simpatia, me mostrou as instalações. O Poeta não estava e deixei os livros para que ele os autografasse.
Voltei no dia seguinte para ir buscar os livros e a senhora mostrou-me uma parte que não tinha mostrado no dia anterior: a biblioteca pessoal de Eugénio. Salientou que junto à porta, mais acessíveis, estavam os livros que ele mais prezava e frisou um autor por ele muito apreciado.
Tratava-se do poeta que completou 60 anos no dia da sua morte.

19.6.05

JÁNOS PILINSZKY

AGORA


Eu vesti a camisa ensopada
dos recém-nascidos, a camisa
pesada de fogo dos agonizantes.

E agora levam-me,
também isso faz parte
do meu espanto, do meu assombro.

Obediente
tento agarrar-me pela derradeira vez
legando-vos o meu ruído abafado.

(tradução de Egito Gonçalves, in Três Poetas Húngaros, Limiar, 1991 - Os olhos e a memória)
A. M. PIRES CABRAL

AS AVES


1
Diversas, pousam-nos, habitam-nos
por dentro, as aves. Por que milagre
ainda quando negras voam branco?
As aves abundam nos antigos caminhos:
umas são comestíveis, outras têm cores.
O bico, um certeiro utensílio.
Aves flutuantes, a quem são vulneráveis
tão íngremes lugares, convosco
transportai nossas dores, aflições.
Oh, rogai por nós, que recorremos a vós.
Dispensai à funda cidade a graça
de vosso olhar oblíquo e concentrado,
olho após olho, com método
revezado. Alcançai dos astros, de

2
quem sois vizinhas e rivais,
cálidas disposições
favoráveis.
Por que voareis, senão por nosso
(que vos adoramos) benefício?
Depositai-nos nas sôfregas gargantas
gases raros, vitais, trazidos no
precário recipiente dos bicos:
tudo o que venha da altitude tem
um nome ao som do qual nos prostraremos.
As aves, as aves!, a asa refeita
e veloz sobre as cabeças, sobre o vale
de lágrimas, seus guinchos povoando
a tensa solidão desta viagem.

3
Lugar às aves: às que voando
perturbam as vísceras do tempo;
às que nem sempre trazem cura,
mas sim no bico perverso
alimentos letais; às que
(advogadas nossas!)
(de tantas cores!) nos devoram
os sentidos.
Lugar às aves: a gratuita
rapacidade, a existência breve,
os membros exíguos,
de improviso.
Lugar às aves, as sobrevoadoras,
mais leves, mais pesadas do que o ar.

(de Solo Arável, 1976)