4.12.08

[outros melros LV]

A. M. PIRES CABRAL

MELRO EM GAIOLA


I

Contrariamente aos outros pássaros,
o melro não canta: ri-se. O melro
é uma gargalhada semovente
voando entre as moitas,
deixando
farrapos de riso a esvoaçar nos ramos.

II

Pois bem. Alguém que odeia o riso
encerrou o melro na gaiola.
Alguém a quem o riso à solta
fazia espécie
quis ter aquele riso encarcerado,
à mão de semear.

Alguém capturou o melro e o meteu,
embrulhado no negrume da plumagem,
na gaiola, e pôs a gaiola na varanda.
Por maior escárnio, já se vê.

III

Nos primeiros tempos o melro não cantou
- quero dizer, o melro não se riu.
Quem quer perde o sentido de humor
cerrado numa gaiola.

Mas com o tempo, o silêncio foi-lhe pesando
à medida que ímpetos de riso borbulhavam
com crescente intensidade junto ao bico.

Até que o riso explodiu,
saltou fora como a rolha da garrafa
de champanhe, e eis a gaiola cheia
de canto – perdão, de riso.

IV

Nisto, os melros são como as outras aves,
soltam a voz para dizer: este lugar é meu,
quem quiser disputar-mo tem que se haver comigo.
Dizem-no geralmente a propósito de lugares amplos,
onde caibam voos inteiros e que valha
a pena defender de intrometidos.

Mas o melro na gaiola aprende depressa
a proporcionar o voo e a voz ao espaço que tem.
O impulso é maior do que o espaço disponível.
E canta – isto é, ri-se – como se fosse dono
duma fatia de mundo razoável.

Para o melro,
a gaiola é mesmo assim um espaço
que vale bem a pena defender
a gargalhadas.

V

Lição a reter: as expectativas
são um lugar
só aparentemente degradável.
Podem sempre encolher, mas nunca morrem.

VI

E todavia,
as risadas do melro na gaiola
fazem-se rasgões por dentro
como se em vez de riso fossem pranto.

Porque eu sou como ele:
alguém me reduziu o tamanho do quintal
até o quintal ficar isto que se vê
- e eu a defendê-lo a golpes de riso.

Como o melro, tal e qual.

(in Telhado de Vidro N.º 11 - Novembro 2008)

2.12.08

MARIA ÂNGELA ALVIM

ESPERA

Espera. Palavra espera
não escrita, não contada
às coisas abstraídas
da tortura de entender,
e espera sendo, contudo,
espalhada, diluída
como é a primavera
na superfície de tudo.
Espera não sei de quê,
- já que não tem artifício
não pode ser traduzida, -
espera não sei de onde vem
ou se vai a alguma parte.
(Se a folha tenra é memória,
guardando a chuva caída,
de um gosto talvez das raízes,
sabe se é fim ou retorno?)
Espera não sei de onde vem,
mas nessa espera floresço,
sou planta e não me disperso
somando à só substância
um tempo de justo acréscimo
que é de essência e epiderme.

- E, presa desta forma libertária
esqueço o que fui em vida
de tantas mortes sofrida...

(de Superfície / toda poesia, Assírio & Alvim, 2002 – documenta poetica)

1.12.08

ALEJANDRA PIZARNIK

ANÉIS DE CINZA


A Cristina Campo

São as minhas vozes cantando
para que não cantem eles,
os amordaçados tristemente na aurora
os vestidos de pássaro desolado na chuva.

Há, na espera,
um rumor de lilás rompendo-se.
E há, quando vem o dia,
uma partição do sol em pequenos sóis negros.
E quando é de noite, sempre
uma tribo de palavras mutiladas
procura asilo na minha garganta
para que não cantem eles,
os funestos, os donos do silêncio

(de Antologia Poética, tradução de Alberto Augusto Miranda, O Correio dos Navios, 2002 – original de Los Trabajos y las Noches, 1965)

Efemérides deste ano II

Fez, no dia 25 de Setembro, 36 anos que morreu Alejandra Pizarnik, aos 36 anos.