CARTA-PREFÁCIO
PARA VINICIUS DE MORAES
PARA VINICIUS DE MORAES
Amigo:
Quando estiveste, da primeira vez, por aqui dando show, umas granfas (loiras e morenas notáveis, como diria Mestre Carlos, mas granfas), comentando os preços da boate onde, em duas ou três sessões, te produziste com a tua turma, disseram ou fizeram dizer: «Quem não tem dinheiro, não tem Vinícius.» Vinícius, vícios... Não ligues. Olha que elas dispunham de muito bago. Estavam era a ser desajeitadas na maneira de te homenagear. Algumas conheciam de ti o poeta encaixilhado no sério. Charmoso, mas, apesar de tudo, respeitável-respeitoso. Usavam o teu «Soneto do Amor Total», não como tabatière à musique, nem como máquina de pensar, mas como caixinha de arroubos, entre as muitas outras que sempre trazem na molinha, com coisinhas para pôr ou tirar dor de cabeça.
Dessas, umas quantas mostraram-se decepcionadas, ofendidas contigo por teres descido do livro à boate, do soneto ao samba. E fizeram constar a decepção, a ofensa que sentiam. Não ligues. Estavam era mordidinhas de inveja perante a quantidade de liberdade que tu, em cada noite, produzias!
Marcus Vinicius, eu vi-te aquém e além-palco, con-vivi-tigo. No Alentejo, que agora, mais que nunca, ai de nós, é um adjectivo, vi-te, convivi-te no teu simplório convívio. Estavas em construção, como sempre não definitivo. Tua felicidade, teu riso mais riso, era entre esse pessoal amigo.
Há muita gente ainda por aí (tenho medo que aumente!) que de ti o que quer é o catorze, quer dizer o soneto, e rejeita teu outro meio de comunicar, que afinal é o mesmo: tocantar.
Perceba, por uma vez, essa gentalha, que o Vinicius poeta e o Vinicius sambista são da mesma igualha!
São
o operário
em construção
Abração
ALEXANDRE O'NEILL
ALEXANDRE O'NEILL
Lisboa, Nov. 75
(in Vinicius de Moraes, O Operário em Construção e outros poemas, selecção e prefácio de Alexandre O'Neill, publicações Dom Quixote, 1986)
VINICIUS DE MORAES
Pátria Minha
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.
Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a ilha
Brasil, talvez.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
«Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes.»
(in O Operário em Construção e outros poemas, selecção e prefácio de Alexandre O'Neill, publicações Dom Quixote, 1986)