29.10.05

A imagem real não tinha cor...
ELIAS CANETTI

O que é que vive numa linguagem? O que é que ela encobre? O que é que ela capta? Durante aquelas semanas passadas em Marrocos, nunca tentei aprender árabe nem tão pouco os dialectos berberes. Não queria perder nada da força contida nessas estranhas lamentações. Queria ser apanhado em cheio por esses sons e não abrandá-los através de vagos conhecimentos, tão insuficientes como artificiais.
Nada lera sobre essa terra. Os seus costumes eram-me tão desconhecidos como as suas gentes. O pouco que se possa ter aprendido durante toda uma vida acerca de qualquer país e acerca do seu povo, some-se, por inteiro, logo nas primeiras horas.
Por exemplo, a palavra «Allah», na qual nunca consegui penetrar, aproximar-me dela, sequer. E, no entanto, nessa palavra assentava boa parte da minha experiência, sendo como era a mais frequente, a mais eficaz, a mais aguda, a mais permanente das que os cegos iam pronunciando.
Para uma viagem levamos connosco quase tudo, mas a revolta, a indignação, essas foram deliberadamente esquecidas em casa. Vemos, ouvimos, maravilhamo-nos perante o medonho, só porque o medonho é algo de novo. O bom e perfeito viajante não tem coração!

(excerto do capítulo As lamentações dos Cegos, de As Vozes de Marraquexe, tradução de Isabel Ramalho, publicações Dom Quixote, 1991)

26.10.05

[da Terra]

DANIEL FARIA

JUNTO DOS RIOS DA BABILÓNIA [sl 136 (137)]


Nas margens dos rios imaginando pontes
Quando já só no nosso pensamento deslizavam
Debaixo da sombra das nossas liras
Ali nos pediam - em solo alheio -
Que cantássemos canções da nossa terra.
Como poderíamos cantar a nossa infância
Tão longe, num país estranho?

Os salgueiros têm folha persistente

Sob a sombra persistente a mudez
Junto dos rios da Babilónia
Foi a única das nossas alegrias

(de Homens que são como Lugares mal Situados, Fundação Manuel Leão, 1994)

25.10.05

[um poema que me fez lembrar um dos meus blogues preferidos]

JOÃO RUI DE SOUSA

A LEBRE DE CORES


Confluem as cores na já descida
lebre que foi ontem madrugada.
Lesta como lebre, a despedida
era lebre de cores transfigurada.

Lesta (ou lépida?) a voz havida
dessa lebre de cores disseminada,
distribuída em pranto e em dor erguida,
sofria o sofrimento disfarçada

para não ferir as cores que se adensavam
na sua pele sedosa e nas cavadas
reentrâncias do pus da sua lida.

Era um grito distenso (apenas lasso?)
de quem por muito arder no seu cansaço
já morto estava antes de ser vida.

(de Enquanto a Noite, a Folhagem, 1991)

24.10.05

[outros melros XXX]

ANTÓNIO LEITÃO

XIII


Canta um melro triste
pelo mato denso;
triste porque o penso,
canta, logo existe.
Quem dera soltar-se
da Filosofia,
melro sem Descartes,
pura melodia!

(de O Tempo e o Sonho, 1989)