[o canto e a ceifa VIII]
DANIEL FARIA
EXPLICAÇÃO DA CEIFA
Colho espigas
e teço a minha teia
amarro espigas molhos de espigas
ato e desato o cabelo das aranhas
(de Explicação das Árvores e de Outros Animais, Fundação Manuel Leão, 1998)
17.9.05
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ceifeira,
Daniel Faria,
Portuguesa
16.9.05
[o canto e a ceifa VII]
SOARES DE PASSOS
MARIA, A CEIFEIRA
(imitação de Uhland)
«Bons-dias, Maria: da lida do prado
«Nem mesmo te afastam cuidados d'amor,
«Se ao fim de três dias mo deixas ceifado
«A mão do meu filho te quero propor.»
Promessa é do rico, soberbo rendeiro:
Maria, oh! quão ledo seu peito bateu!
Seus olhos brilharam, seu braço ligeiro
Mais forte nas messes a foice moveu.
Soou meio-dia: que ardente secura:
Já todos demandam a fonte, o pinhal;
Somente nos ares a abelha murmura:
Maria não pára, que é sua rival.
O sol esmorece, bateram trindades:
Debalde o vizinho lhe grita: bastou!
Zagais e ceifeiros se vão às herdades
Maria, coa foice, lidando ficou:
O orvalho desliza; desponta a seu turno
A estrela no espaço, na selva o cantor;
Maria, insensível ao bardo nocturno,
A foice incansável agita ao redor.
Os dias e as noites assim por tais modos,
Nutrida d'amores, mal sente passar,
Três dias findaram: oh! vinde ver todos
Maria ditosa d'esp'rança a chorar.
«Bons-dias, Maria; já tudo ceifado!
«Lidaste deveras: a paga hás-de ter.
«Enquanto a meu filho, foi graça o tratado;
«Quão loucos e simples o amor nos faz ser!»
Tal disse, e passava... no peito constante,
Ai pobre Maria, que transe cruel!
Teu corpo formoso tremeu vacilante,
E exausta caíste, ceifeira fiel.
Um ano a coitada, sozinha consigo,
Vivendo de frutos, vagou sem falar...
No prado mais verde cavai-lhe o jazigo:
Ceifeira como esta jamais heis de achar.
(de Poesias, prefácio de Álvaro Manuel Machado, Vega, 1983 - colecção Mnésis)
SOARES DE PASSOS
MARIA, A CEIFEIRA
(imitação de Uhland)
«Bons-dias, Maria: da lida do prado
«Nem mesmo te afastam cuidados d'amor,
«Se ao fim de três dias mo deixas ceifado
«A mão do meu filho te quero propor.»
Promessa é do rico, soberbo rendeiro:
Maria, oh! quão ledo seu peito bateu!
Seus olhos brilharam, seu braço ligeiro
Mais forte nas messes a foice moveu.
Soou meio-dia: que ardente secura:
Já todos demandam a fonte, o pinhal;
Somente nos ares a abelha murmura:
Maria não pára, que é sua rival.
O sol esmorece, bateram trindades:
Debalde o vizinho lhe grita: bastou!
Zagais e ceifeiros se vão às herdades
Maria, coa foice, lidando ficou:
O orvalho desliza; desponta a seu turno
A estrela no espaço, na selva o cantor;
Maria, insensível ao bardo nocturno,
A foice incansável agita ao redor.
Os dias e as noites assim por tais modos,
Nutrida d'amores, mal sente passar,
Três dias findaram: oh! vinde ver todos
Maria ditosa d'esp'rança a chorar.
«Bons-dias, Maria; já tudo ceifado!
«Lidaste deveras: a paga hás-de ter.
«Enquanto a meu filho, foi graça o tratado;
«Quão loucos e simples o amor nos faz ser!»
Tal disse, e passava... no peito constante,
Ai pobre Maria, que transe cruel!
Teu corpo formoso tremeu vacilante,
E exausta caíste, ceifeira fiel.
Um ano a coitada, sozinha consigo,
Vivendo de frutos, vagou sem falar...
No prado mais verde cavai-lhe o jazigo:
Ceifeira como esta jamais heis de achar.
(de Poesias, prefácio de Álvaro Manuel Machado, Vega, 1983 - colecção Mnésis)
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Portuguesa,
Soares de Passos
[o canto e a ceifa VI]
TERESA AICA BAIROS
canto mudo
eu sou a ceifeira.
seara fora colho braços de trigo
e joio também.
a minha lida:
trabalhar os montes que há
e os mais que desencanto.
se um dia perguntarem
que razão há para desencantá-los
não responderei
sei
mas não digo
- não responderei.
o murmúrio da terra ao ouvido das horas.
não tenho mais razões para desencantar
que a vida.
(de Luva descalça, incluído em Blémias, Ciápodes e Licornes - textos 2000 colectânea jovens criadores, co-edição do Clube Português de Artes e Ideias e da Íman edições, 2001)
TERESA AICA BAIROS
canto mudo
eu sou a ceifeira.
seara fora colho braços de trigo
e joio também.
a minha lida:
trabalhar os montes que há
e os mais que desencanto.
se um dia perguntarem
que razão há para desencantá-los
não responderei
sei
mas não digo
- não responderei.
o murmúrio da terra ao ouvido das horas.
não tenho mais razões para desencantar
que a vida.
(de Luva descalça, incluído em Blémias, Ciápodes e Licornes - textos 2000 colectânea jovens criadores, co-edição do Clube Português de Artes e Ideias e da Íman edições, 2001)
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Portuguesa,
Teresa Aica Bairos
13.9.05
[o canto e a ceifa VI]
FERNANDO PESSOA
«Ela canta, pobre ceifeira,»
(versão publicada na revista ATHENA, nº 3 - Dezembro de 1924)
Ella canta, pobre ceifeira,
Julgando se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anonyma viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E ha curvas no enredo suave
Do som que ella tem a cantar.
Ouvil-a alegra e entristece
Na sua voz ha o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência d'isso! Ó céu!
Ó campo! ó canção! A sciência
Pesa tanto e a vida é tam breve!
Entrae por mim dentro! Tornae
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passae!
(da 2ª edição fac-similada, Contexto, 1994)
FERNANDO PESSOA
«Ela canta, pobre ceifeira,»
(versão publicada na revista ATHENA, nº 3 - Dezembro de 1924)
Ella canta, pobre ceifeira,
Julgando se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anonyma viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E ha curvas no enredo suave
Do som que ella tem a cantar.
Ouvil-a alegra e entristece
Na sua voz ha o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência d'isso! Ó céu!
Ó campo! ó canção! A sciência
Pesa tanto e a vida é tam breve!
Entrae por mim dentro! Tornae
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passae!
(da 2ª edição fac-similada, Contexto, 1994)
[o canto e a ceifa V]
FERNANDO PESSOA
«Ela canta, pobre ceifeira,»
(versão enviada a Armando Côrtes-Rodrigues em 19 de Janeiro de 1915)
XI
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez...
Canta e ceifa, e a sua voz cheia
De alegre e anónima viuvez
Flutua como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar...
Ouvi-la alegra e entristece...
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida...
E com tão nítida pureza
A sua voz entra no azul
Que em nós sorri quanto à tristeza
E a vida sabe a amor e a sul!
Canta!... arde-me o coração...
O que em mim ouve está chorando...
Derrama no meu peito vão
A tua incerteza voz ondeando...
Canta e arrasta-me p'ra ti,
P'ra o centro ignoto da tua alma,
E que um momento eu sinta em mim
O eco da tua alada calma...
Ah! poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso! Ó céu,
Ó campo, ó canção,... a ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve...
Entrai por mim dentro, tornai
Minha alma a vossa sombra leve...
Depois, levando-me, passai...
(in Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues, introdução de Joel Serrão, 3ª ed: 1985 - ortografia actualizada)
FERNANDO PESSOA
«Ela canta, pobre ceifeira,»
(versão enviada a Armando Côrtes-Rodrigues em 19 de Janeiro de 1915)
XI
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez...
Canta e ceifa, e a sua voz cheia
De alegre e anónima viuvez
Flutua como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar...
Ouvi-la alegra e entristece...
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida...
E com tão nítida pureza
A sua voz entra no azul
Que em nós sorri quanto à tristeza
E a vida sabe a amor e a sul!
Canta!... arde-me o coração...
O que em mim ouve está chorando...
Derrama no meu peito vão
A tua incerteza voz ondeando...
Canta e arrasta-me p'ra ti,
P'ra o centro ignoto da tua alma,
E que um momento eu sinta em mim
O eco da tua alada calma...
Ah! poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso! Ó céu,
Ó campo, ó canção,... a ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve...
Entrai por mim dentro, tornai
Minha alma a vossa sombra leve...
Depois, levando-me, passai...
(in Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues, introdução de Joel Serrão, 3ª ed: 1985 - ortografia actualizada)
12.9.05
[o canto e a ceifa IV]
BUSON
Na água profunda
assobia uma foice
ceifando as canas
(versão de Adelino Ínsua, in O Crisântemo Branco - antologia de haiku, Pedra Formosa, 1995)
BUSON
Na água profunda
assobia uma foice
ceifando as canas
(versão de Adelino Ínsua, in O Crisântemo Branco - antologia de haiku, Pedra Formosa, 1995)
[o canto e a ceifa III]
OSSIP MANDELSTAM
Quando sai para os céus a lua citadina,
E a noite prenhe de cobre e mágoa cresce,
E de lua a cidade espessa se ilumina,
E a cera canora ao tempo rude cede,
E na sua torre de pedra o cuco chora,
E a pobre ceifeira - no mundo dessangrado -
Ajeita de leve agulhas da sombra enorme
E as lança, palha amarela, no sobrado...
(de Guarda a Minha Fala para Sempre, tradução Nina Guerra e Filipe Guerra, Assírio & Alvim, 1996)
OSSIP MANDELSTAM
Quando sai para os céus a lua citadina,
E a noite prenhe de cobre e mágoa cresce,
E de lua a cidade espessa se ilumina,
E a cera canora ao tempo rude cede,
E na sua torre de pedra o cuco chora,
E a pobre ceifeira - no mundo dessangrado -
Ajeita de leve agulhas da sombra enorme
E as lança, palha amarela, no sobrado...
(de Guarda a Minha Fala para Sempre, tradução Nina Guerra e Filipe Guerra, Assírio & Alvim, 1996)
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ceifeira,
Ossip Mandelstam,
Russa
11.9.05
[o canto e a ceifa II]
WILLIAM WORDSWORTH
The Solitary Reaper
Behold her, single in the field,
Yon solitary Highland Lass!
Reaping and singing by herself;
Stop here, or gently pass!
Alone she cuts and binds the grain,
And sings a melancholy strain;
O listen! for the Vale profound
Is overflowing with the sound.
No Nightingale did ever chaunt
More welcome notes to weary bands
Of travellers in some shady haunt,
Among Arabian sands:
A voice so thrilling ne'er was heard
In spring-time from the Cuckoo-bird,
Breaking the silence of the seas
Among the farthest Hebrides.
Will no one tell me what she sings? -
Perhaps the plaintive numbers flow
For old, unhappy, far-off things,
And battles long ago:
Or is it some more humble lay,
Familiar matter of to-day?
Some natural sorrow, loss, or pain,
That has been, and may be again?
Whate'er the theme, the Maiden sang
As if her song could have no ending;
I saw her singing at her work,
And o'er the sickle bending; -
I listen'd, motionless and still;
And, as I mounted up the hill,
The music in my heart I bore,
Long after it was heard no more.
A CEIFEIRA SOLITÁRIA
Só ela no campo vi:
solitária de altas serras,
ceifa e canta para si.
Não digas nada, que a aterras!
Sozinha ceifa no mundo
E canta melancolia.
Escuta: o vale profundo
Transborda à de harmonia.
Nunca um rouxinol cantou
em sombras da Arábia ardente
ao que exausto repousou
mais grata canção dolente;
ou gorjeio tão extremado
se escutou na Primavera,
cortando o Oceano calado
entre ilhas de Além-Quimera.
Quem me dirá do que canta?
Será que o que ela deplora
é antigo, triste e distante,
como batalhas de outrora?
Ou coisas simples são
do quotidiano viver?
Essas dor's de coração,
que já foram e hão-de ser?
Seja o que for que cantara
é como infindo cantar,
que a vi cantando na seara,
no trabalho de ceifar.
Sem falar, quieto, eu escutava
e, quando o monte subia,
no coração transportava
o canto que não se ouvia
(tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 Séculos)
WILLIAM WORDSWORTH
The Solitary Reaper
Behold her, single in the field,
Yon solitary Highland Lass!
Reaping and singing by herself;
Stop here, or gently pass!
Alone she cuts and binds the grain,
And sings a melancholy strain;
O listen! for the Vale profound
Is overflowing with the sound.
No Nightingale did ever chaunt
More welcome notes to weary bands
Of travellers in some shady haunt,
Among Arabian sands:
A voice so thrilling ne'er was heard
In spring-time from the Cuckoo-bird,
Breaking the silence of the seas
Among the farthest Hebrides.
Will no one tell me what she sings? -
Perhaps the plaintive numbers flow
For old, unhappy, far-off things,
And battles long ago:
Or is it some more humble lay,
Familiar matter of to-day?
Some natural sorrow, loss, or pain,
That has been, and may be again?
Whate'er the theme, the Maiden sang
As if her song could have no ending;
I saw her singing at her work,
And o'er the sickle bending; -
I listen'd, motionless and still;
And, as I mounted up the hill,
The music in my heart I bore,
Long after it was heard no more.
A CEIFEIRA SOLITÁRIA
Só ela no campo vi:
solitária de altas serras,
ceifa e canta para si.
Não digas nada, que a aterras!
Sozinha ceifa no mundo
E canta melancolia.
Escuta: o vale profundo
Transborda à de harmonia.
Nunca um rouxinol cantou
em sombras da Arábia ardente
ao que exausto repousou
mais grata canção dolente;
ou gorjeio tão extremado
se escutou na Primavera,
cortando o Oceano calado
entre ilhas de Além-Quimera.
Quem me dirá do que canta?
Será que o que ela deplora
é antigo, triste e distante,
como batalhas de outrora?
Ou coisas simples são
do quotidiano viver?
Essas dor's de coração,
que já foram e hão-de ser?
Seja o que for que cantara
é como infindo cantar,
que a vi cantando na seara,
no trabalho de ceifar.
Sem falar, quieto, eu escutava
e, quando o monte subia,
no coração transportava
o canto que não se ouvia
(tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 Séculos)
[o canto e a ceifa I]
DANIEL FARIA
Encosto-me à morte sem amparo ou sombra
Como o grão alheio-me da flor que virá e venho
À superfície do teu sonho
Como se acordasse a mão que semeia
No coração lavrado de quem faz a ceifa
Rebento no interior da morte como o trigo
Rebento no interior do trigo
E de qualquer planta que se assemelhe a ti
(de Explicação das Árvores e de Outros Animais, Fundação Manuel Leão, 1998)
DANIEL FARIA
Encosto-me à morte sem amparo ou sombra
Como o grão alheio-me da flor que virá e venho
À superfície do teu sonho
Como se acordasse a mão que semeia
No coração lavrado de quem faz a ceifa
Rebento no interior da morte como o trigo
Rebento no interior do trigo
E de qualquer planta que se assemelhe a ti
(de Explicação das Árvores e de Outros Animais, Fundação Manuel Leão, 1998)
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