13.9.05

[o canto e a ceifa V]

FERNANDO PESSOA

«Ela canta, pobre ceifeira,»

(versão enviada a Armando Côrtes-Rodrigues em 19 de Janeiro de 1915)

XI

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez...
Canta e ceifa, e a sua voz cheia
De alegre e anónima viuvez

Flutua como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar...

Ouvi-la alegra e entristece...
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida...

E com tão nítida pureza
A sua voz entra no azul
Que em nós sorri quanto à tristeza
E a vida sabe a amor e a sul!

Canta!... arde-me o coração...
O que em mim ouve está chorando...
Derrama no meu peito vão
A tua incerteza voz ondeando...

Canta e arrasta-me p'ra ti,
P'ra o centro ignoto da tua alma,
E que um momento eu sinta em mim
O eco da tua alada calma...

Ah! poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso! Ó céu,
Ó campo, ó canção,... a ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve...
Entrai por mim dentro, tornai
Minha alma a vossa sombra leve...
Depois, levando-me, passai...

(in Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues, introdução de Joel Serrão, 3ª ed: 1985 - ortografia actualizada)

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