ALEXANDRE HERCULANO
A VOLTA DO PROSCRITOIJá suave a sorte dura
Mostra a face ao desterrado:
Porque surge ainda a amargura
Em seu rosto carregado?
Vento amigo ao pátrio solo
Pelo mar guia o proscrito,
E um sorriso de consolo
Não lhe luz no rosto aflito?
Corta a proa o mar fremente;
O cantor lá se assentou;
E sua torva e altiva frente
Sobre a dextra reclinou.
Vem-lhe ideia após ideia,
Já tristonha, já serena;
Que no gesto lhe vagueia
Ora o gozo, logo a pena.
Coração afeito à mágoa
Da esperança desconfia:
Desalenta, e em viva frágua,
São-lhe negros noite, e dia.
Mas se, enfim, lhe tece a sorte
À existência um áureo fio,
E, vencendo o mar e a morte,
O conduz ao pátrio rio,
A que mais agora aspira
O mancebo trovador?
É por glória que suspira?
Não lhe ri propício o amor?
Não vê perto a terra cara,
Que chorou em dor absorto,
E nos braços dos que amara
Não terá paz e conforto?
Mas silêncio! A fronte erguendo,
Ele os olhos pôs nos céus,
E a canção, da alma rompendo,
Sussurrou nos lábios seus.
II«Rasga as ondas do pego indomado
Leve barca: já freme o galerno:
Depõe iras o rábido inverno:
Torna à pátria infeliz trovador.
Como bate no seio ansioso
Coração que oprimiu a amargura,
Quando meiga sorri a ventura,
Quando volve esperança de amor!
Esperança, e somente esperança
Cabe àquele que os mares correu.
Quem lhe diz que inda não o esqueceu
A donzela por quem suspirou?
Quem lhe diz não irá noutros laços
Venturosa encontrá-la e infiel,
E que a voz do remorso cruel
Para a ingrata tremenda soou?
Quem lhe diz não irá murchas rosas
Tão-somente encontrar sobre a lousa
Onde a amada tranquila repousa,
Onde vá junto dela expirar?
Esperança, e somente esperança
Cabe àquele que os mares correu:
Ela só resta àquele que o céu
Longos dias de dor fez passar.
Eu traguei estes dias de luto;
Encarei muitas vezes a morte;
Pude o louro colher dado ao forte:
Também mirto de amor colherei?
Ou o arbusto que outrora plantara,
Que por mim cultivado crescera,
Que entre angústias jamais me esquecera,
Esquecido por ela acharei?
Como, além desse cabo que esconde
Verdes águas do meu pátrio Tejo,
A alma levam saudade e desejo!
Como atrás a compele o terror!
Ledo o nauta saúda a guarida
Aonde incólume o vento o há guiado,
E alegrou esse olhar carregado
Com que insulta do mar o furor.
Feliz nauta, em teu seio tranquilo
Pulsa em paz coração baixo e rude;
Fado amigo negou-te o alaúde;
Deu-mo a mim: para prantos mo deu.
Nunca, pois, surgirá uma aurora
Em que nele ressoe a alegria,
E em que o triste, que a dor oprimia,
Erga um hino de júbilo ao céu?
Nunca rir-me propicia a ventura
Sobre a terra verão estes olhos?
Será sempre coberto de abrolhos
Agro trilho que à morte conduz?
Ou nas trevas da minha existência
Surgirá inda um dia radioso,
Como, às vezes, em céu tenebroso
Rompe o sol com torrentes de luz?»
IIIJá no porto a leve barca
Longa esteira desdobrou,
E ao clarão final do dia
Férreo dente ao mar lançou.
Eis as plagas da saudade;
Eis a terra de seus sonhos;
Eis os gestos tão lembrados;
Eis os campos tão risonhos!
Eis da infância o tecto amigo;
Eis a fonte que murmura;
Eis o céu puro da pátria;
Eis o dia da ventura!...
IVFoi o cantor feliz? Em breves dias
Viu-se cruzar errante incertos mares.
Sob o tecto paterno ansiada noite
Ele passou; e o sono sossegado
Não lhe cerrou os olhos lacrimosos.
Conta-se que o seu amor fora traído,
E que mirrado achou de amor o mirto,
Que deixara viçoso, e que saudara
Desde além do oceano em seu delírio.
Sobre a proa outra vez indo assentar-se,
Não entoou um hino de alegria.
Com ar sinistro e torvo e os lábios mudos
Correu coa vista as ondas inquietas,
E, porventura, a ideia que as passara
Nas asas da esperança, e que a esperança
Tinha expirado ao limiar do gozo,
Mais lhe turbou a fronte carregada.
O mísero sorriu-se. Em tal sorriso
O passado e o futuro estava impresso,
E da sua alma a dolorosa noite.
VNão mais o trovador no lar da infância
Repousará talvez: talvez sua harpa
Durma pendente em solitário tronco
Do pinheiro bravio, onde a desfaça
O sopro do aquilão. Ao desditoso
Sonho de glória e amor tinha embalado;
Mas foi sonho, e passou, e uma existência
Nua d’encantos despregou-se ante ele.
Quem o consolará? De fogo essa alma
Consolo não terá, nem quer consolo.
A maldição de Deus vestiu-lhe a vida
De padecer e lágrimas. Ignoto
Será ao mundo que surgiu na terra
O génio de um cantor, bem como planta
Morta apenas saída à flor do solo,
Ou como a aragem da manhã, que passa
Antes de o sol nascer, em dia estivo.
E que importa essa glória ao dono dela?
Esse fruto do Asfaltite que encerra
Senão cinza em invólucro formoso?
Que é o eco de um nome, que não soa
Senão sobre o sepulcro do que impresso
Na fronte o trouxe em meio de amarguras,
Por vezes de ignomínias?
.........................«Vive, oh triste,
Esquecido do mundo, e esquece o mundo!
Nas solidões profundas da tua alma,
Vazia das paixões que a assassinaram,
Some os cantos que dela transudavam
Para correr num século sem vida,
Sem virtude e sem fé, e em que desabam
As crenças todas do passado, e é sonho
A constância e o amor.»
.........................Palavras estas
Extremas foram do proscrito.
Longe, Em praia estranha abandonando a barca,
Qual o seu fado foi ninguém mais soube.
(in
Obras Completas / Poesias – tomo I, Prefácio e revisão de Vitorino Nemésio, verificação do texto de António C. Lucas, livraria Bertrand, 1977)