3.4.10

RUY CINATTI


IMPROPÉRIA — 1960


Que venha a luz da terra iluminar a treva.
Que venha a luz do céu iluminar a treva.
Que venham ambas, numa só, iluminar a treva.

Trazer conhecimento;
Visão, sobretudo visão pra quem a pede.
Pra quem a não pede... mas que venha cedo.

A hora é de pasmar, calamitosa.
A hora funde a espada nas entranhas.
A hora é de comer raízes frias
Ou de tecer mais espessa a teia que nos cobre.

fbrque nem tudo se perdeu, nem tudo
É como quer quem se vendeu aos poucos
A outrem ou a si — pior que tudo.
Porque nem sempre é preciso descer escadas
Perseguido pelo fantasma que em nós vive.

Porque ainda há vozes traiçoeiras
Capazes de indicar caminho ignoto.
Eu canto, mas imploro, eu invoco
A multidão dos anjos debruçada
Sobre o ser vivo, sobre um corpo morto
Geladamente; iluminado apenas
Por assassinos focos...

Eu canto: sonho e vivo, mas não tremo,
Invoco de novo os anjos — testemunhos
Calados, pacientemente aflitos
Do mal que cresce;
Nos afunda, afoga
Em cada um de nós.

Porque tudo se perdeu ou perde.
Nem tudo é como queríamos que fosse
Sonhado ou procurado...
Porque nem sempre a fome é saciada,
Menos a sede, ainda a mais violenta,
Eu canto, eu imploro, eu invoco:

Que venha a luz da terra iluminar a treva.
Que venha a luz do céu iluminar a treva.

Mas se a hora é de comer raízes frias
(Meus queridos anjos tão abandonados...)
Que venha Cristo em fogo alimentar-nos!


(de Memória Descritiva, 1971)

2.4.10

LOPES MORGADO


ÀS TRÊS DA TARDE

Mateus 27,51-54; Marcos 15,33-41


O véu do templo rasgou-se em dois, de alto a baixo.
- E eu continuo com áreas interditas ou reservadas,
preso ao passado, ao culto antigo e ao mistério.

A terra tremeu e as rochas fenderam-se.
- E eu, empedernido, imperturbável,
indiferente, insensível aos sinais da natureza.

Os túmulos abriram-se, e muitos santos saíram vivos.
- E eu, nem rebento com a lousa do meu túmulo caiado,
nem saio a proclamar a ressurreição com a vida.

O centurião e os guardas disseram-no Filho de Deus.
- E eu, dois mil anos depois, continuo relutante,
querendo mantê-lo no limite de um homem apenas bom.

Muitas mulheres, que O seguiram, observavam de longe.
- E eu, além de O não seguir como discípulo,
afasto-me para longe donde não possa ver nem crer.

A natureza fez luto de trevas do meio-dia às três.
- E eu, nem à noite me dispo do meu respeito humano
para falar com Ele, como fez o mestre Nicodemos.

Às três da tarde, Jesus gritou como crente em angústia.
- E eu, nem então me aproximo sem este nó na garganta,
ao menos para agradecer o feriado de Sexta-feira Santa.
Fátima, 02.02.2004
(de em minha memória, Difusora Bíblica, 2004)
JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

DA CRUZ



abre os nossos olhos, Deus
aos sofrimentos dos que ao nosso lado sofrem,
tu que percorreste a distância que vai
do que se faz no tempo,
ao juízo último
e passaste pelos sofrimentos visíveis
à glória pela cruz,
cordeiro inocente em quem todas as vítimas
do mundo se reconhecem;

que percorrendo os caminhos obscuros dos que
connosco passam,
te reconheçamos, Deus, que conheces o dia
e a hora das nossas acções e dos nossos desejos;

acolha-nos a água da tua misericórdia,
Deus do homem para todos os homens,
Deus no Espírito do estremecimento e da alegria.

Deus, tu que conheces as pedras
em que tropeçamos
ou em que fazemos os outros tropeçar –
porque essa é a lógica do desejo
que nos cega os olhos
e nos traz acorrentados à ambição e ao ressentimento,

abre o nosso coração ao acolhimento
que não aliena
e os nossos olhos ao Evangelho
que não se muda em ídolo

pedimos-te, Deus,
que não nos tornemos obstáculos
uns para os outros,
nem o saber violento da violência
seja a palha no olho do irmão que julgamos sempre,
nós que vivemos debaixo da tua cruz
esperando que se cumpram em nossa vida
os dias da tua criação contínua
e o dom do teu amor no Cristo
que venceu a morte
e no Espírito que nos faz rezar-te
hoje e nos dias todos da nossa esperança.

Deus que nos colocaste
no jardim da tua decisão primeira
para o cultivar e o guardar,
tu que conheces o animal que chouta à nossa porta
que imita o animal que se devora
e no sangue das guerras
e da dominação que faz escravos se sacia;

vem buscar-nos, Deus,
ao fundo dos nossos medos e do nosso ressentimento acusador;

que a espada de fogo da tua palavra
nos aponte os caminhos da diferença boa e feliz
até ao teu encontro face a face no teu Dia
hoje e em todos os dias da nossa viagem para ti.

(de Vazio Verde (o Nome), 1985)

1.4.10

MANUEL ZIMBRO





[...]
a luz é imensa atenção
com essa capacidade, a forma iluminada pode reflectir tanta luz que chegue por vezes a parecer ser forma luminosa – sem forma.
há luz opaca e sombras transparentes, ao luar.

chega mesmo a haver engenhos chamados de informação ou comunicação que parecem ser formas luminosas
e, como se fossem um sol, gerem a tal ponto o mundo da ilusão, que a angústia ou tédio já os tornou indispensáveis, como uma droga.

entretanto, entre outras coisas, a atmosfera atravessada por esses sinais em delírio, também delira,
quando, por exemplo, tem uma cebola para germinar,
então intervêm as perversas astúcias químicas, para fazerem o que a natureza já não é capaz.
o lixo que se produz, seja sólido, líquido ou gasoso
é proporcional ao consumo que se faz
e quem consome é a mente
consumindo-se com o lixo.

originalmente no homem não há nem bondade nem maldade,
são ideias fixas
a história passada, projectos futuros, que o fazem perder a origem
perder a criadora capacidade de a gerar
sem ela, basta um pequeno passo, e entra-se logo em "mecanismos" de isto ou daquilo.
a mente "em-si" faz só avarias.

a mente de um homem só pode produzir imenso dano (hitler)
a mente de um só homem pode produzir a reparação (possível) desse mesmo dano.
mas o melhor é não produzir nada.
e isso só pode ser produzido pela não-mente
esta produção é a única, em todas as direcções, profundamente real.
é esse o verdadeiro trabalho.

se bem que todo o corpo possa captar luz, é pelas costas bem direitas por onde ele a recebe mais,
se bem que todo o corpo possa reflectir luz, é no silêncio dos sentidos por onde ele mais a reflecte,
e muito especialmente pela mente em silêncio.

em silêncio brilham os olhos que não focam, e tudo vêem
em silêncio encontra-se a língua sem gosto, com todo o gosto
em silêncio move-se o nariz sem cheiro, por todo o cheiro
em silêncio presta-se o ouvido ao silêncio que tudo ouve
em silêncio abrem-se as mãos que nada têm, e tudo possuem
em silêncio a luz da não-mente, sem querer, tudo reflecte
como um espelho vazio.
tudo é dar, e dar, e dar, não há bloqueio, não há obstrução
nenhuma migalha de luz é retida "em-si"
como poderia ser? se não há "em-si" que a retenha.

por muito mal que tudo esteja, tudo está bem como está,
há que ter a capacidade de tolerar mesmo a obstrução da luz
por um lado reconhecer a contingência de ter de adaptar-se à que há
por outro lado, não confundir nesse processo ter de adaptar-se com habituar-se
acomodar-se e favorecer um estado de coisas que cada vez mais a deteriora.
[...]


(reprodução de guache e excerto de texto de TORRÕES DE TERRA notas de um lavrador para encontrar o céu e a terra, editado com apoio de Assírio & Alvim e por “conta e risco” do Autor, s. d.)

31.3.10

JOSÉ GOMES FERREIRA

VIII

(Futuro: a Censura não deixou publicar estes versos n'«O Diabo».)

Posso lá compreender os teus olhos resignados
com qualquer mecânica de Primavera!

Eu que estou farto das canções vazias dos pássaros
e dos montes de pedras
que já ninguém sabe quem criou
neste enredo da preguiça das árvores
a repetirem sonâmbulas
a herança azul
do primeiro caos da criação.

Eu que quero outra luz,
outro sol,
outra morte,
neste planeta de cadáveres
enfurecido de flores.

Eu que só choro diante das paisagens
quando me lembro que por dentro das pedras
corre, negro e escondido,
o sangue humano de todos os fuzilados.

A Primavera queremos nós criá-la.
Nós, os homens.


(de Pessoais, in Poeta Militante / Viagem do Século Vinte em Mim - 1º volume, Moraes editores, 1977 - Círculo de Poesia)
JOSÉ GOMES FERREIRA


VI


Dulcineia, Dulcineia,
volte ao que era:
uma plebeia
sem primavera

Volte aos redis,
coberta de chagas
— sem espuma em gomis
nem brilho de adagas.

Volte ao que foi,
pois ainda conserva
um cheirinho a boi,
um cheirinho a erva...

Volte a apanhar pinhas
e bosta para os fornos.
E a tanger cabrinhas
com flores nos cornos.

Volte a andar de gatas
como os outros bichos...
E esqueça as serenatas
aos seus caprichos.

Esqueça o castelo
onde os donzéis
se batiam em duelo
à século XVI...

E volte à aldeia
da sua labuta.

Dulcineia, Dulcineia,
deixe de ser Ideia
e torne-se a carne e a alma
da nova luta.

(de A Morte de D. Quixote, in Poeta Militante / Viagem do Século Vinte em Mim - 1º volume, Moraes editores, 1977 - Círculo de Poesia)

30.3.10

ÍBICO

CANÇÃO DA PRIMAVERA
(Fr. 5, Page)


Na primavera florescem os marmeleiros
e as romãzeiras, regadas
pelas águas dos rios,
lá onde fica das Virgens o jardim imaculado,
e os gomos das videiras crescem sob os rebentos
umbrosos dos pâmpanos; mas a mim o Amor
não me dá estação alguma de descanso:
como o trácio Bóreas, deflagrando
com o trovão, soprando do lado de Cípria,
com loucura devastadora,
tenebroso e sem peias,
sacode de alto a baixo com força
o nosso coração.

(in Hélade – Antologia da Cultura Grega, organização e tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, 10ª edição: Guimarães editores, 2009)
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Os templos gregos, como as estátuas dos Kouroi e os vasos de Dípilo, tentam medir o divino. Mas a tragédia mede a distância que separa os homens dos deuses. Aquiles, semelhante aos deuses na linguagem de Homero, traz em si a veemência dos deuses mas traz também a falha dum calcanhar vulnerável porque é um homem para a morte. E a tragédia é a parte de Édipo porque ele quis estar presente a todo o seu destino.
Pois o mundo grego nunca é o mundo da pura serenidade apolínea. O espírito apolíneo aparece sempre conjugado com a força dionisíaca. E o chaos, anterior a tudo, assedia o kosmos. A claridade grega é uma claridade que reconhece a treva e a enfrenta. A claridade daqueles que interrogam a esfinge e que penetram no labirinto para combater a escuridão e a violência do toiro.
Os Gregos inventam a tragédia porque sabem que a treva existe e a interrogam e a enfrentam. Porque sabem que o chaos está na origem e permanece latente. Porque sabem que o chaos é abismo hiante.
Hesíodo diz:

«Pois antes de tudo era o chaos.»

Na Bíblia antes de tudo há deus e o nada. A partir desse nada Deus cria as coisas.

(excerto de O Nu na Antiguidade Clássica, 3ª edição: editorial Caminho, 1992)

29.3.10

JOÃO CANDEIAS

DESERTOS

1


Sabes deste deserto exangue. Aqui te falo
com as caravanas sobre o deserto das palavras.
Nos recantos guardam-se os segredos
que acantos escondem em ramagens aladas.
Na tua boca, no recesso desse murmúrio, tanto corpo despertámos.
Da tua voz vaga, a memória: foi neste remanso
que destruímos vagos ícones, foi no segredo destas
pedras que inventámos a alquimia do corpo
poro a poro fundimos novos destinos.
Cresceu o tempo entre o sol e a noite, templo de ausências.
Encheram-se os olhos de deserto, de lágrimas. Esparsos oásis.
Os pés em fogo, a água ausente, lágrimas apenas. O horizonte
junto ao céu, longe. Rastos, vestígios, peregrinações


2 (variante)

Sabes deste deserto exangue. Daqui te falo
donde os recantos guardam os segredos.
Aqui te falo, com as caravanas sobre o deserto das palavras.
Sabes deste deserto que os acantos escondem
nas aladas ramagens.
Tanto corpo despertámos. Aqui te falo.
Murmúrio, voz e memória: destruímos vagos ícones
no segredo das pedras, nas aladas ramagens.
Inventámos o corpo, a alquimia dos destinos.
Cresceu o sol e a noite, cresceu o templo das ausências.
Enchem-se os olhos de deserto, de lágrimas.
Aqui te falo. Sabes deste deserto exangue

(de Voltei à casa pequena, editorial Diferença, 1999)

28.3.10

ALEXANDRE HERCULANO


A VOLTA DO PROSCRITO



I
Já suave a sorte dura
Mostra a face ao desterrado:
Porque surge ainda a amargura
Em seu rosto carregado?

Vento amigo ao pátrio solo
Pelo mar guia o proscrito,
E um sorriso de consolo
Não lhe luz no rosto aflito?

Corta a proa o mar fremente;
O cantor lá se assentou;
E sua torva e altiva frente
Sobre a dextra reclinou.

Vem-lhe ideia após ideia,
Já tristonha, já serena;
Que no gesto lhe vagueia
Ora o gozo, logo a pena.

Coração afeito à mágoa
Da esperança desconfia:
Desalenta, e em viva frágua,
São-lhe negros noite, e dia.

Mas se, enfim, lhe tece a sorte
À existência um áureo fio,
E, vencendo o mar e a morte,
O conduz ao pátrio rio,

A que mais agora aspira
O mancebo trovador?
É por glória que suspira?
Não lhe ri propício o amor?

Não vê perto a terra cara,
Que chorou em dor absorto,
E nos braços dos que amara
Não terá paz e conforto?

Mas silêncio! A fronte erguendo,
Ele os olhos pôs nos céus,
E a canção, da alma rompendo,
Sussurrou nos lábios seus.


II
«Rasga as ondas do pego indomado
Leve barca: já freme o galerno:
Depõe iras o rábido inverno:
Torna à pátria infeliz trovador.

Como bate no seio ansioso
Coração que oprimiu a amargura,
Quando meiga sorri a ventura,
Quando volve esperança de amor!

Esperança, e somente esperança
Cabe àquele que os mares correu.
Quem lhe diz que inda não o esqueceu
A donzela por quem suspirou?

Quem lhe diz não irá noutros laços
Venturosa encontrá-la e infiel,
E que a voz do remorso cruel
Para a ingrata tremenda soou?

Quem lhe diz não irá murchas rosas
Tão-somente encontrar sobre a lousa
Onde a amada tranquila repousa,
Onde vá junto dela expirar?

Esperança, e somente esperança
Cabe àquele que os mares correu:
Ela só resta àquele que o céu
Longos dias de dor fez passar.

Eu traguei estes dias de luto;
Encarei muitas vezes a morte;
Pude o louro colher dado ao forte:
Também mirto de amor colherei?

Ou o arbusto que outrora plantara,
Que por mim cultivado crescera,
Que entre angústias jamais me esquecera,
Esquecido por ela acharei?

Como, além desse cabo que esconde
Verdes águas do meu pátrio Tejo,
A alma levam saudade e desejo!
Como atrás a compele o terror!

Ledo o nauta saúda a guarida
Aonde incólume o vento o há guiado,
E alegrou esse olhar carregado
Com que insulta do mar o furor.

Feliz nauta, em teu seio tranquilo
Pulsa em paz coração baixo e rude;
Fado amigo negou-te o alaúde;
Deu-mo a mim: para prantos mo deu.

Nunca, pois, surgirá uma aurora
Em que nele ressoe a alegria,
E em que o triste, que a dor oprimia,
Erga um hino de júbilo ao céu?

Nunca rir-me propicia a ventura
Sobre a terra verão estes olhos?
Será sempre coberto de abrolhos
Agro trilho que à morte conduz?

Ou nas trevas da minha existência
Surgirá inda um dia radioso,
Como, às vezes, em céu tenebroso
Rompe o sol com torrentes de luz?»


III
Já no porto a leve barca
Longa esteira desdobrou,
E ao clarão final do dia
Férreo dente ao mar lançou.

Eis as plagas da saudade;
Eis a terra de seus sonhos;
Eis os gestos tão lembrados;
Eis os campos tão risonhos!

Eis da infância o tecto amigo;
Eis a fonte que murmura;
Eis o céu puro da pátria;
Eis o dia da ventura!...


IV
Foi o cantor feliz? Em breves dias
Viu-se cruzar errante incertos mares.
Sob o tecto paterno ansiada noite
Ele passou; e o sono sossegado
Não lhe cerrou os olhos lacrimosos.
Conta-se que o seu amor fora traído,
E que mirrado achou de amor o mirto,
Que deixara viçoso, e que saudara
Desde além do oceano em seu delírio.
Sobre a proa outra vez indo assentar-se,
Não entoou um hino de alegria.
Com ar sinistro e torvo e os lábios mudos
Correu coa vista as ondas inquietas,
E, porventura, a ideia que as passara
Nas asas da esperança, e que a esperança
Tinha expirado ao limiar do gozo,
Mais lhe turbou a fronte carregada.
O mísero sorriu-se. Em tal sorriso
O passado e o futuro estava impresso,
E da sua alma a dolorosa noite.


V
Não mais o trovador no lar da infância
Repousará talvez: talvez sua harpa
Durma pendente em solitário tronco
Do pinheiro bravio, onde a desfaça
O sopro do aquilão. Ao desditoso
Sonho de glória e amor tinha embalado;
Mas foi sonho, e passou, e uma existência
Nua d’encantos despregou-se ante ele.
Quem o consolará? De fogo essa alma
Consolo não terá, nem quer consolo.
A maldição de Deus vestiu-lhe a vida
De padecer e lágrimas. Ignoto
Será ao mundo que surgiu na terra
O génio de um cantor, bem como planta
Morta apenas saída à flor do solo,
Ou como a aragem da manhã, que passa
Antes de o sol nascer, em dia estivo.

E que importa essa glória ao dono dela?
Esse fruto do Asfaltite que encerra
Senão cinza em invólucro formoso?
Que é o eco de um nome, que não soa
Senão sobre o sepulcro do que impresso
Na fronte o trouxe em meio de amarguras,
Por vezes de ignomínias?
.........................«Vive, oh triste,
Esquecido do mundo, e esquece o mundo!
Nas solidões profundas da tua alma,
Vazia das paixões que a assassinaram,
Some os cantos que dela transudavam
Para correr num século sem vida,
Sem virtude e sem fé, e em que desabam
As crenças todas do passado, e é sonho
A constância e o amor.»
.........................Palavras estas
Extremas foram do proscrito.
Longe, Em praia estranha abandonando a barca,
Qual o seu fado foi ninguém mais soube.

(in Obras Completas / Poesias – tomo I, Prefácio e revisão de Vitorino Nemésio, verificação do texto de António C. Lucas, livraria Bertrand, 1977)