24.12.05

ADÉLIA PRADO

Noite feliz


Dói tanto que se pudesse diria:
me fere de lepra.
Mas que importa a Deus o monte de carne podre?
Tem piedade de mim, Vós, cujo filho duas vezes gritou,
apesar de ser Deus. Me dá um sonho.
É como se meu pai não me amasse
e não tivesse dado a vida por mim.
Só belos versos, não.
Uma linha depois da outra,
tão finamente escritas,
com tão primoroso fecho
- e o que sinto é cansaço.
Basta a beleza própria
da estocada das coisas no meu peito.
Comer, sonhar, talvez morrer, quem sabe?
A morte existe, ô pai?
Sei que na Polônia católica
ninguém escreveu com estas mesmas palavras
na carrocinha de doces:
'Para todos e sua família desejo um feliz natal.'
No Brasil sim, na minha rua,
usando uma língua pobre e uma caneta de cor,
alguém sentiu o inefável.
Não se perderá o fermento, ó comadre.
Bebem? Não pagam as contas?
- Vamos fazer um teatro.
Tem a máscara do boi, do burro,
as vestes de José e Maria,
tem a roupa do homem que negou hospedagem
mas que veio depois, depois da estrela,
dos anjos, depois dos pobres pastores, e que mais recebeu.
Porque não merecia.
Sou miserável.
Um monte de palha seca
é obra de minhas mãos.
Tem piedade de mim,
desce, orvalho do céu,
desce sobre nós,
restabelece o fio das conversas saudáveis.
Traze a fresca manhã.

(de Terra de Santa Cruz, 1981)
FERNANDO SYLVAN

MENINO JESUS DA MINHA COR


Meu Natal Timor,
Meu primeiro Natal.

Quantos anos tinha?!
Nunca o soube ao certo.

Minha Mãe-Menina
Fez-me o seu presépio:
Uma encosta arrancada ao Ramelau
Com uma gruta ausente
Cheia de Maromak
E perfume de coco,
Um búfalo e um kuda
E o bafo quente dos seus pulmões.

E um menino sobre a palha de arroz
E folhas de cafeeiro.

Um menino branco
Igual aos que chegavam de longe.
- Ínan, quem é?
- É o Maromak-Filho e teu Irmão!

E eu recuei, porque via no berço
Um menino rosado,
Um menino branco
Igual aos que chegavam de longe.

- Ele é, mais do que todos, teu Irmão...
- Mas como pode ser um meu irmão?
- É teu Irmão: Firma-lhe bem teus olhos, meu Amor!

E eu, obedecendo,
Firmei-me todo nEle.
E vejo-O desde então
Também da minha cor!

(de 7 poemas de Timor, 1965)


Ínan = mãe
Kuda = Pequeno cavalo
Maromak = Deus
JOÃO PEDRO GRABATO DIAS

Natal a 40 graus de beatitude leste


Ninguém é mais Rei do que eu.
Nem os 3 de Belém.
Eles iam ver o Seu
Rei meu só ou ninguém!

Falando de Realezas:
- O Rei vai nu!
- O menino não diga subtilezas
Cale a boca qu'inda é pequeniiinooooo...!

(de uma meditação 21 LAURENTINAS e dois fabulírios falhados, edição do Autor, 1971)

23.12.05

A propósito disto:


Isto:

Camauro: Cobertura para a cabeça, exclusiva do Papa, maior que o solidéu, de forma a cobrir as orelhas. É de veludo vermelho, guarnecido a cetim da mesma cor, debruado com plumas de cisne e forrado a arminho; durante a semana "in albis", o camauro é branco.

(in Thesaurus - vocabulário de objectos do culto católico, coordenação de Natália Correia Guedes, Fundação Casa de Bragança, 2004)

21.12.05

[já é Inverno na Terra]

NUNO HIGINO


As minhas mãos sabem a terra
das minhas mãos nascem gardénias
e neva nas minhas mãos
quando é inverno

(de Onde correm as águas, Campo das Letras, 2003)

20.12.05

RUI KNOPFLI

O POETA É UM FINGIDOR


Entreteço palavras
na malha áspera destes versos
e a tessitura triste que faço
mais esmorece no azul baço
do papel. Entristeço então
a alma numa renda miúda
e apertada de ponto incerto
e complicado. Estabeleço assim
dois mundos convergentes:
A textura entristecida dos versos
e a tristeza entretecida da alma.
E logo esqueço onde tudo isto
teve começo:
Se de entristecer palavras,
se de entretecer sentimentos,
se de constrangera alma,
se de contristar palavras:
se me contristei constrangendo,
se me constrangi contristando.

Sei que me contristo entretecendo
e me entreteço de tristeza.

(de Mangas Verde com Sal, 1969)

19.12.05

Dá gosto uma Terra assim, como a de hoje, da Alegria.
Um texto com ilustrações, de um ilustre/ilustrado Autor.
JOSÉ AFONSO

De não saber o que me espera


De não saber o que me espera
Tirei a sorte à minha guerra
Recolhi sombras onde vira
Luzes de orvalho ao meio-dia

Vítima de só haver vaga
Entre uma mó e uma espada
Mas que maneira bicuda
De ir à guerra sem ajuda

Viemos pelo sol nascente
Vingámos a madrugada
Mas não encontramos nada
Sol e água

De linhas tortas havia
Um pouco de maresia
Mas quem vencer esta meta
Que diga se a linha é recta

(do álbum Fura Fura, 1979)

18.12.05

NUNO JÚDICE

ARTE DO POEMA


Eu pensava que escrever era uma escolha rigorosa de temas determinados,
e mais - que a progressão no poema, sem confundir um tema e outro,
pelo contrário iria estabelecer uma rigorosa separação. Entre,
por um lado, o interior dos sons, e por outro o rebordo exterior
do sentido, evoluindo este último segundo os efeitos próprios dos sons
em cada diversa sensibilidade.
Assim, estabelecidas as múltiplas zonas «poéticas», eu poderia designar
o que está escrito,
e assim mesmo irá ficar,
como um estudo de poética - ou «arte do poema».

(de O Pavão Sonoro, 1972)