29.1.05

[outros melros XXII]

EMMANUEL HOCQUARD

ELEGIA 7


III

13 de Fevereiro

uma mesa de alfaiate
no Atlântico Norte

o melro cantou
na noite
em que Champollion encontrou a pista

um inverno tão seco
e tão suave
a falta de chuva
fez cair as folhas
da árvore das borboletas
no nevoeiro
e nem sequer nevoeiro

FUMO CINZA UMA ILUSÃO
E NEM SEQUER ILUSÃO

lembras-te da torre flutuante
bóia sibilante
coroada
pelas aves do mar
os dois corvos-marinhos
do cinzeiro de Somerville?


14 de Setembro de 1822

o melro do muro
debica
as bagas da hera

«isto vai isto vai
e apesar de pequenas incertezas
posso garantir-te que
o nosso alfabeto é que está certo»

depois foi o regresso
um domingo de manhã
no autocarro de Fromentine

em Janeiro
tinha havido a carpa

o viveiro
a cama de gelo no supermercado
3 dias a nadar
na minha banheira
o transporte de carro
para acabar
nessa segunda de manhã
numa lagoa em Royaumont

& o mesmo nevoeiro

(de Teoria das Mesas antecedido de Elegia 7, tradução colectiva em Mateus, Quetzal editores, 1991)

28.1.05

MANUEL LOPES

CONSUMMATUM


Queria que chegasses, finalmente,
numa manhã qualquer,
- estrela fria de alva ou sol ardente
cujo sorriso bom
me pudesse prender...
Que tivesse o dom
de me encantar e conter
- que valesses o mundo
que sonhei ter...

... Renunciar inteiramente
a esta luta de viver mil vidas.
Que tu fosses o fim que mais cobiço,
se afinal
esse fim existisse
e continuasse sempre igual...

... Para
depois de ter-me libertado
e morto assim o nomadismo inquieto
do meu mundo interior
-minha ânsia de descobrir qualquer coisa melhor -
e destruído por amor a ti
todos os parasitas de oiro e fogo
da eternidade que vivi;

e livre finalmente
com a alma nua e o espírito nu
e um destino e um caminho e um desejo só
e uma só realidade
que és tu
e após a confidência fatigada
(curvado sobre ti como à beira dum abismo):
«Só te esperava para te renunciar!»
dar-te o último soluço que eu não pudesse conter,
e (como a um mundo que acabasse sem paroxismo)
contemplar
sem Saudades, a Mim-mesmo acabado de morrer!...

1945

(de Crioulo e outros poemas, EA, 1964)
Na passada terça-feira, morreu, aos 97 anos, um dos funcdadores da modernidade na poesia caboverdiana. Manuel Lopes é um dos nomes maiores da literatura em língua portuguesa. Autor de vasta obra que inclui a poesia, a ficção e o ensaio (dedicou-se também à pintura), escreveu Os Flagelados do Vento Leste, um dos mais significativos romances da literatura africana em português.

Junto com outros, em 1936, criou a revista Claridade, sinal visível de que os escritores africanos não se envergonhavam da sua própria cultura e que reconheciam a sua riqueza imensa. Contemporânea, mas pouco influenciada pelos vários movimentos literários e artísticos da negritude (Senghor, Cesaire, Diop, mas também o que se passava nas Antilhas, sobretudo em Cuba e, claro, o jazz e os blues da América) a Claridade contitui o veículo pelo qual «pela primeira vez nas terras africanas de influência portuguesa se experimenta uma poesia de raiz», nas palavras de Manuel Ferreira (No Reino de Caliban I, Plátano editora, 4ª ed. 1997)

27.1.05

NELLY SACHS

CORO DOS QUE SE SALVARAM


Nós que nos salvámos,
De cujos ossos ocos a Morte já cortava as suas flautas,
Em cujos tendões a Morte já passava o seu arco -
Os nossos corpos ainda gemem
Com a sua música mutilada.
Nós que nos salvámos,
Ainda pendem os baraços torcidos para os nossos pescoços
Em frente de nós no ar azul -
As ampulhetas ainda se enchem com o nosso sangue gotejante.
Nós que nos salvámos,
Ainda em nós roem os vermes do medo.
A nossa estrela está enterrada no pó.
Nós que nos salvámos
Vos pedimos:
Mostrai-nos devagar o vosso Sol.
Levai-nos a passo de estrela em estrela.
Deixai-nos aprender devagar de novo a vida.
De contrário poderia a canção dum pássaro,
O encher do balde no poço
Fazer rebentar a nossa dor mal selada
E arrastar-nos em espuma -
Nós vos pedimos:
Não nos mostreis ainda um cão que morde -
Poderia ser, poderia ser
Que nos desfizéssemos em pó -
Perante os vossos olhos em pó nos desfizéssemos.
O que é que aguenta ainda inteira a nossa teia?
Nós que nos tornámos sem hálito,
Cuja alma fugiu para Ele da meia-noite
Muito antes de nos terem salvado o corpo
Na arca do momento.
Nós que nos salvámos,
Apertamo-vos a mão,
Reconhecemos o vosso olhar -
Mas só e ainda nos aguenta a despedida,
A despedida no pó
Nos aguenta convosco.

(tradução de Paulo Quintela, in Poemas de Nelly Sachs, Portugália, 1967 - Poetas de Hoje - o original pertence ao seu primeiro livro In den Wohoungen des Todes / Nas Moradas da Morte, de 1946)
Hoje, no Público, Augusto M. Seabra lembra a célebre frase de Théodor Adorno: "Depois de Auschwitz não é mais possível escrever poesia.", referindo que tal máxima viria a ser contrariada, citando alguns exemplos: David Rousset, Primo Levi, Robert Antelme e Paul Celan.
Não refere, infelizmente, aquele que creio ser o melhor dos exemplos: Nelly Sachs (1891-1970), uma judia alemã que testemunhou os sofrimentos dos seus irmão de raça e crença e que o pôs em palavras numa obra poética intensa, mas também cheia de esperança, vindo a receber o Nobel da Literatura em 1966.

24.1.05

NATÉRCIA FREIRE

O ÚLTIMO DIA


Haverá penas, lágrimas, adeuses
no sótão velho da abafada Lua.
Para os ouvidos lentos dos malteses
um realejo tocará na rua.

Sob o capricho em onda, do Milagre,
fulge o Anjo de cílios descaídos.
Das mãos lhe escorre um rio cor de almagre
que inunda a Lua de astros pervertidos.

Qual um quadro já baço, de cem anos,
a luz do gás desenha, mansa e triste,
uma orquestra de tímidos ciganos,
para a canção do amor que não existe.

(À janela da Lua, debruçados,
são os maltese puros e alados.)

Ressoa em lume, a velha carruagem,
pela calçada que conduz à vida.
Os maltese suspeitam da viagem;
mas têm a mão suapensa e distraída.

Quando o último dia começar
no sótão velho da abafada Lua,
haverá penas, lágrimas, adeuses,
e para os ouvidos lentos dos malteses
um realejo tocará na rua.

(de Poemas, 1957)