20.5.06

RUI CARLOS SOUTO

DIFÍCIL REALIDADE


Sair ao encontro das árvores
É produzir refúgio
É reduzir tudo a encontrar
Coisas

Depois vemo-nos rodeados
Por janelas
Que não alcançam
Depois as ruas
Misturam-se com as palavras
E falam em monólogo
Com as folhas

É o fumo do tabaco
Perto ao sol
As bailarinas
Junto aos olhos
O movimento lento
Do tempo

Esgota-se o sonho
Até ao limite
Num equilíbrio mascarado
Ou na ilusão

É o cansaço que se bebe
Num certo fechar
De olhos
Certa forma inquieta
De despertar

(de Maneiras de Andar, Black Sun editores, 2001)

19.5.06

[para uma antologia de bicicletas - 5 e 6]

ALEXANDRE O'NEILL


Os outros pedais da bicicleta


Ninguém toma a sério a bicicleta como eventual substituto do automóvel na crise de energia que atravessamos, que nos atravessa. A bicicleta é resignação, fleuma, ginástica, infância revisitada, revivida (mais como sonho do que como prática), humor, euforia dominical de carolas que vão «pescar» a sua caldeirada a vinte ou trinta quilómetros da cidade. A bicicleta poderá ser a pedalada contestação dos amigos da Natureza. Para nós, os escravos do volante, ela não passa de mais uma ideia que nos faz sorrir. Nada substituirá, no nosso apreço, o automóvel. Nem no trabalho, nem no lazer. Por enquanto...
Mas a bicicleta tem outros pedais que não podemos ver. Movido pela necessidade, esse «tubular engonço», como em jeito barroco uma vez lhe chamei, desenrola quilómetros bem menos alegres do que as tiradas que nele sonhamos fazer.
A bicicleta pode ser o mundo às costas: serra de carpinteiro, caixa de ferramentas, cesto de padeiro. A bicicleta pode ser a cruz às costas. Para um renovado olhar sobre a bicicleta, aqui transcrevo, sem mais oitos, o «Apelo Angustiantes» que há anos, por ocasião das grandes cheias na região de Lisboa, apareceu nos jornais:
«O meu marido saiu de casa no dia 25 de Novembro para procurar trabalho no Carregado ou no Barreiro, levava: uma bicicleta a pedais, caixa de ferramenta de pedreiro, vestia calças azuis de zuarte, camisa verde, blusão cinzento, tipo militar, e calçava botas de borracha e tinha chapéu cinzento e levava na bicicleta um saco com uma manta e uma pele de ovelha, um fogão a petróleo e uma panela de esmalte azul. Como houve as inundações e não tive mais notícias, já estou alarmada e já espero o pior. Estou aflita, eu e os meus dois filhos.»

(in A Capital, 5 de Fevereiro 1974, compilado em Coração Acordeão, O Independente, 2004 - série Inéditos de Imprensa)


ELOGIO BARROCO DA BICICLETA

Redescubro, contigo, o pedalar eufórico
pelo caminho que a seu tempo se desdobra,
reolhando os beirais - eu que era um teórico
do ar livre - e revendo o passarame à obra.

Avivento, contigo, o coração, já lânguido
das quatro soníferas redondas almofadas
sobre as quais me estangui e bocejei, num trânsito
de corpos em corrida, mas de almas paradas.

Ó ágil e frágil bicicleta andarilha,
ó tubular engonço, ó vaca e andorinha,
ó menina travessa da escola fugida,
ó possuída brincadeira, ó querida filha,

dá-me as asas - trrrim! trrrim! - pra que eu possa traçar
no quotidiano asfalto um oito exemplar!

(de A Saca de Orelhas, 1979)

18.5.06

[outros melros XXXV]

TEOPHILE GAUTHIER

(...)
Se algum poeta madrugador tivesse passado pela Avenida Gabriel com os primeiros rubores da madrugada, teria escutado o rouxinol terminar os últimos trinados do seu canto nocturno, e visto o melro passear nas suas pantufas amarelas pelo jardim, como faria um pássaro que se sentisse em sua casa; mas, se tivesse passado à noite, depois de abafado o último rumor provocado pelas viaturas que regressavam da ópera, esse mesmo poeta teria podido vislumbrar uma sombra branca que dava o braço a um belo jovem; e o poeta teria regressado à sua mansarda, a alma mortalmente triste.
(...)

(excerto de Avatar, in Avatar e outros contos fantásticos, editorial Estampa, 1973)

15.5.06

ROBERTO JUARROZ

Toda a palavra chama outra palavra.
Toda a palavra é um íman verbal,
um pólo de atracção variável
que inaugura sempre novas constelações.

Uma palavra é toda a linguagem,
mas é também a fundação
de todas as transgressões da linguagem,
a base onde se afirma sempre uma antilinguagem.

Uma palavra é ainda o homem.
Duas palavras são já o abismo.
Uma palavra pode abrir uma porta.
Duas palavras fazem-na desaparecer.

(de Poesia Vertical, antologia e tradução de Arnaldo Saraiva, Campo das Letras editores, 1998 - Campo da Poesia)

14.5.06

JOSÉ TERRA

As palavras ferem-se no vento,
retraem-se no íntimo da concha.

As palavras, em hélice, padecem
a tortura do indeciso tempo.

Saltam da alma como peixes. Ficam
asfixiantes na aridez da praia.

As palavras batem contra o espelho
e evitam o rosto reflectido.

A etimologia emigra no silêncio.
As palavras resignam. É o reino

da esfinge, frio, imperturbável.
As palavras espantam-se no vento

do claro sol, da limpidez da água.
Os archeiros d'El-Rei pisam a noite

e exigem-lhe à entrada o passaporte.
O frio gládio alveja o peito

e as puríssimas vestes poisam, lentas.
Revistam-lhes as tranças e o sorriso

e, mesmo assim, a sentinela embarga
o limiar da linha alfandegária.

As palavras vestem o cilício
da conturbada hora em que nasceram

palpitantes, vívidas, certeiras.
As palavras à esquina do silêncio,

rastejam ao luar, sob a fronteira.

(de Canto Submerso, Portugália editora, 1956)