7.11.18

MANUEL GUSMÃO


Carlos de Oliveira pertence a uma tradição que na modernidade é a da autoconsciência do trabalho poiético da forma.  Entretanto, esse trabalho não é praticado nem imaginado como um simples labor construtivo, mecânico ou mecanizável, todo método e cálculo. Esse trabalho inclui a preparação paciente de uma «pequenina explosão»; inclui a espera, a passividade disponível, o acontecimento imprevisível. Como o mostrou convincentemente Gustavo Rubim, esse trabalho «desfaz a oposição entre o cálculo e o acontecimento».
Há a este propósito uma longa tradição que pensa de forma dualista a poesia e as poéticas. Haveria num pólo o poeta «voyant», inspirado, possuído ou órfico (a matriz está em Platão) e, num outro pólo, o poeta «artiste», artífice, premeditado ou hermético (a matriz estaria agora em Aristóteles). De um lado, a inspiração, a força, a «chama», a energueia e, do outro, o cálculo, a forma, o «cristal», o ergon. A oposição não é de todo inverosímil, nem inútil, é possível vê-la como um particular sintoma da dificuldade de pensar uma identidade essencial e a-histórica do que seria a poesia. Mas Carlos de Oliveira é precisamente um daqueles que mostra como o dualismo rígido dessa bipolaridade pode deixar de funcionar: a sua obra é a de um artesão afectado pela paixão.


(excerto de «A Arte da Poesia em Carlos de Oliveira», in Neo-Realismo — Uma Poética do Testemunho (alguns exercícios de releitura), Edições Avante​, 2018)