6.2.10

ROSA ALICE BRANCO

FLOR DE TINTA


O poema é o desenho desta letra
inclinada pelo rumor do vento
quando lhe peço abrigo
e vejo nele o espelho do meu corpo
repousando nos teus braços de ontem.

A tinta ainda não acabou de secar.
O cheiro fresco da página vira-se para a página seguinte
e a minha voz ouve-se melhor ao vento
quando conspiramos no silêncio
a próxima letra
e a exactidão do seu desenho.

Agora há mimosas nas árvores
e lá em baixo o rio já não é como era
nem saberia sê-lo.
Esqueci como se bebe a água pela mão
ou como se bebe a mão
do rio.

Eu existia nessa transparência,
na flor espiritual e líquida
da tinta
que retoca no papel a sua vida.
Esta letra é o meu nome soletrado por ti,
o meu nome que ainda não está seco
e te olha nas acácias florindo em amarelo
no rigor do inverno.

Qualquer palavra tua me desenha
e assim começa qualquer coisa
que me estava destinada desde sempre.

(de O Único Traço do Pincel, 1997)

5.2.10

ANTÓNIO BARAHONA

VIII


Os relâmpagos iluminam um busto no telhado:
monumento ao Poeta Desconhecido, disfarçado de pássaro
com bico de homem a beber a chuva de vinho novo

Nos socalcos da cidade cresce a videira brava,
as gavinhas atam os meus dedos aos prédios
e há gaviões predadores de gatos pretos
em voo muito baixo junto aos tornozelos

Turbas de trovões atravessam o tecto
Vê-se um livro aberto diante dum espelho
a falar sozinho, a virar as páginas com cheiro a sândalo
e um cigarro, esquecido no cinzeiro, ilumina o poema
que gasta montes de dinheiro a subornar o sono

Porto, 22.IX.90
(de Noite do meu Inverno, ΙΧΘΥΣ, 2001)

4.2.10




Divina Música – Antologia de Poesia sobre Música
é uma edição comemorativa do 25.º Aniversário do Conservatório Regional de Música de Viseu. A organização coube ao poeta Amadeu Baptista e a capa é de Inês Ramos.
Colaboram:
Adalberto Alves, Affonso Romano de Sant’Ana, Albano Martins, Alexandra Malheiro, Alexandre Vargas, Alexei Bueno, Amadeu Baptista, Ana Hatherly, Ana Luísa Amaral, Ana Mafalda Leite, Ana Marques Gastão, Ana Salomé, Ana Sousa, António Brasileiro, António Cabrita, António Cândido Franco, António Ferra, António Gregório, António José Queirós, António Osório, António Rebordão Navarro, António Salvado, Artur Aleixo, Bruno Béu, C. Ronald, Camilo Mota, Carlos Felipe Moisés, Carlos Garcia de Castro, Casimiro de Brito, Cláudio Daniel, Cristina Carvalho, Daniel Abrunheiro, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Danny Spínola, Davi Reis, Donizete Galvão, E.M. de Melo e Castro, Edimilson de Almeida Pereira, Eduardo Bettencourt Pinto, Eduíno de Jesus, Ernesto Rodrigues, Eunice Arruda, Fernando de Castro Branco, Fernando Echevarría, Fernando Esteves Pinto, Fernando Fábio Fiorese Furtado, Fernando Grade, Fernando Guimarães, Fernando Pinto do Amaral, Francisco Curate, Gonçalo Salvado, Graça Magalhães, Graça Pires, Henrique Manuel Bento Fialho, Hugo Milhanas Machado, Iacyr Anderson Freitas, Inês Lourenço, Isabel Cristina Pires, Jaime Rocha, Joaquim Cardoso Dias, João Aparício, João Camilo, João Candeias, João Manuel Ribeiro, João Moita, João Rasteiro, João Rios, João Rui de Sousa, João Tala, Joaquim Feio, Jorge Arrimar, Jorge Reis-Sá, Jorge Velhote, José Agostinho Baptista, José Carlos Barros, José do Carmo Francisco, José Luís Mendonça, José Luís Peixoto, José Manuel Vasconcelos, José Mário Silva, José Miguel Silva, José Tolentino de Mendonça, Júlio Polidoro, Levi Condinho, Luís Amorim de Sousa, Luís Filipe Cristóvão, Luís Quintais, Luís Soares Barbosa, manuel a. domingos, Margarida Vale de Gato, Maria Andersen, Maria Estela Guedes, Maria João Reynaud, Maria Teresa Horta, Miguel-Manso, Miguel Martins, Myriam Jubilot de Carvalho, Nicolau Saião, Nuno Dempster, Nuno Júdice, Nuno Rebocho, Ondjaki, Ozias Filho, Patrícia Tenório, Paula Cristina Costa, Paulo Ramalho, Paulo Tavares, Prisca Agustoni, Risoleta Pinto Pedro, Roberval Alves Pereira, Rosa Alice Branco, Rui Almeida, Rui Caeiro, Rui Coias, Rui Costa, Ruy Ventura, Sara Canelhas, Soledade Santos, Teresa Tudela, Torquato da Luz, Urbano Bettencourt, Vasco Graça Moura, Vera Lúcia de Oliveira, Vergílio Alberto Vieira, Victor Oliveira Mateus, Virgílio de Lemos, Vítor Nogueira, Vítor Oliveira Jorge, Yvette K. Centeno, Zetho Cunha Gonçalves.


The Great Gig in the Sky (Pink Floyd)


Fixa os olhos no grande bloco de basalto
E escuta atentamente.
Este alçapão para onde te deixas ir

É a voz de uma mulher.
Uma voz inteira. Oscila e avança,
É a pele de um corpo enorme, suspenso

A fazer-te arriscar o que tens de céu
Com os golpes agudos de metal
Maleáveis, a ferir os ouvidos.

Não deixes de olhar a grande pedra à tua frente,
A voz é um grito a absorver o tacto,
A concentrar a luz no imo da garganta.

E faz doer os músculos
De quem não tem outra dor para sentir,
Como se fosse uma palavra recorrente

Misturada com o vento
Portador da angústia das ruas
E a fixar-se nos passos de cada um.

O que ouves é a multidão,
O peso já sem melodia – apenas fôlego –,
Um rumor denso diante dos olhos

Acessível à mão.
É o instrumento com que arrancas
Algo cravado no teu peito,

Uma voz a simular o firmamento
A ocupar os espaços vagos na tua alma
Que continua a ouvir-se depois de terminar.

(in Divina Música - Antologia de Poesia sobre Música, Conservatório Regional de Música de Viseu, 2009)

3.2.10

ROSA LOBATO DE FARIA

11.


Quem me quiser há-de saber as conchas
a cantiga dos búzios e do mar
Quem me quiser há-de saber as ondas
e a verde tentação de naufragar.

Quem me quiser há-de saber as fontes
a laranjeira em flor a cor do feno
a saudade lilás que há nos poentes
o cheiro de maçãs que há no inverno.

Quem me quiser há-de saber a chuva
que põe colares de pérolas nos ombros
há-de saber os beijos e as uvas
há-de saber as asas e os pombos.

Quem me quiser há-de saber os medos
que passam nos abismos infinitos
a nudez clamorosa dos meus dedos
o salmo penitente dos meus gritos.

Quem me quiser há-de saber a espuma
em que sou turbilhão, subitamente
- Ou então não saber coisa nenhuma
e embalar-me ao peito, simplesmente.


(de Memória do Corpo, Textual editores, 1992)

2.2.10

[na morte de Manuel Serra]



(Voz de Francisco Fanhais)


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Porque



Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

(de Mar Novo, 1958)

1.2.10

JOÃO RUI DE SOUSA

VIDA E MORTE DAS PALAVRAS


São vivas quando
o coração do vento amadurece
e a voz vem de repente
e não se esquece
de estremecer as trevas
ou de roer as malhas
da rotina
ou de dar lenha e fogo
(matéria inesperada
e sibilina)
a um barco que arrefece.

São mortas quando
a morte nelas cresce
- com os seus cabelos ralos,
suas ramagens crespas, desgastadas,
seus ossos cabisbaixos
rolados sobre o nada.
São mortas se não queimam
a limalha sobrante - esse pó
de cães exaustos, de dias
fatigantes -
e em podridão se instalam.

(de Quarteto para as próximas chuvas, publicações Dom Quixote, 2008)