27.7.12


D. H. LAWRENCE


COBRA

Uma cobra abeirou-se da gamela
Num dia de calor, tanto calor e eu de pijama,
Para beber da minha água.

Na sombra funda de perfume estranho da grande alfarrobeira escura
Desci os degraus de cântaro na mão
E tive de ficar, ficar ali à espera pois na gamela à minha frente estava o réptil.
Ele desceu por uma fenda do muro de terra na sombra
E no bordo da gamela de pedra arrastou devagar o ventre fulvo e mole
E encostou o pescoço no fundo de pedra
E numas pingas límpidas de água escorrida da torneira
Bebeu aos poucos por fauces lisas
Bebeu de leve por gengivas lisas enchendo o corpo lento e longo

Em silêncio.

Alguém chegara primeiro à minha gamela de água
E eu que vim depois fiquei à espera.

Ergueu a cabeça depois de uns goles tal como o gado
E fitou-me vagamente como faz o gado a beber,
A língua saía-lhe da boca, bífida, súbita; alheou-se um momento
E inclinou-se a beber um pouco mais
Castanho como terra, terra de oiro, saído das entranhas da terra ardente
Nesse dia siciliano de Julho, com o Etna em fumos.

As vozes da minha educação diziam
Que tinha de ser morto esse réptil
Pois na Sicília não há mal nas cobras todas negras mas nas douradas há venenos.

E aquelas vozes em mim diziam: Se fosses homem
Pegavas num pau, partias-lhe a espinha e era o fim.

Será preciso confessar que gostei dele
Que era bom ele ter vindo, convidado silente, beber da minha água
E poder voltar em paz, apaziguado, sem mesmo agradecer
Para as entranhas ardentes dessa terra?

Era cobardia não ousar matá-lo?
Era perfídia querer tanto falar-lhe?
Era humildade sentir tanta lisonja?
E era tanta a lisonja que eu sentia.

E todavia aquelas vozes:
Se não fosses medroso, havias de matá-lo!

Tinha medo na verdade um grande medo.
Ainda assim, maior era a lisonja
Pois ele viera ao meu quintal pedir guarida
Saindo a porta escura da terra de mistério.

Deu-se por satisfeito,
E levantou a cabeça no olhar ausente de quem já bebeu
E a língua súbita saía-lhe da boca como negra noite bífida nos ares
Parecia lamber o lábio
E como um deus olhou os ares em volta, sem ver,
E virou a cabeça devagar
E devagar, devagar como se em triplo sonho
Dispôs-se a desenrolar o seu lento comprimento
E a trepar de novo pela rampa em ruína do meu muro.

E enquanto metia a cabeça naquele buraco horrendo
E se erguia devagar num espreguiçar de réptil que se enterra,
Uma espécie de horror, uma espécie de protesto contra o seu regresso àquele buraco negro e horrendo
Contra aquele retorno deliberado à escuridão no arrastar lento do corpo
Apossou-se de mim ao vê-lo de costas.

Olhei em volta, pousei o cântaro,
Peguei num pau grosseiro
E atirei-o à gamela num estalido.

Acho que não lhe acertei
Mas o resto do corpo entrou de repente em convulsão brusca e descomposta
Contorceu-se como relâmpago e sumiu-se
No negro buraco, na fenda de bordos térreos da face do muro;
Olhei fascinado na luz do meio-dia intensa e calma.

E arrependi-me no mesmo instante.
Pensei que fora um gesto ignóbil, perverso, obsceno!
Tive nojo de mim e das vozes da minha maldita educação humana.

E pensei no albatroz
E desejei que voltasse a minha cobra.
Pois esse réptil parecia-me um rei de novo
Rei exilado deposto sem coroa no mundo subterrâneo
Prestes a ser de novo coroado.
Perdi o ensejo concedido por um dos soberanos da vida.
E tenho de expiar uma atitude: Ser mesquinho.


(in Gencianas Bávaras e Outros Poemas, versão de João Almeida Flor, Na Regra do Jogo, 1983)