2.6.06

[para uma antologia de bicicletas - 8]

PAPINIANO CARLOS

OS CICLISTAS


A Vasco de Magalhães-Vilhena

Com um surdo rumor de escavadora
ressoa no subsolo a tua voz.
Muitos tapam os ouvidos delicados.
Outros escondem-se para não ouvir.
E outros estremecem de pavor.
Mas, rápidos, os ciclistas pedalam
na bruma dos subúrbios ao teu encontro.
Rosto baixo, mãos no guiador, pés
bem firmes nos pedais, geram
o movimento, o ritmo alado
das máquinas frágeis que cavalgam
ao amanhecer. Perpassam como espectros
sob a bruma e juntam-se, confluem,
avançam como um rio poderoso
sobre a cidade adormecida.
Os ciclistas. Os que erguem os andaimes
e fazem girar os fusos dos teares.
Os que movem as gruas. Os que transportam
o dinamite nas mãos calosas.
Os que não sabem envelhecer de tédio
à mesa do café nem vivem de mercadejar
preservativos, palavras, casas pré-fabricadas.
Os que não sonham morrer em glória
como jovens deuses trespassados na batalha.
Os que não hão-de apodrecer, como muitos
de nós, roídos de lepra e desespero.

Esses merecem bem a tua voz, Orfeu.

(de Os Ciclistas, in A Ave Sobre a Cidade, livraria Paisagem, 1973)

1.6.06

[poesia de crianças]

"A minha vida é uma memória"
(João Pedro Vitorino, 3 anos)

"A poesia é uma coisa que não é a mesma coisa mas é igual"
(Beatriz Antunes, 4 anos)

"O coração é uma bolinha pequenina que faz barulho"
(Ana Carolina Gargalo, 3 anos)

"Eu tenho letras
Que andam no meu nome"

(Jorge Nunes, 4 anos)

"O silêncio é um bocadinho de boca"
(Silvana Cravide, 2 anos)

"O amor é o dobro"
(João Cassola, 5 anos)

"Onde foi a luz quando apaga-se?"
(Mariana Dionísio, 2 anos)

"Os adultos, mal ouvem uma coisa que não gostam
ficam logo com a coisa que estava combinada
que já não é"

(Cláudia Inês Guerra, 4 anos)


(poemas citados por Miguel Somsen, no seu artigo de hoje na edição de Lisboa do jornal Metro)

31.5.06

[no dia do "não-fumador" adquiri os Papéis de Fumar, volume da poesia completa de um grande Autor]

VERGÍLIO ALBERTO VIEIRA

NAU PRETA

6


Porque nada parece querer dizer
O nada que alguma coisa sempre diz,
É que, chegada a hora de morrer,
Muito pouco foi tudo o que se quis.

Muito, não digo, o que havia a fazer,
Disse-o ele, aliás, com ar quase feliz,
E, acrescentou, enfim, pra se saber:
Fumar a vida eis o que, na vida, fiz!

Fumador, fumador por profissão
De tabaco d'enrolar, assim, sem pressa,
Comprado em quiosque de estação,

À mesa do café, antes que esqueça,
Tabaco louro que, por qualquer razão,
Fica em cinza nos dedos, isso qu'interessa!

(de A Arte de Perder, in Papéis de Fumar, editora Campo das Letras, 2006)
[quarta-feira, da Alegria]

NATÉRCIA FREIRE

TERRA


Da Verde rua parada
Ao verde campo das sombras
Vai pouco mais do que nada.

Vai uma lua redonda
Vai o silêncio da estrada.

Vai um perfume sem nome
De raízes e de terra
Da terra que é fome e come.

Do meu corpo sob a lua
Ao teu leito sob o vento
Vai um quadrante de amor
Sonolento...

Terra, terra que me queres...
Como os homens à mulheres...

(de A Segunda Imagem, 1969)