24.7.10

HENRIQUE MANUEL BENTO FIALHO


O ENTALADO


O entalado estava bucho do gasganete. Tinha novelos de pasta colados à gargantilha, enrolados entre o estômago e o esófago, tão recheado de explosivo que, mais uma bolachinha de água e sal, e não haveria contentor que o retivesse.
O entalado estava carrapito da vida, ruborescendo bochecha a bochecha uma acutilante adjectivação. Não ponham o entalado ao mesmo nível da mordedura, não confundam o dente com a placa.
O entalado estava seriamente sério, levando-se a si para lá de tudo o que pudesse pô-lo em causa.
O entalado estava engasgado. Bem lhe queriam bater nas costas, bem lhe queriam, mas o pobre coitado, já com a úlcera a sair-lhe pelo nariz, não tinha costas. Ele era uma curvatura com as badanas no lugar dos pulmões. Não confundam corcunda com isto, ele era mesmo badanas no lugar dos pulmões.
O entalado estava engasgado e explodiu seriamente toda a sua seriedade, apontou o dedo mindinho tremendo de fúria, parecia um engalanado, parecia um engarrafamento na festa do chocolate, parecia um chocolate dietético, parecia um perlimpimpim suburbano, parecia uma infância arrependida, parecia uma coisa que não se parece com nada.
É preciso postar gravidade, sisudez e rectidão no inútil. É preciso levar na vida a sério o que se leva a brincar no poema. É preciso vida para o poema, isto é, é preciso poema para a vida, ou seja, é preciso mandar o poema à vida, não obstante também ser preciso mandar a vida ao poema.
Nenhum atacador surrealista poderá embelezar as botas salpicadas do entalado. Nenhum abraço, nenhum beijinho nas fauces, nenhuma simpática paciência. A verdade é que enquanto o inchaço não passar ao entalado, não passará a dor pelo crivo da vergonha. E quando a dor não passa pelo crivo da vergonha só duas possibilidades nos restam: pica-se a dor, alarga-se o crivo.
A grande dúvida é: com que mão limpará o cu o entalado? Com a mão ferida ou com a mão suja?


(de Estranhas Criaturas, Deriva editores, 2010)

23.7.10

JÚLIO POLIDORO


eu sei, mas por saber, sei que sou parco,
tudo que não tenho é o que perco:
a morte se aproxima e fecha o cerco,
descreve uma espiral, desenha um arco.

sou para o oceano menos que um barco,
me sinto sobre a terra qual esterco;
fecundo esse fogo de que me acerco
com o ar que se sufoca sob o charco.

eu sei e por saber sei que sou pouco,
perdido, navegando como louco,
procuro por um cais que não conheço.

eu sei, pois por saber sei que pressinto:
no gesto de perder, que não consinto,
me enleia alguma teia que não teço.


(in Oiro de Minas a nova poesia das Gerais, selecção de Prisca Agustoni, Ardósia associação cultural, 2007)

22.7.10

HÉCTOR ROSALES


GAIVOTAS


Esse longo cachecol de areia
que aquece o meu andar, estendido
junto aos líquidos umbrais,
tem asas.

Elas levam as mágoas
sonolentas que o Verão reuniu
em sua casa. Anónima
então a alma, livre,
mais leve. Que ficou
de mim nesta franja?

Quando as ondas começaram
a vestir de luto as chegadas
– quietos o céu, os seus vidros
iniciais, candeeiros, focos, faróis –
uma dor recém-nascida
(a pequena plumagem
hirta entre algas)
fez-me voltar
ao que fui antes.


(in O Mar na Poesia da América Latina, selecção de textos e ensaio de Isabel Aguiar Barcelos, tradução dos poemas de José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, 1999 – documenta poetica / original de Visiones y Agonías, 1979)

21.7.10

REINA MARÍA RODRÍGUES


AS ILHAS


veja e não descuide delas
as ilhas são mundos aparentes
cortadas no mar
transcorrem em sua solidão de terras sem raiz
no silêncio da água uma mancha
de haver ancorado só aquela vez
e colocar os despojos da tempestade e as rajadas
sobre as ondas
aqui os cemitérios são lindos e pequenos
e estão além das cerimónias
me banhei para sentar-me na grama
é a zona de sombra
onde acontecem os espelhismos
e volto a sorrir
não sei se estás aqui ou é o perigo
começo a ser livre entre esses limites que se
intercambiam:
certamente amanhecerá.

As ilhas são mundos aparentes
coberturas do cansaço nos iniciadores da
calma
sei que a realidade só esteve em mim aquela vez
um intervalo entre dois tempos
cortadas no mar
sou lançada até um lugar mais tênue
as meninas que serão jovens uma vez mais
contra a sabedoria e a rigidez dos que
envelheceram
sem os movimentos e as contorsões do mar
as ilhas são mundos aparentes manchas de sal
outra mulher lançada para cima de mim que não conheço
só a vida menor
a gratidão sem pressa das ilhas em mim.


(tradução de Claudio Daniel, in Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina, organização, seleção e notas de Claudio Daniel, editora Iluminuras, 2004)

20.7.10

[outros melros LVIII]

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO



ER


Por fora do coração voa a asa
negra do melro. O mesmo que
vive na minha vida. O que tem
um assobio tranquilo e eterno.
Segue-me com o seu amor ocul
to. Une o olhar do solo raso
ao olhar sobre a altura. Muda
e depois é igual. Por vezes ve
mo-nos nas brenhas junto ao mar.
Noutro tempo foi numa aresta verde.

Vem da viagem de Ulisses. Um
cantor. Nas figueiras de Ogygia
cantando. Sobre um fio da er
va. Oiço-o com a mesma penetra
ção com que já foi ouvido na
Natureza. Por Er. Além os
pequenos pardais negam-no.
Não os contemplo. Todos os anos
estou atenta. Este poema
afirma e recorda. Esta ave
chama por mim como eu.


(de Âmago I (Nova Arte), 1985)

19.7.10

JORGE DE SENA


POST-SCRIPTUM


Não sou daqueles cujos ossos se guardam,
nem sou sequer dos que os vindouros lamentam
não hajam sido guardados a tempo de ser ossos.

Igualmente não sou dos que serão estandartes
em lutas de sangue ou de palavras,
por uns odiado quanto me amem outros.

Não sou sequer dos que são voz de encanto,
ciciando na penumbra ao jovem solitário,
a beleza vaga que em seus sonhos houver.

Nem serei ao menos consolação dos tristes,
dos humilhados, dos que fervem raivas
de uma vida inteira a pouco e pouco traída.

Não, não serei nada do que fica ou serve,
e morrerei, quando morrer, comigo.

Só muito a medo, a horas mortas, me lerá,
de todos e de si se disfarçando,
curioso, aquel' que aceita suspeitar
quanto mesmo a poesia ainda é disfarce da vida.

27/5/54


(de As Evidências, 1955)
GOETHE

O mundo é tão grande e tão rico, e a vida tão cheia de variedade, que nunca faltarão motivações para poemas. Mas hão-de ser sempre poemas circunstanciais, quer dizer, a realidade terá de proporcionar-lhes o motivo e a matéria.

(em Conversações de Goethe com Eckermann - 18 de Setembro de 1823 / citado por Jorge de Sena, como epígrafe à secção Circunstância, in Pedra Filosofal, 1950)

18.7.10

[no Dia Mundial de Nelson Mandela]

MONGANE WALLY SEROTE



Expresso do Terceiro Mundo

[...]
De que é que precisamos
de partilhar um pensamento
de uma canção
o que é que nós queremos?
se temos olhos para ver
e ouvidos para ouvir
se somos capazes de tocar
se somos capazes de olhar, de ver e de tocar
de que é que precisamos
de uma canção
de um pensamento
do pão
de que é que precisamos
no crepúsculo da vida
no barulho
na sua canção
pois é a sério e honestamente que pergunto
a África
à Ásia
à América Latina
como
como se perdeu a vida
quando se vive em minas
em cidades do mundo
no coração deste tempo
onde jovens
homens e mulheres
em delírio
em demência
rodopiam e tornam a rodopiar
vendo o mundo rodar rodar à volta
para cima
e para baixo e de pernas para o ar
onde os velhos esperam
esperam sós
e morrem sós deixando um fedor na nossa memória.

No meu país
os jovens lutaram oh África
lutaram
caíram
eram esplêndidos homens e mulheres
recordo-me de alguns
que já se foram
para quê
África diz-me para quê?
eu espero
espero nunca me esquecer de lhes dizer
que não são a geração perdida
espero
espero lembrar-me de lhes dizer
que se viverem outra vez
devem fazer como fizeram
com a voz do apito do comboio
com o clamor do clarão da lua cheia
com o silvo de uma estrela cintilante
com o grito de um carro em velocidade
devem dizer que
não são alicates
não são postes nem pás nem picaretas
devem dizer que
não são rocha nem são barra
devem
como o barulho de onde vieram
querer
erguer-se e rolar
rugir
esperar e rolar
subir e fluir
refluir e esperar
erguer-se e rolar
rugir
no fácil e difícil
na distância
nas entranhas
no barulho e no sussurro
no murmúrio
no destino
na mescla e no brilho e no rumor
no quebrar da cor e do barulho
África
Ásia
América Latina e guetos das cidades poderosa:
no olho de uma cabra
na graça de uma vaca a pastar
no abraço de uma paisagem que se alonga
devem dizer
na respiração do céu
no rolar e refluir do vento
na velocidade de um comboio
na altitude do avião
em África
na Ásia
na África do Sul
que o barulho começa e se interrompe
é um murmúrio
dos jovens frescos e esplêndidos
é o sussurro
é o silvo do bloco de Leste a ruir
é o bramido de setenta anos de traição
é um murmúrio
é um sussurro
é um barulho
é esperança
como um remendo
sobre filas e filas de fios de telefone
é esse vento
é essa voz que zumbe
é o silvar e o sussurrar nos fios
milhas após milhas após milhas
nos fios ao vento
na linha férrea
na rua que rola
no mato não silencioso
é o rumor do ruído
o barulho
aqui vem ele
o Expresso do Terceiro Mundo
devem dizer, cá vamos nós outra vez.


(excerto final de Expresso do Terceiro Mundo, tradução de João Ferreira Duarte, editorial Caminho, 1994 - da badana: «O Expresso do Terceiro Mundo é um longo poema de sabor épico. Embora no passado a crítica tivesse destacado a «visão apocalíptica» de Serote sobre o futuro da África do Sul, esta obra, publicada em 1992, não confirma essa caracterização. Há nela, de facto, a visão de uma humanidade — o Terceiro Mundo — em destruição. Mas há também o reflexo dos sinais já visíveis de reconstrução do homem na sua integridade.»)