O ENTALADO
O entalado estava bucho do gasganete. Tinha novelos de pasta colados à gargantilha, enrolados entre o estômago e o esófago, tão recheado de explosivo que, mais uma bolachinha de água e sal, e não haveria contentor que o retivesse.
O entalado estava carrapito da vida, ruborescendo bochecha a bochecha uma acutilante adjectivação. Não ponham o entalado ao mesmo nível da mordedura, não confundam o dente com a placa.
O entalado estava seriamente sério, levando-se a si para lá de tudo o que pudesse pô-lo em causa.
O entalado estava engasgado. Bem lhe queriam bater nas costas, bem lhe queriam, mas o pobre coitado, já com a úlcera a sair-lhe pelo nariz, não tinha costas. Ele era uma curvatura com as badanas no lugar dos pulmões. Não confundam corcunda com isto, ele era mesmo badanas no lugar dos pulmões.
O entalado estava engasgado e explodiu seriamente toda a sua seriedade, apontou o dedo mindinho tremendo de fúria, parecia um engalanado, parecia um engarrafamento na festa do chocolate, parecia um chocolate dietético, parecia um perlimpimpim suburbano, parecia uma infância arrependida, parecia uma coisa que não se parece com nada.
É preciso postar gravidade, sisudez e rectidão no inútil. É preciso levar na vida a sério o que se leva a brincar no poema. É preciso vida para o poema, isto é, é preciso poema para a vida, ou seja, é preciso mandar o poema à vida, não obstante também ser preciso mandar a vida ao poema.
Nenhum atacador surrealista poderá embelezar as botas salpicadas do entalado. Nenhum abraço, nenhum beijinho nas fauces, nenhuma simpática paciência. A verdade é que enquanto o inchaço não passar ao entalado, não passará a dor pelo crivo da vergonha. E quando a dor não passa pelo crivo da vergonha só duas possibilidades nos restam: pica-se a dor, alarga-se o crivo.
A grande dúvida é: com que mão limpará o cu o entalado? Com a mão ferida ou com a mão suja?
(de Estranhas Criaturas, Deriva editores, 2010)