O Presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, está cá em Portugal. Fez um discurso comovido na Assembleia da República e referiu a força que o nosso 25 de Abril deu ao ânimo dos brasileiros que então estavam debaixo de uma ditadura militar. A propósito o antigo torneiro mecânico referiu estas duas canções de Chico Buarque (uma explícita e a outra implicitamente), que eu copiei da sua página oficial [reparem no soneto "embutido"]:
Fado tropical
Chico Buarque - Ruy Guerra/1972-1973
Para a peça Calabarr de Chico Buarque e Ruy Guerra
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
"Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose de lirismo...(além da
sífilis, é claro)*
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."
Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas o meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa..."
Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
* trecho original, vetado pela censura
Tanto mar
Chico Buarque
1975
(primeira versão)*
Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
*Letra original,vetada pela censura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975.
1978
(segunda versão)
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
10.7.03
Frei ANTÓNIO DAS CHAGAS
[passei a manhã em visita ao Convento do Varatojo (Torres Vedras), guiada por um dos frades da Comunidade (são 15 no total). Por lá passaram figuras franciscanas muito ilustres e até lá chegou a viver D. João VI, como se fora um dos frades.]
Nasceu na Vidigueira, de família nobre, em 1631. Secularmente chamava-se António da Fonseca Soares. Por amor à pátria fez-se soldado, mas a vida dissoluta e libertina envolve-o num crime e tem que fugir para o Brasil. Entretanto regressa a Portugal e colabora na Fénix Renascida e no Postilhão de Apolo, sendo considerado um dos mais interessantes poetas do seu tempo. Após várias crises religiosas e recaídas, decide-se definitivamente pela vida religiosa, professando na Ordem Franciscana, em Évora, indo posteriormente para o Varatojo, onde desenvolve importante acção pastoral e renovadora. Aí morreu em 1682.
Tanto quanto sei, os seus poemas apenas estão disponíveis em (poucas...) antologias.
A uma dama que lhe mandou um favo de mel
Romance
Menina, este vosso favor,
favor é que não agradeço,
porque algum dano encobre
pores-me o mel pelos beiços:
Se para a cera do Favo
quereis pavio, eu prometo
dar-vos um tão bom pavio
que vos dure sempre aceso:
E é de sorte, vida minha,
que julga quem pode vê-lo,
de círio pela grandeza,
de brandão pelo bem feito:
Não cuideis que isto vale pouco
porque disse Sucarello
há parte donde às vezes
vale mais a mecha que o sebo:
Se para o vosso cortiço
quereis enxame, eu o tenho,
com tão boa abelha mestra
que não sofre zângãos dentro:
e se a crestar essa colmeia
quereis vir, não tenhais medo
deste furão que é mais doce
que o próprio mel desse termo:
Porém, amiga, ide embora,
que eu de tal favor receio
que quem favo hoje me manda
que à fava me mande cedo.
(Manuscrito da B.N.L. 8575, trasladado por Natália Correia para a Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, 1965 - 3ª edição, 1999)
Ao Cavalo do Conde de Sabugal, que fazia grandes curvetas
Galhardo bruto, teu bizarro alento
Música é nova, com que aos olhos cantas,
Pois na harmonia de cadências tantas
É clave o freio, é solfa o movimento.
Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão, que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som, e o andar concento.
Cantam teus pés, e o teu meneio pronto,
Nas fugas, não, nas cláusulas medido,
Mil consonâncias forma em cada ponto.
Pois em falsas airosas suspendido,
Ergues em cada quebro um contraponto,
Fazes em cada passo um sustenido.
(in Poesia Portuguesa do século XII a 1915, organizada por Cabral do Nascimento, Biblioteca Básica Verbo - Livros RTP, 1972)
[passei a manhã em visita ao Convento do Varatojo (Torres Vedras), guiada por um dos frades da Comunidade (são 15 no total). Por lá passaram figuras franciscanas muito ilustres e até lá chegou a viver D. João VI, como se fora um dos frades.]
Nasceu na Vidigueira, de família nobre, em 1631. Secularmente chamava-se António da Fonseca Soares. Por amor à pátria fez-se soldado, mas a vida dissoluta e libertina envolve-o num crime e tem que fugir para o Brasil. Entretanto regressa a Portugal e colabora na Fénix Renascida e no Postilhão de Apolo, sendo considerado um dos mais interessantes poetas do seu tempo. Após várias crises religiosas e recaídas, decide-se definitivamente pela vida religiosa, professando na Ordem Franciscana, em Évora, indo posteriormente para o Varatojo, onde desenvolve importante acção pastoral e renovadora. Aí morreu em 1682.
Tanto quanto sei, os seus poemas apenas estão disponíveis em (poucas...) antologias.
A uma dama que lhe mandou um favo de mel
Romance
Menina, este vosso favor,
favor é que não agradeço,
porque algum dano encobre
pores-me o mel pelos beiços:
Se para a cera do Favo
quereis pavio, eu prometo
dar-vos um tão bom pavio
que vos dure sempre aceso:
E é de sorte, vida minha,
que julga quem pode vê-lo,
de círio pela grandeza,
de brandão pelo bem feito:
Não cuideis que isto vale pouco
porque disse Sucarello
há parte donde às vezes
vale mais a mecha que o sebo:
Se para o vosso cortiço
quereis enxame, eu o tenho,
com tão boa abelha mestra
que não sofre zângãos dentro:
e se a crestar essa colmeia
quereis vir, não tenhais medo
deste furão que é mais doce
que o próprio mel desse termo:
Porém, amiga, ide embora,
que eu de tal favor receio
que quem favo hoje me manda
que à fava me mande cedo.
(Manuscrito da B.N.L. 8575, trasladado por Natália Correia para a Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, 1965 - 3ª edição, 1999)
Ao Cavalo do Conde de Sabugal, que fazia grandes curvetas
Galhardo bruto, teu bizarro alento
Música é nova, com que aos olhos cantas,
Pois na harmonia de cadências tantas
É clave o freio, é solfa o movimento.
Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão, que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som, e o andar concento.
Cantam teus pés, e o teu meneio pronto,
Nas fugas, não, nas cláusulas medido,
Mil consonâncias forma em cada ponto.
Pois em falsas airosas suspendido,
Ergues em cada quebro um contraponto,
Fazes em cada passo um sustenido.
(in Poesia Portuguesa do século XII a 1915, organizada por Cabral do Nascimento, Biblioteca Básica Verbo - Livros RTP, 1972)
9.7.03
4 sonetos do verão
I
Onde paira o silêncio
Adormeço a loucura do sopro,
Feliz da ronda graciosa
Pelos sítios obscuros deste tempo.
Sorrio em frente ao rochedo
Sinto alegre o tal sopro na cara
Olho sempre para depois do mar
Ouvindo os ecos das ondas.
Há mais terra a perder
Que o imenso ali à frente
Toco agora os arbustos
Que pela escarpa cheiram o sal.
O azul quente cobre-me a pele.
Voo satisfeito pelo dia seguinte.
II
Um silêncio respeitado pelas cores
Calcula o limite do incêndio
Telefona às vezes a horas tristes
E acaba sempre por ir sem paz
Raramente voltam pelos medos.
Então o tempo não respeita as marcas,
Desce em direcção ao tédio isento
E alimenta dias inteiros.
Depois vem a calma e o horizonte
Apenas vislumbrados, é certo,
Mas com uma intuição generosa.
Entretanto, deitam-se ao sol sobre a relva,
Recolhem folhas das árvores altas
E deixam-se crescer no silêncio.
III
Indiscutíveis as tristezas dos pássaros
Quando alheios se alimentam sem esforço
Recolhem com o bico o que há em abundância,
Voam por todo o lado sem restrições
Os habituais bancos de jardim soluçam
Medindo tardes inteiras à espera
Que haja esforço para buscar alimento
Assim os loucos com a sua loucura,
Embora estes consigam a alegria,
Suavíssimo dom cíclico e ritual
Impresso na metade obscura do ar
A solução é deixar os loucos voar
Oferecer aos pássaros as horas marcadas
Desses longos dias terrenos e mágicos
IV
Há uma ternura imensa que abafa a raiva,
Que deixa subir a generosidade
Até ao ponto de alcançar a utopia
Falta pouco para o verão encontrar a chuva.
Nos terraços deslizam as noites suaves
Entregues às praias cheias de calor
Só depois de deixarmos o sol enorme
Recordamos a presença que nos liberta:
A gratidão exclama-se com força;
Há gestos e vozes e gritos e danças.
Há uma estranha alegria nesta chuva
Os pés nus pisam este chão molhado
E absorvem um vapor tranquilo e puro
Na grande festa caída do céu.
Rui Almeida
I
Onde paira o silêncio
Adormeço a loucura do sopro,
Feliz da ronda graciosa
Pelos sítios obscuros deste tempo.
Sorrio em frente ao rochedo
Sinto alegre o tal sopro na cara
Olho sempre para depois do mar
Ouvindo os ecos das ondas.
Há mais terra a perder
Que o imenso ali à frente
Toco agora os arbustos
Que pela escarpa cheiram o sal.
O azul quente cobre-me a pele.
Voo satisfeito pelo dia seguinte.
II
Um silêncio respeitado pelas cores
Calcula o limite do incêndio
Telefona às vezes a horas tristes
E acaba sempre por ir sem paz
Raramente voltam pelos medos.
Então o tempo não respeita as marcas,
Desce em direcção ao tédio isento
E alimenta dias inteiros.
Depois vem a calma e o horizonte
Apenas vislumbrados, é certo,
Mas com uma intuição generosa.
Entretanto, deitam-se ao sol sobre a relva,
Recolhem folhas das árvores altas
E deixam-se crescer no silêncio.
III
Indiscutíveis as tristezas dos pássaros
Quando alheios se alimentam sem esforço
Recolhem com o bico o que há em abundância,
Voam por todo o lado sem restrições
Os habituais bancos de jardim soluçam
Medindo tardes inteiras à espera
Que haja esforço para buscar alimento
Assim os loucos com a sua loucura,
Embora estes consigam a alegria,
Suavíssimo dom cíclico e ritual
Impresso na metade obscura do ar
A solução é deixar os loucos voar
Oferecer aos pássaros as horas marcadas
Desses longos dias terrenos e mágicos
IV
Há uma ternura imensa que abafa a raiva,
Que deixa subir a generosidade
Até ao ponto de alcançar a utopia
Falta pouco para o verão encontrar a chuva.
Nos terraços deslizam as noites suaves
Entregues às praias cheias de calor
Só depois de deixarmos o sol enorme
Recordamos a presença que nos liberta:
A gratidão exclama-se com força;
Há gestos e vozes e gritos e danças.
Há uma estranha alegria nesta chuva
Os pés nus pisam este chão molhado
E absorvem um vapor tranquilo e puro
Na grande festa caída do céu.
Rui Almeida
8.7.03
JORGE LISTOPAD
Já aqui falei dele. Da outra vez esqueci-me de dar a referência do primeiro volume da sua prosa reunida. Aqui vai: Fruta tocada por falta de jardineiro, edições Quasi, 2003 (colecção Em Nome da Terra). No prefácio, Agustina Bessa-Luís diz que “não há como um humorista para ser poeta; delicioso e autêntico poeta” e explica-se: “não gosto daqueles poetas a quem, como dizia Nietzche, a dor faz cacarejar como as galinhas. Nos autênticos poetas, o humor é prova duma desilusão profunda. Algo que, por subtil, não tem nome, nem aspecto. É uma sombra da dor, mas não é dor. É como o nome de Tristão – só é triste porque foi nomeado na tristeza.”
Outono
Qualquer dia tens finalmente de contar a alguém, talvez a teu filho, ao nosso filho, refractário indivisível, que te amei muito e fazia bem amor contigo. Uma vez, hoje, tomámos banho nus, ouvimos o Requiem KV 626, trouxeste a pêra parda cozida até à água transbordante; depois vesti-me com a camisola comum e fui, vou comprar a canela para fazeres o arroz. Com a canela compro sempre um pouco de proa ao vento azul do velho barco de um oriente de estampa, criado na pátria de água doce. Ao regressar, subindo a rua, amo-te. O futuro ainda vai no adro; a leve aragem do indicativo presente ondula o ar, mas quase não há fronteiras, tempos verbais, margens, e se não houvesse as colheitas de castanhas, não sabia soube que é era será outono no outeiro chamado mais exactamente outubro segundo o calendário gregoriano.
Cavalos
Os cavalos são amigos se forem muitos ou pelo menos mais que dois. Com um só cavalo não sei como falar. Com vários cavalos tudo é fácil, trocamos ao de leve as experiências da vida, queixamo-nos um pouco, rimos também, é preciso saber que os cavalos não gostam de todos os cavaleiros nem de todos os carros que os seus avoengos puxavam, de igual forma eu não gosto de todos os que em mim mandam nem de todas as pastas e dossiers que trago.
Ao fim da tarde despedimo-nos, cada qual irá em sua direcção, se calhar, vou beber chá feito por mim e os cavalos, é verdade, não sei se estarão condenados à palha doirada um pouco desdoirada. Hei-de perguntá-lo amanhã de manhã. Amanhã.
Chuva
Vamos acordar de manhã e estar mortos. Será tudo ainda mais leve e perguntarás: «Queres o pequeno almoço?» E eu, mais tarde: «Daremos parte do acontecimento aos nossos amigos?» E tu: «Quais?»
Não nos será difícil descer a rua. Vamos então lembrar-nos de que é mês de Agosto, em Lisboa, apesar do chuvisco suíço.
«Quantos dedos tem a chuva? Muitos?»
«Cinco», digo.
«Só?»
«Em cada mão.»
«Apanha-se bom ar». Pego os teus dedos com desapego. Dedos de yoga.
Iremos. Leves. Em simpatia térmica com tudo. A paz finalmente. A administração frugal: excepcionalmente banal, como a saudade de corpo e alma sem regresso e sem perspectiva além dessa rua longa, estreita, irregular, de natureza boa e segura.
Continuará a chover mas não vamos ficar molhados. As frases curtas, sempre mais curtas. Mais curtas. Curtas.
Acabo a perguntar: «Escrevo tudo isto?»
Escrevo no meio da cidade silenciosamente percorrida, com chuva a cair nas artes gráficas.
(de primeiro testamento, edições rolim, 1985 - colecção A Hora do Lobo)
Já aqui falei dele. Da outra vez esqueci-me de dar a referência do primeiro volume da sua prosa reunida. Aqui vai: Fruta tocada por falta de jardineiro, edições Quasi, 2003 (colecção Em Nome da Terra). No prefácio, Agustina Bessa-Luís diz que “não há como um humorista para ser poeta; delicioso e autêntico poeta” e explica-se: “não gosto daqueles poetas a quem, como dizia Nietzche, a dor faz cacarejar como as galinhas. Nos autênticos poetas, o humor é prova duma desilusão profunda. Algo que, por subtil, não tem nome, nem aspecto. É uma sombra da dor, mas não é dor. É como o nome de Tristão – só é triste porque foi nomeado na tristeza.”
Outono
Qualquer dia tens finalmente de contar a alguém, talvez a teu filho, ao nosso filho, refractário indivisível, que te amei muito e fazia bem amor contigo. Uma vez, hoje, tomámos banho nus, ouvimos o Requiem KV 626, trouxeste a pêra parda cozida até à água transbordante; depois vesti-me com a camisola comum e fui, vou comprar a canela para fazeres o arroz. Com a canela compro sempre um pouco de proa ao vento azul do velho barco de um oriente de estampa, criado na pátria de água doce. Ao regressar, subindo a rua, amo-te. O futuro ainda vai no adro; a leve aragem do indicativo presente ondula o ar, mas quase não há fronteiras, tempos verbais, margens, e se não houvesse as colheitas de castanhas, não sabia soube que é era será outono no outeiro chamado mais exactamente outubro segundo o calendário gregoriano.
Cavalos
Os cavalos são amigos se forem muitos ou pelo menos mais que dois. Com um só cavalo não sei como falar. Com vários cavalos tudo é fácil, trocamos ao de leve as experiências da vida, queixamo-nos um pouco, rimos também, é preciso saber que os cavalos não gostam de todos os cavaleiros nem de todos os carros que os seus avoengos puxavam, de igual forma eu não gosto de todos os que em mim mandam nem de todas as pastas e dossiers que trago.
Ao fim da tarde despedimo-nos, cada qual irá em sua direcção, se calhar, vou beber chá feito por mim e os cavalos, é verdade, não sei se estarão condenados à palha doirada um pouco desdoirada. Hei-de perguntá-lo amanhã de manhã. Amanhã.
Chuva
Vamos acordar de manhã e estar mortos. Será tudo ainda mais leve e perguntarás: «Queres o pequeno almoço?» E eu, mais tarde: «Daremos parte do acontecimento aos nossos amigos?» E tu: «Quais?»
Não nos será difícil descer a rua. Vamos então lembrar-nos de que é mês de Agosto, em Lisboa, apesar do chuvisco suíço.
«Quantos dedos tem a chuva? Muitos?»
«Cinco», digo.
«Só?»
«Em cada mão.»
«Apanha-se bom ar». Pego os teus dedos com desapego. Dedos de yoga.
Iremos. Leves. Em simpatia térmica com tudo. A paz finalmente. A administração frugal: excepcionalmente banal, como a saudade de corpo e alma sem regresso e sem perspectiva além dessa rua longa, estreita, irregular, de natureza boa e segura.
Continuará a chover mas não vamos ficar molhados. As frases curtas, sempre mais curtas. Mais curtas. Curtas.
Acabo a perguntar: «Escrevo tudo isto?»
Escrevo no meio da cidade silenciosamente percorrida, com chuva a cair nas artes gráficas.
(de primeiro testamento, edições rolim, 1985 - colecção A Hora do Lobo)
6.7.03
[Passei a manhã deste Domingo no Museu Nacional de Arte Antiga, aproveitando a borla.]
JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
nasceu no Bombarral em 1943. Tem cerca de 40 livros publicados, entre poesia, ficção e reflexão/ensaio sobre arte.
São surpreendentes e subversivos estes poemas. Aliam a atenção aos pormenores e o erudito conhecimento das obras e seu contexto a uma imaginação não fantasiosa.
João Miguel Fernandes Jorge desvia-nos do mero pitoresco e do factual para nos remeter para uma dimensão mais profunda das obras sem pretender estabelecer roteiros ou interpretações formais.
DESCIDA DA CRUZ
Fez-se homem para que nos aproximássemos da ideia
de deus;
manifestou-se através de um corpo para que recebêssemos
a ideia do pai invisível;
suportou as injúrias do homem para que pudéssemos herdar
a imortalidade.
E perdemos o olhar no horizonte;
uma lama podre a oriente e no ocidente.
/círculo de Quentin Metsys, 1510-20/
OS FUMADORES
A bolsa de cabedal está cheia de bom tabaco holandês.
Levaram-me para a lareira onde ardia um lume
de teixo. Em grande sertã de cobre frigiam os peixes
e uma espécie de pão. A um canto mais escuro
uma candeia,
mas dava para ver: o homem mijava de encontro à parede
e logo um outro se lhe seguiu. A taberna cheirava à
humidade marítima e a tabaco; o meu dedo polegar
calcou o que me ofereceram e acendi-o com uma acha
erguida do lume.
O escuro da sala e o fumo dos cachimbos cedia a todos
esses homens pesados corpos amassados de vento e areia
das dunas: confundiam-se com um ponto de luz que
reflecte no vidrado de um pote de grés, numa garrafa
que se esvaziou com um som de límpido claro-escuro flamengo. Fumam. Como
quem confia as preocupações a um amigo
para depois se sentir como quem viu sonhos na sua noite.
/David Téniers, 2ª met. Séc. XVII/
ARCANJO S. MIGUEL
Miguel, o anjo, calcário branco de placidez.
Era pelo S. Miguel e o Outono tinha já iniciado
a descida dos seus vermelhos escuros. A banda
do Carvalhal percorreu a vila e tocava na gare
da estação. As crianças da escola vestiam as
batas brancas e tinham nas mãos ramos de flores.
O comboio entrou na estação ao som de uma marcha.
Não sei quem vai chegar. Não sei quem vai partir
pelos anos cinquenta do século passado
neste meu sonho recorrente.
Não me vejo entre essas crianças, mas reconheço
alguns rostos.
A locomotiva entra na gare. Pesada. Envolta
em fumo. As vinhas, vermelho castanho macerado
sobrepõem-se à toada monótona da banda: procura
dar alegria ao espaço de toda a gare; não
consegue.
Era pelo fim de setembro. Pelo S. Miguel: o
plexus solar incendeia todo o peito
desde o triângulo divino. A música desce, cai
como se fosse chuva, fria, muito fria
sobre a aldeia da vila,
como quem enterra, brutal,
um prego no meio dos olhos.
/esculturas portuguesas, séc. XV e XVIII/
CADEIRA DE SECRETÁRIA
Cadeira de secretária -
na sua forma de cadeira reside o que de mais
sedutor existe no mobiliário ocidental; trago alguns
dos meus versos na sua imagem: cadeira Mic Mac,
as cadeiras de Beuys e de Scott Burton: uma, erguida
ao peso dos embutidos,
simuladas as outras duas, metafísicas, ao peso do cimento
e da pedra; cadeira de van Gogh; cadeira da filosofia da
pergunta,
trono tibetano dourado de James Lee Byars.
Cadeira de secretária -
entre ela e a vizinha cadeira de barbear, e também de
secretária, hesito - estão na mesma sala do museu.
Cadeira de secretária -
na masculinidade da sua forma
o corpo vai sentar-se, as pernas estendem-se
os colhões repousam no recortado rebordo do assento
almofadada reentrância disposta a receber o viril
bolário
quando as pernas descansam e a mão sustém, sobre o papel
de carta
setecentista pena.
/Madeira de Gonçalo-Alves, 3º quartel, séc. XVIII/
(de Museu das Janelas Verdes, Relógio d'Água, 2002)
JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
nasceu no Bombarral em 1943. Tem cerca de 40 livros publicados, entre poesia, ficção e reflexão/ensaio sobre arte.
São surpreendentes e subversivos estes poemas. Aliam a atenção aos pormenores e o erudito conhecimento das obras e seu contexto a uma imaginação não fantasiosa.
João Miguel Fernandes Jorge desvia-nos do mero pitoresco e do factual para nos remeter para uma dimensão mais profunda das obras sem pretender estabelecer roteiros ou interpretações formais.
DESCIDA DA CRUZ
Fez-se homem para que nos aproximássemos da ideia
de deus;
manifestou-se através de um corpo para que recebêssemos
a ideia do pai invisível;
suportou as injúrias do homem para que pudéssemos herdar
a imortalidade.
E perdemos o olhar no horizonte;
uma lama podre a oriente e no ocidente.
/círculo de Quentin Metsys, 1510-20/
OS FUMADORES
A bolsa de cabedal está cheia de bom tabaco holandês.
Levaram-me para a lareira onde ardia um lume
de teixo. Em grande sertã de cobre frigiam os peixes
e uma espécie de pão. A um canto mais escuro
uma candeia,
mas dava para ver: o homem mijava de encontro à parede
e logo um outro se lhe seguiu. A taberna cheirava à
humidade marítima e a tabaco; o meu dedo polegar
calcou o que me ofereceram e acendi-o com uma acha
erguida do lume.
O escuro da sala e o fumo dos cachimbos cedia a todos
esses homens pesados corpos amassados de vento e areia
das dunas: confundiam-se com um ponto de luz que
reflecte no vidrado de um pote de grés, numa garrafa
que se esvaziou com um som de límpido claro-escuro flamengo. Fumam. Como
quem confia as preocupações a um amigo
para depois se sentir como quem viu sonhos na sua noite.
/David Téniers, 2ª met. Séc. XVII/
ARCANJO S. MIGUEL
Miguel, o anjo, calcário branco de placidez.
Era pelo S. Miguel e o Outono tinha já iniciado
a descida dos seus vermelhos escuros. A banda
do Carvalhal percorreu a vila e tocava na gare
da estação. As crianças da escola vestiam as
batas brancas e tinham nas mãos ramos de flores.
O comboio entrou na estação ao som de uma marcha.
Não sei quem vai chegar. Não sei quem vai partir
pelos anos cinquenta do século passado
neste meu sonho recorrente.
Não me vejo entre essas crianças, mas reconheço
alguns rostos.
A locomotiva entra na gare. Pesada. Envolta
em fumo. As vinhas, vermelho castanho macerado
sobrepõem-se à toada monótona da banda: procura
dar alegria ao espaço de toda a gare; não
consegue.
Era pelo fim de setembro. Pelo S. Miguel: o
plexus solar incendeia todo o peito
desde o triângulo divino. A música desce, cai
como se fosse chuva, fria, muito fria
sobre a aldeia da vila,
como quem enterra, brutal,
um prego no meio dos olhos.
/esculturas portuguesas, séc. XV e XVIII/
CADEIRA DE SECRETÁRIA
Cadeira de secretária -
na sua forma de cadeira reside o que de mais
sedutor existe no mobiliário ocidental; trago alguns
dos meus versos na sua imagem: cadeira Mic Mac,
as cadeiras de Beuys e de Scott Burton: uma, erguida
ao peso dos embutidos,
simuladas as outras duas, metafísicas, ao peso do cimento
e da pedra; cadeira de van Gogh; cadeira da filosofia da
pergunta,
trono tibetano dourado de James Lee Byars.
Cadeira de secretária -
entre ela e a vizinha cadeira de barbear, e também de
secretária, hesito - estão na mesma sala do museu.
Cadeira de secretária -
na masculinidade da sua forma
o corpo vai sentar-se, as pernas estendem-se
os colhões repousam no recortado rebordo do assento
almofadada reentrância disposta a receber o viril
bolário
quando as pernas descansam e a mão sustém, sobre o papel
de carta
setecentista pena.
/Madeira de Gonçalo-Alves, 3º quartel, séc. XVIII/
(de Museu das Janelas Verdes, Relógio d'Água, 2002)
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