8.7.03

JORGE LISTOPAD
Já aqui falei dele. Da outra vez esqueci-me de dar a referência do primeiro volume da sua prosa reunida. Aqui vai: Fruta tocada por falta de jardineiro, edições Quasi, 2003 (colecção Em Nome da Terra). No prefácio, Agustina Bessa-Luís diz que “não há como um humorista para ser poeta; delicioso e autêntico poeta” e explica-se: “não gosto daqueles poetas a quem, como dizia Nietzche, a dor faz cacarejar como as galinhas. Nos autênticos poetas, o humor é prova duma desilusão profunda. Algo que, por subtil, não tem nome, nem aspecto. É uma sombra da dor, mas não é dor. É como o nome de Tristão – só é triste porque foi nomeado na tristeza.”

Outono

Qualquer dia tens finalmente de contar a alguém, talvez a teu filho, ao nosso filho, refractário indivisível, que te amei muito e fazia bem amor contigo. Uma vez, hoje, tomámos banho nus, ouvimos o Requiem KV 626, trouxeste a pêra parda cozida até à água transbordante; depois vesti-me com a camisola comum e fui, vou comprar a canela para fazeres o arroz. Com a canela compro sempre um pouco de proa ao vento azul do velho barco de um oriente de estampa, criado na pátria de água doce. Ao regressar, subindo a rua, amo-te. O futuro ainda vai no adro; a leve aragem do indicativo presente ondula o ar, mas quase não há fronteiras, tempos verbais, margens, e se não houvesse as colheitas de castanhas, não sabia soube que é era será outono no outeiro chamado mais exactamente outubro segundo o calendário gregoriano.

Cavalos

Os cavalos são amigos se forem muitos ou pelo menos mais que dois. Com um só cavalo não sei como falar. Com vários cavalos tudo é fácil, trocamos ao de leve as experiências da vida, queixamo-nos um pouco, rimos também, é preciso saber que os cavalos não gostam de todos os cavaleiros nem de todos os carros que os seus avoengos puxavam, de igual forma eu não gosto de todos os que em mim mandam nem de todas as pastas e dossiers que trago.
Ao fim da tarde despedimo-nos, cada qual irá em sua direcção, se calhar, vou beber chá feito por mim e os cavalos, é verdade, não sei se estarão condenados à palha doirada um pouco desdoirada. Hei-de perguntá-lo amanhã de manhã. Amanhã.

Chuva

Vamos acordar de manhã e estar mortos. Será tudo ainda mais leve e perguntarás: «Queres o pequeno almoço?» E eu, mais tarde: «Daremos parte do acontecimento aos nossos amigos?» E tu: «Quais?»
Não nos será difícil descer a rua. Vamos então lembrar-nos de que é mês de Agosto, em Lisboa, apesar do chuvisco suíço.
«Quantos dedos tem a chuva? Muitos?»
«Cinco», digo.
«Só?»
«Em cada mão.»
«Apanha-se bom ar». Pego os teus dedos com desapego. Dedos de yoga.
Iremos. Leves. Em simpatia térmica com tudo. A paz finalmente. A administração frugal: excepcionalmente banal, como a saudade de corpo e alma sem regresso e sem perspectiva além dessa rua longa, estreita, irregular, de natureza boa e segura.
Continuará a chover mas não vamos ficar molhados. As frases curtas, sempre mais curtas. Mais curtas. Curtas.
Acabo a perguntar: «Escrevo tudo isto?»
Escrevo no meio da cidade silenciosamente percorrida, com chuva a cair nas artes gráficas.

(de primeiro testamento, edições rolim, 1985 - colecção A Hora do Lobo)

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