28.6.03

esquecer o sal e os dias
o vento distante
e o rosto de alguém

*

que bom o inverno
de já ser quase primavera
e árvores ainda sem folhas

*

poeta de voz irregular
as palavras que semeias
restos de cinzas

*

olhar logo por dentro
um rio profundamente navegável
algas e peixes

Rui Almeida
DOIS POETAS ÁRABES QUE FALAM FRANCÊS

TAHAR BEN JELLOUN
nasceu em Fez, em 1944

Crianças apaixonadas pela terra
caminham pé descalço sobre a húmida greda
o destino delineado
na asa do pássaro migrante

Ao longe
o dia debruça-se para apagar a pobreza
e amontoar os figos secos da morte

*

O muro
vestido de cal
conta os dias retidos na pedra
envergonhado
esconde a miséria e a mão que se ergue

(de Arzila / Estação de Espuma – Hiena Editora, 1987 – Colecção Águas Doidas, Trad. de Al Berto)


SALAH STÉTIÉ
nasceu em Beirute, capital do Líbano, em 1929. Apesar de a sua língua materna ser o árabe, escolheu o francês para se exprimir na poesia. Ocupou cargos diplomáticos em várias cidades do mundo. Recebeu em 1995 o Grand Prix de la Francophonie.

Agulha

Estrangeiros conversando sem palavras em todas as varandas da noite
A morte espera no buraco das agulhas
Mas as rosas prudentes abandonaram este círculo
Na sua longa verdade
Pensamento sem anjos
Onde surjo de costas moídas, aparafusadas às cadeiras
De olho faminto na cabeça estilhaçada
Rosto e corpo sob os duros ditames da chuva

Densidade

Atrás das cortinas de árvores
Fica a densidade da lâmpada
Sustentada pela fragilidade

E os homens de sonho
Levam a lâmpada trabalhada pelas suas lágrimas
Por um bosque de poeira
Seus dedos subitamente prudentes
Sobre uma estrela de sombra
Onde corre uma fonte vazia.

Água – 2

É preciso dormir minha cabeça que te acostumes
Aos ramos da noite cruzados sobre o teu destino
À própria ansiedade de sucumbir no mar
Alumiado por veleiros grandes e selvagens

É preciso dormir e desancorar o coração
Ele em traje de mar e tu profunda
Com os teus degraus ainda alegres
Instrumentos de sangrenta festa

É preciso dormir e que os teus degraus
Derramem a sua carga na água nocturna
E regressar com o coração ao seio
De uma festa sem instrumentos ou veleiros

(de Falando só com a pedra – Tradução colectiva revista e prefaciada por Fernando Guimarães, no âmbito de um “seminário de tradução colectiva” da Fundação Casa de Mateus, em Abril de 1999, Quetzal editores, 2000)
JOSÉ BAÇÃO LEAL
(Lisboa - 01-07-1942 / Nampula - 01-09-1965)

Noite
Se tivesses boca e fosses mulher
conheceria o morrer de amor

*

Absoluta e contente

vem ao encontro dos meus gestos
e dos meus silêncios de pedra

as nuvens
morrem nas fendas do vento

e eu morro nos gritos da terra.

*

Amor... um dia
terei de beijar o vidro rasgado
terei de moldar um passado.
Mas nesse dia não chores
espera que eu surja entre a bruma
com o corpo envolto em espuma.

Transforma as certezas
em flores murchas na madrugada
em gritos de sangue numa evasão

Depois para teu bem
e enquanto esperas que chegue alguém
vai falando de mim
como se eu continuasse a viver
e o morrer não fosse o fim

*

Ah vazio! eterno vazio!
vais-me matando aos poucos
estou farto de não viver
não tarda estarei louco
ou morto sem morrer

[poemas retirados de um livro de 1966, sem título, compilado por amigos do autor que referem: "Estas poesias foram-nos cedidas pela Mãe do Zé que carinhosamente as recolheu de rascunhos que ele deitava fora"]
CLÃ
[uma banda fantástica na música, nas letras, nos instrumentos e sobretudo na Voz da Manuela Azevedo. Há uma página não oficial. Ficam dois exemplos da sua imaginação delirante.]


DO MESMO CLÃ (versão alternativa)
Letra: Luís G. Claro / Hélder Gonçalves

Nós somos do mesmo clã
(...)
Nós queremos ser citados por uma fonte luminosa
Tomar banho nas margens do erro
Flutuar na banheira de Arquimedes
Meter a ironia do destino na carta para Garcia
E se ele não estiver, esquecê-la num marco histórico

Nós queremos curar o calcanhar de Aquiles
Atingir o princípio de Peter do lado do poente
Subir a escala de Richter numa gôndola
Tocar na buzina do Harpo Marx
Soltar a risada de Bugs Bunny
Conduzir a locomotiva de Pamplinas em direcção ao Futuro

Nós queremos a bengala de Charlot,
O passaporte de Fernão Mendes Pinto,
Comprar cigarros na mesma tabacaria de Fernando Pessoa,
Fugir de uma Fuga de Bach,
Ouvir a voz de Salomão propôr uma amnistia
Para o Otelo de Shakespeare

Nós queremos saber onde param os violinos de Chopin
Nós exigimos saber o porquê do sorriso de Gioconda
Não queremos saber quem são os dois amores
De Marco Polo do Oriente
Muito menos quem matou Laura Palmer
Porque nós não temos medo do SIS
Muito menos de Virginia Woolf


CONCURSO DO MÉTODO
Letra: Carlos Tê

Bem-vindos ao estúdio
onde vai ter lugar
mais uma sessão do concurso do método
mas antes do prelúdio
um breve interlúdio
para a publicidade

Caro telespectador não faça zap
porque nós vamos saber
o olho do grande irmão que em sua casa o vigia
toda a noite, todo o dia
e arrisca-se a perder
o direito de concorrer
ao grande concurso do método

e a pergunta é:
qual é o método que usa para consumir?

sonha por catálogo da t.v. shop
ou prefere atendimento personalizado
faça uma frase, uma prosa, um poema
e você, aí em casa, basta 1 telefonema
e ganha um 1 viagem ao pais dos iglôs,

a Guadalupe, Bermudas e Barbados,
à Lapónia, ao Alaska, aos eternos congelados
e ganha ainda a fantástica
máquina de descascar desejos
... e eis a brilhante vencedora
a D. Berta da Amadora!!!
(O Concurso do Método tem o patrocínio dos
electrodomésticos GRUNFT. Dirija-se a qualquer loja
GRUNFT e adquira já qualquer um dos magníficos
electrodomésticos da gama GRUNFT. GRUNFT com
GRUNFT porque grunfta melhor. GRUNFT!!)

quando passo numa montra onde tudo é tão bonito
entro logo, faço a compra
vejo logo necessito
eu sinto a falta do tudo

ao que é novo não resisto
só estou bem a consumir e se consumo logo existo
é assim quando consumo
o Visa corre entre carris
sinto-me assim não sei como, a modos que leve e feliz
prazer puro, entusiasmo

dura pouco, vai para o lixo
muito perto do orgasmo
muito além do capricho

(E leve ainda 101 contos para pôr no seu porquinho
mealheiro. Mais uma magnífica e inultraprassável oferta
das lojas GRUNFT!)
SEBASTIÃO UCHOA LEITE
«A poesia é necessária

Um dos mais importantes poetas brasileiros contemporâneos, o pernambucano Sebastião Uchoa Leite nasceu em 1935, na pequena cidade de Timbaúba. Cresceu no Recife e transferiu-se para o Rio (onde vive até hoje) em 1965, cinco anos depois de estrear na poesia, com Dez sonetos sem matéria. Desde então, já publicou 10 livros. O último, A regra secreta, recém-lançado pela editora Landy. Uchoa Leite publicou ainda Obra em dobras (Editora Duas Cidades), que engloba seus seis primeiros livros, A uma incógnita (Iluminuras), A ficção vida (Editora 34) e A espreita (Perspectiva). O poeta já recebeu dois prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro: um pelo livro de poemas Antilogia e outro pela tradução de Poesia, de François Villon. Sua poesia mistura universos como quadrinhos, cinema, jornal diário, música erudita e popular, literatura sofisticada e romance policial, numa linguagem ao mesmo tempo coloquial e rigorosa. A mistura, temperada por boa dose de auto-ironia, resulta personalíssima. Tradutor de mais de 20 livros, publicou também os ensaios Participação da palavra poética, Crítica clandestina e Jogos e enganos».

memória das sensações 4: vertigo 3

A
VER
TI
GEM
É
UMA
LIN
GUA
GEM
DA
MAR
GEM
OU
UMA
FOR
MA
DE
NÃO
PO
DER
DA
LIN
GUA
GEM
DO
COR
PO

antimétodo 2

Pouco a pouco
Embaralho tudo e nada
Sou meu próprio
Espantalho
Fujo
De mim mesmo
Finjo-me
Da minha própria
Esfinge
Perdido em meu próprio
Labirinto
Sou o que sou
Ou minto? Será isso
Uma regra secreta?

[21/DEZ/2002]

[ficam aqui estes textos que eu retirei (talvez em Janeiro...) da edição on-line de um jornal brasileiro, mas não me lembro qual, nem sequer do nome do autor da apresentação]

27.6.03

Este blog corre o risco de ficar conhecido (mas por quem???) como o blog da rã...
Eis mais uma recriação do poema do nosso Bashô, da autoria de Nuno Travanca:

velha rã

que saltas ao tanque

em estrondo aquático

26.6.03

«17 de Junho – Diário imaginário . … Nada. Ainda hoje esquecemos que somos felizes. Nada. Esquecemos que somos felizes ainda hoje…»

[Selecciono isto do meu blog favorito que não é destes da internet; é em papel de jornal e vem quinzenalmente na última página do Jornal de Letras – chama-se Debate-Papo. Quem o faz é um senhor nascido em Praga, na então Checoslováquia (e que agora é a capital da República Checa), que aprendeu português em seis meses, lendo o Crime do Padre Amaro sem dicionário. Escreve contos, teatro, poesia e é encenador. (aliás publicou recentemente o 1º volume da sua prosa reunida, nas Edições Quasi)

É Jorge Listopad.

É ele também o responsável pelo melhor refúgio dos jornais nacionais: um espaço com 5 cm de largura e altura variável, com fundo negro e um coelhinho branco, onde não se dão informações nem opiniões, não se fala mal nem bem, efémero e sem pretensões estéticas ou filosóficas. Indispensável!!]
«RAMÓN GÓMEZ DE LA SERNA,
ou simplesmente Ramón, como toda a Europa e América Latina artísticas o conheceram nos anos 20 e 30, nasceu em Madrid em 1888. (…) Obra imensa – de todos os géneros que existiam e que não existiam (…) Com Chaplin e Pitigrilli, foi o único estrangeiro admitido na Academia de Humor Francesa. E Valéry Larbaud, que poucas vezes se enganou, dele disse: “Com Proust e Joyce é um dos maiores escritores do século XX”. Em 1936, com o deflagrar da Guerra Civil, parte para Buenos Aires onde conhecera Luisa Sofovitch que o acompanhou até à morte em 1963»

GREGUERÍAS

Como dava beijos lentos, duravam-lhe mais os amores.

*

Sofá-cama: os sonhos ficam em baixo, a conversa em cima

*

Amor é acordar uma mulher e ela não se irritar

*

As palmeiras levantam-se mais cedo do que as outras árvores.

*

Velho actor: deixou uma dentadura que declamava Shakespeare.

*

Os rios não conhecem os seus nomes.

*

A gaivota rema ao voar.

*

O ferro eléctrico parece servir café às camisas

*

O capitalista é um senhor que, quando fala connosco, nos fica com os fósforos

*

Quando temos uma manga descosida e enfiamos o braço entre o forro e o tecido, extraviamo-nos pelo caminho dos manetas

*

A lua é o espelhinho com que o sol se entretém de noite a inquietar os olhos da terra.

[escolha feita a partir da selecção de Jorge Silva Melo, de quem também são a tradução e a introdução de onde tirei os excertos biográficos – Assírio & Alvim, 1998 – Colecção Gato Maltês]

25.6.03

Um dos museus mais bonitos da cidade de Lisboa não cobra entradas à segunda feira, exactamente o dia em que os outros todos estão fechados.
Trata-se do Museu da Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva.
Vale a pena lá ir: a exposição permanente nunca perde interesse e as temporárias são sempre de grande qualidade.

Fez no domingo oito dias, terminou uma exposição belíssima com gravuras de Marc Chagall e agora estão lá as obras integradas no prémio Celpa / Vieira da Silva.
O prémio Consagração foi atribuído a Jorge Martins e estão expostas obras seleccionadas pelo próprio. É particularmente significativo um conjunto de quadros de 1975/76 representando o World Trade Center (esse mesmo: as torres gémeas) - NYC WTC BY LIGHT.
O prémio Revelação é de facto revelador de que a arte continua a ser significativa. O prémio foi atribuído a Adriana Molder e além disso estão representados outros artistas.
Vale a pena lá ir frequentemente.
Eu à segunda aproveito para lá ir à hora de almoço. Só me admiro de lá estar sempre tão pouca gente, apesar da borla.

[como digo, o Arpad - Vieira é um dos mais bonitos museus de Lisboa, mas a qualquer dos que conheço se poderia aplicar a expressão]

24.6.03

Entretanto, começam a chegar novas versões do poema de Bashô (10.6.03). Por enquanto fica aqui esta de alguém que assina sous_entendus:

hum
hum |____| velho
yeah
rã mergulha
splashhhhhh
ANA MARQUES GASTÃO
Nasceu em 25 de Agosto de 1962.
É redactora cultural do DN.
A propósito do primeiro livro dela António Osório diz: «Aqueles que se amam têm segredos e felinas designações. O seu reino é o da juventude do mundo. A paixão autêntica dá o encanto a esta poesia: eis um livro que nos conta uma história de amor, e as suas ditosas, repetíveis palavras.»

Ruídos, pressentimentos, sussurros, escuridão.
Lamento, ira, suor, apaziguamento.
Também se tocam sinos pelos abatidos.
Quem sabe se encontrarei um porto?

Cidade meia-desperta, cais atónito.
Chegam, subtis, os comboios do destino.
Partem flutuando como alma da vida
para longínquas paragens – a ilha.

Vós que vos vedes como navios à deriva,
encontrai no medo espumoso do incerto
o quebrar dos ossos deste ser,
poeira disforme de um corpo sem direcção.

Dentro de mim o cadáver do outro
embala-me num futuro sem agenda.
Dentro de mim a evidência, a terna evidência
de que a metafísica é estar-se calado.

(de Tempo de Morrer Tempo para Viver, Universitária, 1998)

*

Então
a palavra pranto
ergueu-se íngreme
até ao riso.

Repouso
ó mãe
minha morte
em teu colo.

(de Terra Sem Mãe, Gótica, 2001)

*

N

E eu era frágil fardo
deus suave partida
a saída do imediato.

Nada é, tudo é
na estridência
de se estar vivo.

(de O SILÊNCIO DE DEUS, in TRÊS VEZES DEUS, Assírio e Alvim, 2001)

*

Não é o coração

Não é o coração
mas esta carne
em seu rumor.

Não é o coração
mas teu silêncio
de intenso furor.

Não é o coração
mas as mãos
sem corpo, vazias.
Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desequilíbrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo.

(de Nocturnos, Gótica, 2002)
SEBASTIÃO ALBA
«Era um poeta e vivia na rua, como um mendigo, por opção, para não ser cúmplice. Tinha o nome nas enciclopédias mas os seus haveres eram um saco de plástico com papéis, um pão e uma garrafa de vinho, e um rádio a pilhas sempre sintonizado na Antena 2.» (PAULO MOURA, in Público, 20 de Novembro de 2000)

Nasceu em Braga em 1940.
Sebastião por parte da Mãe, Alba por parte do Pai. (Nome civil: Dinis Albano Carneiro Gonçalves)
Vai, aos 9 anos, com a família para Moçambique. Cresce, é condenado por deserção e após a independência ocupa um lugar oficial que abandona por incompatibilidades. Regressa em 1983 a Braga, mas muda-se durante cinco anos para Miratejo, voltando depois definitivamente à cidade natal.
Entretanto escreveu poemas, teve duas filhas, ganhou prémios e foi uma referência para a juventude.
Morreu no ano 2000, atropelado. Pouco antes tinha escrito um bilhete ao poeta Virgílio Alberto Vieira: “Se um dia encontrarem morto ‘o teu irmão Dinis’, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá.”

«Uma palavra que está sempre na boca transforma-se em baba»
Provérbio Burundi

Deixa entrar no poema
alguns clichés.

Submetidos à experiência inefável,
sua carga (eléctrica?)
escoar-se-á.

Não há uma vala comum para as palavras
decaídas,
um dicionário no inferno;

mas deixa-as vir à tona
da claridade,
e nada lhes insufles. Vê:

não suportam a beleza
que as circunda, abismam-se
em seu ridículo.

(de A NOITE DIVIDIDA, 1981)

*

Porque dos mortos
se incumbem as estrelas
da guerra e da paz
basta para meu enredo

que de manhã a noite abra
o seu redil de sombras
uma delas me fareje
e se estenda a meus pés

e ali tose um caracol
suas verdes minúcias
levando às costas
a maciça cabriola.

(de O LIMÍTE DIÁFANO, 1996/2000)

[a maior parte da sua poesia está acessível nas colectâneas: A Noite Dividida, Assírio & Alvim, 1996 e Uma Pedra ao Lado da Evidência, Campo das Letras, 2000]

23.6.03

«Tenho vulcões nos gestos cautelosos»
Ana Marques Gastão


Admito o silêncio e a bravura,
mas aperto a força. Contenho-me e
facilito o olhar, reparo nas
trevas e conservo o aço. Aperto a
força e a fraqueza. Contemplo o ar
depois de respirado. Aceno às folhas
tristes
do Inverno e deixo-me rebolar no
horizonte. Espero a saudade em vão.
Enquanto me prendo à facilidade,
acerto algumas nuvens num céu de
pássaros parados sem sombra que
passe por aqui.

É a sede que mata a sede.

Rui Almeida
FRANCISCO JOSÉ VIEGAS
Nasceu em 1962, em Março no Alto Douro, Vila Nova de Foz Côa.
Percebe-se que gosta de fazer as coisas que faz: divulgar a escrita, a leitura e o bom gosto (nomeadamente em programas de televisão, na imprensa, na rádio e na internet); dirigir boas revistas (foi director da Ler uma data de anos e agora é da Grande Reportagem); escrever prosa (é provocatória a sua insistência nos policiais...) e poesia.

Ficam aqui dois poemas que não podem ajustar contas com o meu juízo nem com o do autor, mas aqui ficam...
[é que “Poesia é sempre outra coisa, fica sempre mais além. O verso ideal, por isso, não devia escrever-se.” - como diz o próprio FJV]

Quatro estações

como as luzes da cidade nossos olhos se acendem
meu amor. cai o teu braço sobre o meu braço.
vê como tudo amadurece de passagem como a flor
se muda em fruto como se chora pelo primeiro namorado

e como o dizê-lo nos custa. vê como o campo se muda
em montanha e o rio em água apenas e pedra
vê como é mudo o nascer das árvores o seu crescer
a monda do milho. vê como o calor sucede

ao fogo do inverno à neve que desce para o vale.
cai o teu braço sobre o meu braço. as uvas estão
no cesto entras na minha casa na minha
janela na minha cama vê como cai o teu braço

Sabedoria

gostava de saber dizer-te como se vem de longe
num pincel de rembrandt desde os lugares do junco
ou da selva ou da água ou só do norte e da neve

e nos sentamos aqui sob o azul dos plátanos: um
murmúrio incessante do mover das aves

suave é esta a sabedoria
conhecer os instantes gomo a gomo como um fruto
ainda verde a querer despontar iluminar-se e colhê-lo
breve nos nossos dedos inteiro

e sob a nossa voz a nossa boca o nosso olhar
não estar nenhum rumor nenhum silêncio nenhum gesto

(de fascínio da monotonia, FAZER, publicações livres, 1982)


Segredo final
[Lev. 20, 10]

Há uma estranha contiguidade entre tudo,
a crueldade e o ruído das velas nos moinhos.
Corredores profundíssimos prolongam a imagem
da sombra, a nitidez da clausura, o lugar

das redes abandonadas. Há uma estranha
contiguidade entre a paixão e a sua culpa,
a sede da alegria e a adoração da morte.

(de As Imagens, Caminho, 1987)

22.6.03

ANTÓNIO BARAHONA
Nasceu em Lisboa em 1939.
Peregrino, tem estado em muitos lugares.
Dele diz o Pe. Peter Stilwell: «Barahona nasceu poeta, sensível ao mistério das palavras, que saboreia e pesa uma a uma um trabalho de minúcia. A este talento acrescentou ainda um percurso singular. Seguiu caminhos estranhos aos “doutores da lei”. Mas quem sabe se o tempo não provará terem sido bafejados pela acção do Espírito?»
Publica livros de poesia desde 1961.

Fascinação

Este Verão é escaldante, porque o vinho
aquece os olhos, quando te contemplo
a beber, vagarosa, trago a trago,
plo mesmo copo fino onde te bebo:
a ti e ao teu segredo tão tremendo
que tremo d’escondê-lo de mim próprio,
com medo de ser outro o meu destino
que não seja morrer porque te amo

Mas de nada estou certo, nem do Verão
de súbito gelado à flor do fogo,
se te toco, ao de leve, só num dedo,
ao me passares o teu cigarro húmido

No filtro, os teus lábios é que eu mordo
e aspiro, boca a boca, o som do fumo

Lx., 5.VIII.90

(de UM LIVRO ABERTO DIANTE DE UM ESPELHO, 1991 – incluído em NOITE DO MEU INVERNO, 2001)
JUAN RAMÓN JIMÉNEZ
Nasceu a 23 de Dezembro de 1881 numa pequena aldeia da Andaluzia, em Espanha.
Foi-lhe concedido o Prémio Nobel em 1956.
Morreu em Porto Rico em 1958.

Bosque mio de olmos com la nieve

Los brazos de los doce olmos desnudos,
mis olmos, mis amigos naturales,
me abrazan, negros, blancos. Nieva.
¡Y qué abrazo
de bosque ele de estos doce olmos,
en este olmo primero, junto a mi!

¡La melodía, blanca, negra, en negro blanco abrazo;
frío y cálido abrazo,
como el del perro, el animal que viene vaheando;
el blanco y negro estar a gusto aquí
desnudo, aunque vestido;
la unidad de lo blanco con lo negro solos,
dos negros con dos blancos;
la eternidad desnuda blanca, negra;
bosque mío de olmos con la nieve!

Y al fin, levanto más mis brazos y los abro
y me abrazo a los olmos en el olmo,
en su total desnudas blancas negras;
esta vibrante y armoniosa sinfonía
de ramas en enlace sucesivo;
bosque echo abrazo con la nieve;
y me cierro con él, en un abrazo inmenso,
desnudo de blancura y de negrura,
un bosque natural de ser e ser
en un abrazo natural de amor,
con mi ser natural desnudo de árbol hombre.

*

Meu bosque de olmos com a neve

Os braços dos doze olmos despidos,
meus olmos meus amigos naturais,
abraçam-me negros, brancos. Neva.
E que abraço
de bosque, o destes doze olmos,
neste primeiro olmo, junto a mim!

A melodia branca , negra, num negro branco abraço;
frio e caloroso abraço,
como o do cão, o animal que se vai evaporando;
o branco e negro estar com gosto aqui
despido, porém vestido;
a unidade do branco com o negro apenas,
dois negros com dois brancos;
a eternidade despida branca, negra;
meu bosque de olmos com a neve!

E por fim, levanto mais os meus braços e abro-os
e abraço-me aos olmos neste olmo,
no seu todo de ramos despidos brancos e negros
esta vibrante e harmoniosa sinfonia
de ramos em união sucessiva;
bosque feito abraço com a neve;
e fecho-me com ele, num abraço imenso,
despido de brancura e de negrura,
um bosque natural de ser e ser
num abraço natural de amor,
com o meu ser natural despido de árvore-homem

(tradução minha)