24.6.03

ANA MARQUES GASTÃO
Nasceu em 25 de Agosto de 1962.
É redactora cultural do DN.
A propósito do primeiro livro dela António Osório diz: «Aqueles que se amam têm segredos e felinas designações. O seu reino é o da juventude do mundo. A paixão autêntica dá o encanto a esta poesia: eis um livro que nos conta uma história de amor, e as suas ditosas, repetíveis palavras.»

Ruídos, pressentimentos, sussurros, escuridão.
Lamento, ira, suor, apaziguamento.
Também se tocam sinos pelos abatidos.
Quem sabe se encontrarei um porto?

Cidade meia-desperta, cais atónito.
Chegam, subtis, os comboios do destino.
Partem flutuando como alma da vida
para longínquas paragens – a ilha.

Vós que vos vedes como navios à deriva,
encontrai no medo espumoso do incerto
o quebrar dos ossos deste ser,
poeira disforme de um corpo sem direcção.

Dentro de mim o cadáver do outro
embala-me num futuro sem agenda.
Dentro de mim a evidência, a terna evidência
de que a metafísica é estar-se calado.

(de Tempo de Morrer Tempo para Viver, Universitária, 1998)

*

Então
a palavra pranto
ergueu-se íngreme
até ao riso.

Repouso
ó mãe
minha morte
em teu colo.

(de Terra Sem Mãe, Gótica, 2001)

*

N

E eu era frágil fardo
deus suave partida
a saída do imediato.

Nada é, tudo é
na estridência
de se estar vivo.

(de O SILÊNCIO DE DEUS, in TRÊS VEZES DEUS, Assírio e Alvim, 2001)

*

Não é o coração

Não é o coração
mas esta carne
em seu rumor.

Não é o coração
mas teu silêncio
de intenso furor.

Não é o coração
mas as mãos
sem corpo, vazias.
Na grave melodia
de um instante
tu e eu
em desequilíbrio
na infame
consistência
de um absoluto
obstáculo.

(de Nocturnos, Gótica, 2002)

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