ALBERTO DE LACERDA
García Lorca e o poema como
superfície plana
Lorca continua a ser obscurecido
pelo prestígio do pitoresco que primeiro impôs a sua obra. Não há nenhum crime
em ser pitoresco; o problema é que nenhum poeta atingiu a grandeza só através
do pitoresco.
Há muito admirador inteligente de
Lorca que o vê demasiado à luz do seu espanholismo, do seu charme andaluz,
esquecendo outros aspectos. Esse espanholismo existe, esse charme andaluz é
inegável. Mas a contrapor ao luxo das imagens, à exuberância de cor, ao
sortilégio rítmico, eu queria salientar um Lorca que trabalhou a linguagem com
mãos depuradas, quase ascéticas.
PRIMERA PAGINA
Fuente clara.
Cielo claro.
¡Oh, como se agrandan
los pájaros!
Cielo claro.
Fuente clara.
¡Oh, como relumbran
las naranjas!
Fuente.
Cielo.
¡Oh, como el trigo
es tierno!
Cielo.
Fuente.
¡Oh, como el trigo
es verde!
Céu, fonte, pássaros, laranjas,
trigo: o poema cresce à volta destes substantivos, quase que consiste
exclusivamente dessas palavras. Só tem três adjectivos: claro, no masculino e
feminino, tierno e verde.
E é um poema prodigioso, pela
força de presença, e não – repare-se – pela evocação. Devido à tensão
imagística, que é desconcertante (pois são palavras isoladas que se tornam
imagens), o poema é-nos apresentado como uma superfície plana, chata – tela ou
parede, e não espelho, muito menos mar, ou rio, superfícies moventes,
rumorosas. Esta energia horizontal trata as palavras como blocos, atendendo
mais à sua densidade do que à sua transparência. Não se trata de poesia
plástica no sentido superficial e perigosamente impreciso em que a expressão
tem sido usada. Não se trata de transposição pictórica. O poema acontece na
própria tessitura rítmica, vai acontecendo palavra por palavra aos nossos
olhos. Um acontecer não gradual: lêem-se poemas deste tipo plano como quem lê
um quadro. Dizem, mas não contam. Nem há metamorfose.
CAZADOR
¡Alto pinar!
Cuatro palomas por el aire van.
Cuatro palomas
vuelan y tornan.
Llevan heridas
sus cuatro sombras.
¡Bajo pinar!
Cuatro palomas en la tierra están.
O poema torna presente, de forma
instantânea, algo que só pode existir em situação poemática e desdobrada:
biombo não-narrativo. As quatro pombas, o ar, a terra, são objectos que só têm
vida própria no poema, enquanto o lemos. São unidades concretas dum edifício
que acaba por ser abstracto. Tal poema não é edifício simbólico. O poeta
fundiu-se de tal forma com as palavras que as fez explodir de dentro. Eu ia a
dizer: passam a ser outra coisa. Mas não é bem isso. O processo é mais subtil,
mais panicamente sensual: passam a ser o acto de ler o poema. Mais do que em
qualquer outro poeta, cada poema de Lorca é um ritual. Ritual tem
milenariamente a ver com teatro, teatro sagrado, mas é um disparate dizer que
Lorca foi sobretudo dramático ou sobretudo lírico. Foi as duas coisas.
Dirão que é perversa a minha
escolha de poemas. Mas vejamos como este processo verbal também funciona em
passagens do livro mais célebre de Lorca, o mais carregado de espanholismos: Romancero Gitano. Repare-se nas
superfícies planas sobrepostas:
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
y el caballo en la montaña.
O aparente non-sequitur visual não tem raiz nem intenção onírica. Estes versos
são alheios a qualquer noção, voluntária ou involuntária, de profundidade ou de
subterrâneo psicológico. Mas o resultado é mágico. Magia das superfícies
sagradas, sobretudo a pele e a terra (com as suas águas), que as sabia
sagradas, como pagão que era, Federico García Lorca, um dos poetas mais
soberanamente pagãos de todos os tempos.
A sua intuição de tradições
antiquíssimas, menos perdidas (felizmente) do que se crê, o aspecto inédito que
ele dá à possessa vivência dessas tradições têm um paralelo na pintura
espanhola: Miro. Joan Miró, eivado da alegria grave dos iluminados, é o homem
do insólito fabuloso, da lava enigmática de vulcões pré-cristãos. Lava sem as
hesitações mórbidas do século, lava exaltada e exultante, de quem habita naturalmente
o mistério e o maravilhoso, sem perguntar nem responder (acusa, às vezes, e
Lorca também: outra história, outro capítulo). Lorca e Miró são surrealistas no
arcaico; «no Antiguo», diria Almada, carregando muito as últimas vogais. Mas
Miro não pinta símbolos. Entre Miró e a pintura não há intermediários. Entre o
divino Lorca e a poesia não há nenhum intermediário. Nenhum mal-entendido.
Boston, Julho de 1973.
(in Colóquio Letras, número 16 - Novembro de 1973)