4.11.11

ÓSSIP MANDELSTAM


Não te seduzam alheios idiomas, esquecê-los é bom que tentes:
seja como for não poderás morder o vidro com os dentes.

Com que sofrimento se domina o voo do crocitar alheio —
pelo êxtase ilegítimo, que dura paga te espera.

Porque o nome alheio à hora da morte não vai salvar
o corpo moribundo e a boca pensante e imortal.

E se os encantadores Ariosto e Tasso, que nos seduzem,
são monstros com escamas de olhos húmidos e cérebro azul?

E, amante de sons, castigando-te a vaidade,
vai passar-te pelos lábios a esponja de vinagre.

Maio de 1933


(in Fogo Errante - antologia poética, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio d'Água, 2001)

3.11.11


VASCO MIRANDA


RECUSA
a Alberto de Serpa
Serei sempre um poeta provinciano.
Um poeta triste, esquivo,
Com medo de apertar a mão aos poetas da cidade
E de me sentar com eles
À mesa do Café.
Não falarei de minha poesia.
Não rimarei minha angústia
Com a solenidade de suas questões.
A poesia não está na discussão.
A poesia não está no não estar com este ou com aquele.
A poesia está em matar esta morte
Que anda dentro de nós
Para que a vida renasça.
A poesia está em gritar do alto dos arranha-céus
E das planuras e concavidades sertanejas
Que o mundo vai acabar
Que o mundo está maduro para o sangue
Que o mundo perverso e caótico vai vagar.
Serei sempre um poeta provinciano.
Um poeta esquivo defendendo sua solidão
De todos os truques de todos os ódios de todas as invejas.
Os poetas rendilheiros não perdoarão.
Os poetas vaidosos vão barafustar
E exigir a expulsão imediata
Do último vendilhão do Templo,
Em nome da religião,
Em nome da estética,
Em nome da dignidade amarfanhada,
Em nome da polícia se preciso for.
Serei sempre um poeta provinciano.
Um poeta esquivo anunciando a verdade
A repassar de gelo os corações narcotizados.
Os poetas rendilheiros não perdoarão.
Os poetas vaidosos vão barafustar,
Porque o fim do mundo está próximo.
Os poetas rendilheiros e os poetas vaidosos estão maduros para o sangue.
Já estão cevados para a morte.
Eles esquecem (perdão, não é blasfémia!) a sentença do Cristo:
— «Destruí este Templo e eu o reedificarei em três dias.»


(de A Vida Suspensa, 1953)

2.11.11

EMANUEL FÉLIX


«BUSCAR A LUZ DO DIA, VIVER DEPOIS DA MORTE» (*)

Eu te saúdo
A ti que te ergues sobre os abismos cósmicos
Imenso é na verdade o teu esplendor
Surges como um leão de duas cabeças
Deixa ouvir a tua mensagem poderosa
Cede a tua força aos que te aguardam de pé teimosamente

Eis que acabamos de chegar e nos misturamos
À multidão dos deuses que gravitam
Em teu redor oh sol
E logo cumprimos as ordens a que obedecem os teus servidores
Semeamos os campos
Tiramos água dos poços
Carregamos areia de leste para oeste
E na verdade como tu vivemos depois da morte
Do mesmo modo que todos os dias renasces da noite

E todos os que nos amam rejubilam 
Ao saberem-nos vivos

______
(*) Livro dos Mortos dos Antigos Egípcios


(de O Instante Suspenso, 1992)

1.11.11

[em dia de todos os santos]

LEONARD COHEN


NA BÍBLIA GERAÇÕES  PASSAM...

Na Bíblia gerações passam num parágrafo, uma traição expõe-se numa frase, a criação do mundo ocupa uma página. Entre uma multidão, nunca pude distinguir a dinastia importante, vocês devem ter a fronte iluminada para poderem ver na teia emaranhada das evidências diárias as negativas e as lealdades. Quem pode assinalar a oliveira que a história escolhe para dar sombra aos seus amantes? Que árvore do grandioso pomar poderá oferecer a visão particular da folhagem e do céu para desencadear os seus beijos? Apenas duas pessoas iluminadas que vão directamente às raízes em que repousam. Pela minha parte limito-me a descrever o pomar inteiro.


(in Antologia Poética, versões de Jorge Sousa Braga e Carlos Tê, 2ª ed.: Assírio & Alvim, 1997 - Rei Lagarto)


31.10.11


ALBERTO DE LACERDA


García Lorca e o poema como superfície plana

Lorca continua a ser obscurecido pelo prestígio do pitoresco que primeiro impôs a sua obra. Não há nenhum crime em ser pitoresco; o problema é que nenhum poeta atingiu a grandeza só através do pitoresco.
Há muito admirador inteligente de Lorca que o vê demasiado à luz do seu espanholismo, do seu charme andaluz, esquecendo outros aspectos. Esse espanholismo existe, esse charme andaluz é inegável. Mas a contrapor ao luxo das imagens, à exuberância de cor, ao sortilégio rítmico, eu queria salientar um Lorca que trabalhou a linguagem com mãos depuradas, quase ascéticas.
PRIMERA PAGINA 
Fuente clara.
Cielo claro.
¡Oh, como se agrandan
los pájaros!
Cielo claro.
Fuente clara.
¡Oh, como relumbran
las naranjas!
Fuente.
Cielo.
¡Oh, como el trigo
es tierno!
Cielo.
Fuente.
¡Oh, como el trigo
es verde!
Céu, fonte, pássaros, laranjas, trigo: o poema cresce à volta destes substantivos, quase que consiste exclusivamente dessas palavras. Só tem três adjectivos: claro, no masculino e feminino, tierno e verde.
E é um poema prodigioso, pela força de presença, e não – repare-se – pela evocação. Devido à tensão imagística, que é desconcertante (pois são palavras isoladas que se tornam imagens), o poema é-nos apresentado como uma superfície plana, chata – tela ou parede, e não espelho, muito menos mar, ou rio, superfícies moventes, rumorosas. Esta energia horizontal trata as palavras como blocos, atendendo mais à sua densidade do que à sua transparência. Não se trata de poesia plástica no sentido superficial e perigosamente impreciso em que a expressão tem sido usada. Não se trata de transposição pictórica. O poema acontece na própria tessitura rítmica, vai acontecendo palavra por palavra aos nossos olhos. Um acontecer não gradual: lêem-se poemas deste tipo plano como quem lê um quadro. Dizem, mas não contam. Nem há metamorfose.
CAZADOR
¡Alto pinar!
Cuatro palomas por el aire van.
Cuatro palomas
vuelan y tornan.
Llevan heridas
sus cuatro sombras.
¡Bajo pinar!
Cuatro palomas en la tierra están.
O poema torna presente, de forma instantânea, algo que só pode existir em situação poemática e desdobrada: biombo não-narrativo. As quatro pombas, o ar, a terra, são objectos que só têm vida própria no poema, enquanto o lemos. São unidades concretas dum edifício que acaba por ser abstracto. Tal poema não é edifício simbólico. O poeta fundiu-se de tal forma com as palavras que as fez explodir de dentro. Eu ia a dizer: passam a ser outra coisa. Mas não é bem isso. O processo é mais subtil, mais panicamente sensual: passam a ser o acto de ler o poema. Mais do que em qualquer outro poeta, cada poema de Lorca é um ritual. Ritual tem milenariamente a ver com teatro, teatro sagrado, mas é um disparate dizer que Lorca foi sobretudo dramático ou sobretudo lírico. Foi as duas coisas.
Dirão que é perversa a minha escolha de poemas. Mas vejamos como este processo verbal também funciona em passagens do livro mais célebre de Lorca, o mais carregado de espanholismos: Romancero Gitano. Repare-se nas superfícies planas sobrepostas:
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
y el caballo en la montaña.
O aparente non-sequitur visual não tem raiz nem intenção onírica. Estes versos são alheios a qualquer noção, voluntária ou involuntária, de profundidade ou de subterrâneo psicológico. Mas o resultado é mágico. Magia das superfícies sagradas, sobretudo a pele e a terra (com as suas águas), que as sabia sagradas, como pagão que era, Federico García Lorca, um dos poetas mais soberanamente pagãos de todos os tempos.
A sua intuição de tradições antiquíssimas, menos perdidas (felizmente) do que se crê, o aspecto inédito que ele dá à possessa vivência dessas tradições têm um paralelo na pintura espanhola: Miro. Joan Miró, eivado da alegria grave dos iluminados, é o homem do insólito fabuloso, da lava enigmática de vulcões pré-cristãos. Lava sem as hesitações mórbidas do século, lava exaltada e exultante, de quem habita naturalmente o mistério e o maravilhoso, sem perguntar nem responder (acusa, às vezes, e Lorca também: outra história, outro capítulo). Lorca e Miró são surrealistas no arcaico; «no Antiguo», diria Almada, carregando muito as últimas vogais. Mas Miro não pinta símbolos. Entre Miró e a pintura não há intermediários. Entre o divino Lorca e a poesia não há nenhum intermediário. Nenhum mal-entendido.

Boston, Julho de 1973.


(in Colóquio Letras, número 16 - Novembro de 1973)